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OBRAS COMPLETAS
DO
CARDEAL SARAIVA
(D. FRANCISCO DE S. LUIZ)
PATEIAECHA DE LISBOA
riiliCEDIDAS DE
U5IA INTIlOpUCÇÃO PELO MARQUEZ DE REZENDE
PUDLICADAS POR
ANTÓNIO CORREIA CALDEIRA
TOMO V
LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
187o
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DO
CARDEAL SARAIVA
OBMS COMPLETAS
DO
CARDEAL SAEAIVA
(«. FRANCISCO UE S. LUIZ)
PATRIARCHA DE LISBOA
PRECEDIDAS DE
UMA INTRODUCCÃO PELO MARQUEZ DE REZENDE
PUBLICADAS POR
ANTOXIO CORKEIA CALDEIRA
TO]\IO V
LISBOA
IMPRENSA NACIONAL,
1875
Re
15-
Szg
ESTUDOS HISTÓRICOS
E
CHRONOLOGICOS
SODRE AS
NMECliS, VliUENS, DESÍOBfilill [ COittUISIlS DOS PDfilUGUEZES
NOS
PAIZES ULTRAMARINOS
K ÁllERCA DOS
PROGRESSOS DA MARINHA l'ORTU(;[EZA ATÉ OS PRL\CO'IOS DO SEtLIO XVI
REFLEXÕES GERAES
ÁCEKCA DO INFANTE D. HENRIQUE,
E DOS DESCOBRIMENTOS DE QUE ELLE FOI AUCTOR
NO SÉCULO XV
REFLEXÕES GERAES
ACERCA DO INFANTE D. HENRIQUE,
E DOS DESCOBRLMENTOS DE QUE ELLE FOI AUCTOR
NO SÉCULO XV
Quem ler com alguma attenção, e com animo imparcial
e limpo de baixas preoccupações a historia dos descobri-
mentos e viagens marítimas emprendidas e executadas
pelos Portuguezes desde os princípios do século xv com
tanta utilidade do mundo civilisado, não poderá deixar
de sentir-se possuído de admiração, e quasi assombro,
considerando que huma nação pequena, libertada pouco
antes da oppressão dos San-acenos, e das pretensões dos
seus vizinhos ; destituída de guia e exemplar, que a tivesse
precedido na sua carreira; carecida dos muitos meios e
methodos, que o tempo, a industria, e o [)rogresso das
sciencias têem depois multiplicado; que esta nação, digo,
formasse e executasse a vasta, difíicil, e ari'ojada em-
preza de descobrir tantos mares, terras, e povos até en-
tão desconhecidos, de navegar até ás mais apartadas re-
giões do mundo, e de levar por toda a parle a sua indus-
tria, a sua civilisação, o seu commercio, as suas armas,
e o seu domínio! Mas tanto pôde o génio! (luni homem
de génio, hum Príncipe dotado de huma grande alma, e
de huma constância invencível, bastou para conceber e
executar tamanha empreza !
Foi este o immortal Infante D. Henrique, fdho de el-
Rei D. João I. A ordem do nascimento não o havia desti-
nado para o throno; os seus meios erão consequentemente
Hmitados, se os compararmos com a grandeza e vastidão
do projecto a que se abalançava; a sua idade parece que
não dava bastante caução nem á madureza do plano, nem
á constância do desempenho: muitos Portuguezes, ainda
dos mais doutos e avisados, impugnavão as suas idéas
como quiméricas, ou temerárias, e o seu plano como in-
exequível; antigas preoccupações, ainda não dissipadas
pela experiência, representavão a zona tórrida como inha-
bitavel, e a existência dos antípodas como impossível:
imaginavão-se medos e receios de navegar em mares pe-
rigosos, cheios de monstros, e nunca trilhados de outras
quilhas. Emlíni, ainda depois que o Infante deo principio
aos seus trabalhos marítimos, doze ou mais annos se ha-
vião já passado em tentativas infructuosas, sem resultado
algum essencial, senão o de dar novos argumentos, e
maior ousadia aos inimigos e ímpugnadores da empreza.
Tudo isto parece que seria mais que sufíiciente para des-
animar huma alma menos heróica, e para privar, ainda
por longo tempo, o mundo das immensas vantagens que
havião de seguir-se de tão glorioso projecto. Mas o illus-
tre Príncipe teve em pouco todas as díííiculdades que se
lhe oppunhão, e marchou intrépido na carreira que tinha
encetado. Nem se presuma que as suas resoluções erão
cegas ou temerárias : que as não costumão tomar taes os
grandes homens, ainda que o vulgo ignorante, e incapaz
de comprehender as cousas elevadas, que sobreexcedem
a medida do seu espirito, lhes ponha nmitas vezes essa
tacha.
Tinha o illustre Infante diante dos olhos a vasta gran-
deza, e quasi iramensidade do Oceano (1), e pelas antigas
cartas, taboas, e descripções dos geógrafos podia presu-
mir que esta grande massa de aguas drciimdava toda a
Africa, e banhando a sua testa meridional, liia unir-se
com os mares do oriente, por onde naquelles tempos se
navegarão as especiarias, e drogas da Ásia para os golfos
Pérsico, e Arábico.
As lYàçÃms da Europa que hião a Levante buscar estas
mercadorias, e que tinhão suas feitorias no Egypto, na
Syria, na Ásia menor, na Arménia, e nos estados berbe-
rescos, não deixarião de ter algumas noticias daquelles
mares, e de que elles vinhão lavar as praias e costas orien-
taes de Africa. Os Árabes e Mouros estavão estabelecidos
em muitos pontos delias, navegavão todos os mares orien-
taes até á China, e Mar Paciíico, e tinhão relações com o
Cairo, Alexandria, Damasco, e outros empórios de Le-
vante.
Por oulra parle tinha o Infante, pelas lições da histo-
ria, noticia das navegações antigas em roda de Africa,
attribuidas aos navegadores Fenícios e Garthaginezes (2) ;
(1) o Infante fez a sua ordinária residência em Sagres (no antigo
promontório sacro, hoje cabo de S. Vicente), e ahi fundou a villa
que se chamou Villa Nova do Infante, e depois Sagres. D'ahi fazia
e dirigia todas as suas expedições marítimas.
(2) Referem os antigos que Nechao, Rei do Egypto. informado
dos progressos que os Fenícios tinhão feito na navegação, tomara a
seu serviço marinheiros desta gente, os quaes, sahindo do Mar Roxo
por sua ordem, costearão toda a Africa, e no íim de três annos vol-
tarão ao Egypto pelo estreito de Hercules. Era isto (diz hum Geó-
grafo moderno) mais de dons mil annos antes que Vasco da Gama
fizesse inversamente o mesmo caminho. De outras viagens antigas á
roda de Africa nos dá noticia Plinio, liv. 2.°, cap. 69." : «Hanno (diz)
CartJiaginis jwtentia florente, rircumrectns a Gadilms ad finem Ara-
hiae, navirjationem eam prodidit scripto: sicut ad extra Europae
noscenda missus eodem tempere Himilco. Praetei-ea Nejms Cornelius
auctor est Eudoxum quemdam sua aetale, quum Lathyriím regem fii-
gcret, arabiro sinu erircssum Gadcs nxquc proveetnm. MuUoqtte ante
e postoque podesse duvidar da realidade destas grandes
emprezas, como muitos modernos têem duvidado, nem
por isso era menos certo, que antiquissimos e mui doutos
Escriptores as havião julgado possiveis e exequíveis, que
era o que bastava para dar força, e até probabilidade ás
conjecturas sobre a communicação, e continuidade dos
mares.
Igualmente havião de ser conhecidas ao douto Infante
as viagens marítimas dos dousMarselhezesPytliéas, eEu-
tliyrnenes, huma pelas costas occidentaes da Europa ao
norte do estreito de Hercules, até á ilha de Thule, e ou-
tra pela de Africa ao sul do mesmo estreito até hum rio
que os antigos chamavão Nilo, e que [lairce ser o Sene-
gal, ou algum dos outros grandes rios, que naquellas pa-
ragens vem sahir ao Atlântico (3).
eum Caelins Antipater. ridisse se qui nariyasset ex Hispânia in
Aelhiopiam commercii gratia... Sic maria circumfnsa nndique di-
viduo globo partem orbis aufei'unt nobis, ócc.
(3) Pylheas, o primeiro destes navegadores, que se julga contem-
porâneo de Aristóteles, depois de ter feito importantes observações
astronómicas na sua pátria, sahio a descobrir e examinar as costas
do Oceano ao norte do estreito hercúleo. Navegou até á illia de Thu-
le, entrou o Báltico, e em resultado de suas observações estabeleceo
a diíTerença dos climas pela grandeza dos dias e das noutes. A Re-
lação de suas viagens, que ainda existia, e era conhecida pelos fins
do século IV da era Christãa, paroceo fabulosa a Polybio, e Eslrabão,
os quaes tinhão por inhabitaveis alguns dos paizes descriptos por Py-
theas. Comtudo Gassendo, Sanson. e Rudbek pozerão-se da parle dos
antigos Hipparco, e Eratosthenes, que tinhão defendido o illustre na-
vegador rnathematico ; e mais modernamente Mr. Baiily na sua His-
toria da Astronomia dá os merecidos elogios ás importantes obser-
vações que elle fez. O seu compatriota Euthymenes tomou no mesmo
tempo bum caminho opposto, e navegou ao sul do estreito pela costa
de Africa. A Relação da sua viagem também se perdeo; mas Séneca,
Qitest. Natur.j liv. 4.", cap. 2.°, nos dá noticia delia, e até cita pala-
vras de Euthymenes, quando trata das varias opiniões dos antigos
sobre as causas da inundação periódica do iXilo. Eis-aqui as suas
palavras : « Euthymenes Massiliensis testimonium dicit : navigavi, in-
Vindo a tempos mais modernos, não se pôde negar,
que as cruzadas, o commercio com o oriente, e as viagens
por terra havião alargado muito os limites da geografia.
Além das feitorias europeas no Levante, de que já falá-
mos, e além da communicação com os Árabes, e do com-
mercio, que por meio delles se fazia com a Pérsia e ín-
dia, bem conhecidas são as numerosas viagens, que nos
séculos xni e xiv se emprendêrão e executarão, tanto
pelos Christãos como pelos Árabes, entre os quaes al-
guns dos primeiros não só frequentarão os paizes orien-
taes mais remotos, mas também fundarão nelles estabe-
cimentos Christãos, descerão a Ormuz, e ás costas occi-
dentaes da índia, áquem do Ganges, vizitárão a ilha de
Java, e Columbo em Ceylão, aonde havia igreja Chris-
tãa, ác, e os segundos divagarão por toda a Ásia orien-
tal e Occidental, correrão a Africa até Sofala ao oriente,
e até ás margens do Niger no interior, e nos deixarão em
seus escriptos preciosas noticias geográficas, principal-
mente dos vastos paizes aonde tinha chegado o Isla-
mismo (4).
quit, atlanticum maré: inde Nihis fluit maior, quamdiu etesiae tem-
pus ohservant, íunc enim ejicitur maré intrantibus ventis : cum re-
sederint, et pelagus conquiescit, minorque discedenti inde vis Nilo
est: ceterum dnlcis maris sapor est, et símiles niloticis behiac ». Por
onde se \ê que Euthymenos navegou pelo Atlântico ao longo da
costa Africana, e chegou, pelo menos, até hum grande rio, que elle
chama Nilo, e em que achou analogias com o outro Nilo do Egypto.
Bem sabido he que alguns antigos davão o nome de Nilo ao Sene-
gal ou Niger, ou fosso por acharem entre elles as mesmas analogias,
ou pelos supporem nascidos da mesma origem, ou linalmente por
ser o vocábulo Nilo primitivamente hum termo genérico, e como tal
applicavel a dilferentes indivíduos.
(4) Em 1245 enviou o Santo Padre Iniiocencio IV á Tartaria os
dons frades menores, Fr. Lourenço, Portuguez, e Fr. João de l'lan-
(larpin, que escreveo a líelação da sua viagetn. Em 1307 foi man-
dado ao mesmo paiz l''r. André Pi^rusino, lambem frade menor, com
outros seis, já consagrados Bispos, e destinados a auxiliar, conservar
As importantes relações de todos estes trabalhos fizerão
os paizes orientaes menos estranhos aos Europeos ; am-
pliarão a esfera da geografia, excitarão a curiosidade e
gosto das viagens, e dei'ão a conhecer, postoque ainda
confusamente, muitos povos e naçíjes da Ásia, denotando
alguns pontos importantes das suas costas, ilhas, e mares.
Todos estes conhecimentos auxiliados das próprias re-
flexões e combinações cosmograficas do Infante D. Hen-
e ampliar as cliristandades que naquellas regiões se achavão funda-
das por Fr. João Moncorvino, que falieceo sendo Arcebispo de (]am-
balu em 1330. Estes religiosos varões estiverão por alguns annos na
mesma cidade de Caml)alu, como refere o próprio Fr. André, dando
noticia da grandeza e magnificência daquelle império, da frequência
c variedade dos povos que o liahitavão, ou a elle concorriJo, da or-
dem da sua policia, &c., e fazendo menção da grande cidade de
Caiton sobre o Oceano oriental, d'onde elle mesmo era Bispo, e da-
tava a sua carta em Janeiro de 13á6. No anno de 1314 sahio para
o oriente Fr. Odorico do Friul, também frade menor, o qual depois
de correr varias provincias da Ásia, veio a Ormuz, visitou o ]\Ia]a-
bar, e as ilhas de Ceylão, e Java, e penetrou até á China e Tibet,
voltando a Itália em 1330, depois de dezeseis annos de extensa e
laboriosa peregrinação. Nesse mesmo anno de 1330 mandou ainda
o Papa João XXII alguns varões apostólicos a diversas terras orien-
taes, entre os quaes se nomeia Fr. Jordão, da ordem dos Pregadores,
consagrado Bispo para Columbo, em (Ceylão, a cujos Chrisfãos, appel-
lidados Nascarinos (Nazarenos), escrevia o Santo Padre, recommen-
dando-lhes o Bispo, e os outros frades que o acompanhavão. Final-
mente são bem conhecidas as viagens de Marco Paulo, que alguns
chamão o pai da geografia Tarlara, as de João de Marignole, de
Jlicold de Montecroix, kc., &c. Entre os Árabes, sem fazermos men-
ção do celebre Scherif Al-Edrisi, mais conhecido pela denominação
de Geógrafo Nuhiense, de Shahab-Eddin Abu Abdallah Yakut, do
Cheykh Zacarias, e de outros do mesmo tempo, lembraremos aqui
somente Ibn-al-Ouardi, que pelo meio do século xiv escrevia a sua
obra intitulada Pérola dax Maravilhas, o sábio Abul-Feda, El-Ba-
ckoui, e o iilustre Ibn-Batuta, que a todos os viajantes Árabes do
século XIV excedeo na vastidão de suas peregrinações, executadas
por espaço de trinta annos, e terminadas com a viagem ao interior
de Africa, énc, kc.
9
rique, e fermentados (digamos assim) pelas inspirações
do génio, influirão no immortal Princi])e a sua heróica re-
solução, tanto mnis facilmente por elle adoptada, quanto
mais a grandeza do commetti mento conformava com a
vasta capacidade do seu generoso e verdadeiramente real
espirito. A fortuna favoreceo a sua constância e heróica
perseverança.
Depois de alguns annos de tentativas infructuosas do-
brou-se emfim o formidável cabo Bojador^ que por tanto
tempo triunfara das diligencias e esforços dos navega-
dores Portugiiezes. Virão-se novos mares, novas ilhas,
novas terras: descobrírão-se nações barbaras, estranhas
na côr, na linguagem, nos costumes, na religião: come-
çarão a alargar-se os limites do commercio com os novos
objectos, que cada dia se offerecião ás suas indagações, e
tá sua actividade : formárão-se relações de communicação,
e até de amizade com alguns dos Príncipes bárbaros; e
abrirão-se as portas á navegação oriental, ao conheci-
mento das vastíssimas regiões interiores de Africa, até
então vedadas aosEuropeos, e ao descobrimento do novo
mundo, que sem' as atrevidas navegações dos Portugue-
zes, he de presumir que ainda por muito tempo ficasse
ignorado.
O illustre Infante, lendo empregado nestes úteis e glo-
riosos trabalhos quarenta e dous annos da sua vida, fal-
leceo emfim a 13 de Novembro de 1460, deixando des-
coberta, além de muitas ilhas, a costa occidental de Africa
desde o cabo de Nam até Serra Leoa, legando aos Reis
Portuguezes, e a toda a nnçTiohuma grande herança de glo-
ria, e indicando aos vindouros o caminho, que devião se-
guir para dar feliz complemento aos seus vastos planos, e
desenhos.
Parece que o superior merecimento deste grande e glo-
rioso Príncipe não ])odia deixai' de lhe grangear então, e
ainda hoje, o reconhecimento, o respeito, e o louvor de
10
todas as pessoas que, superiores aos baixos affectos do
ciúme e da inveja, sabem, e costumão avaliar os grandes
homens pelo que elles realmente valem, e os grandes fei-
tos pela verdadeira utilidade que delles pôde resultar ao
mundo, e pela influencia que podem ter sobre o bem da
humanidade e sobre os progressos da civilisação geral.
Assim vemos que escriptores de mui distincto nome
e saber, tanto antigos como modernos, exaltarão o In-
fante D. Henrique com expressões de merecido louvor,
c deixarão o seu nome, e os seus altos méritos recom-
mendados com encarecidas palavras á agradecida memo-
ria da posteridade (5).
Não faltarão comtudo alguns, como costuma acontecer,
que por differenles modos, e com differentes fundamen-
tos, ou pretextos, mas sempre indirectamente (porque de
outra maneira se não alreverião a fazel-o) pretenderão
despojar o illuslre Príncipe da sua maior gloria, levando
ao mesmo tempo em vista deslustrar a fama do nome
Portuguez, já que de todo a não podião escurecer. A ver-
dade porém mais forte que as miseráveis paixões e il-
lusões humanas tem tomado, e ha de sempre conservar
a superioiidade que lhe he devida, e o mundo verdadei-
ramente sábio e imparcial não deixará em tempo algum
(5) Seja-nos pcrmillido, unicamente para exemplo, trazer aqui as
palavras de que se servem os Auctores Inglezes da Historia Univer-
sal acerca do Infante: «Este Infante D. Henrique (dizem elles) não
só foi hum dos nunores homens do seu tempo em Portugal, mas tam-
bém hum dos mais exceUentes, que se tem visto em todas as nações,
e em todas as idades. E postoque isto seja muito dizer em seu lou-
vor, todavia não exagerámos nada, nem affirmdmos cousa, que não
seja mui somenos de seus merecimentos. E seja qual for a differença
que ha entre o estado da Europa acjora, e o em que se achava no
tempo de D. Henrique, he indispularel que todas as vantagens pro-
cedidas do descobrimento da maior parte de Africa, e das índias
oriental e occidental, e todas as que delias se derivarem até o fim
dos séculos, se devem ao génio e diligencias deste Príncipe», &c.
de recordar com admiração, e reconhecimento os im-
mensos benefícios de que gosa, devidos ao immortal In-
fante D. Henrique.
O Padre Labat, Francez, foi o primeiro, que nos conste,
que intentou roubar a este Príncipe a originalidade de
seus descobrimentos na costa occidental de Africa. Es-
crevia elle em 1717, três séculos inteiros depois que co-
meçarão as nossas navegações para aquella costa, e quasi
quatro séculos depois da data, que elle mesmo attribue ás
suas fabulas. E como nenhum documento, memoria, ou
escripto tivesse, com que auctorisarsuccessos tão antigos,
e até então ignorados, nem entre os papeis, que lhe forão
confiados pela companhia Franceza das índias e do Sene-
gal, achasse titulo algum legitimo que remontasse acima
do anno de 1626, julgou conveniente ao seu plano ser-
vir-se de não sei que tradições e conjecturas, e sobre
estes tão fúteis e tão vacillantes fundamentos teve a ou-
sadia de afQrmar que os marinheiros de Dieppe havião
descoberto, e frequentado as costas occidentaes de Africa
desde o principio do século xiv, e que em 1364 tinhão
estabelecido commercio em Rufica, e muito além de Serra
Leoa.
Esta quimérica opinião era logo á primeira vista fácil
de refutar-se por muitas razões tão obvias como incon-
testáveis:
1.° Pela posse antiga e pacifica dos Portuguezes, fun-
dada nas Relações de suas primeiras viagens e descobri-
mentos, Relações contemporâneas dos successos. Rela-
ções singelas e desaffecladas, que progressivamente se
hião publicando, e corrião por toda a Europa sem a me-
nor contradicção, sem que pessoa alguma sahisse em de-
fcza da prioridade de qualquer outra nação, e sem que
os próprios Francczes allegnssem a sua mais antiga posse,
ou dessem o mais leve signal ou indicio de lhes serem já
conhecidas aquellas regiões.
2.° Porque nem os Portuguezes frequentando as costas
de Africa, nem os estrangeiros que com elles, ou depois
delles as visitarão, acharão monumento, vestígio, memo-
ria, ou rasto algum de quaesquer outros Europeos, que
em tempos mais remotos tivessem ali aportado ; nem des-
cobrirão vocábulo ou nome algum da língua Franceza
dado aos logares, ou a outros objectos; antes pelo con-
trario observarão a profunda e total ignorância em que
estavão os Africanos acerca de tudo quanto podia dizer
respeito aos Europeos, e aos seus usos, costumes, reli-
gião, artes, e commercio.
3.° Porque tendo alguns Normandos tentado nos prin-
cípios do século XV, debaixo da protecção de el-Rei de
Castella, a conquista das Canárias, já no precedente sé-
culo XIV reconhecidas e visitadas pelos Portuguezes, e de-
pois delles por outros navegantes (como mais adiante
mostraremos), nada parecia mais natural do que darem
d'ahi huma revista á costa do continente Africano, onde
devião esperar achar, não só vestígios ainda recentes dos
Francezes seus nacionaes, mas também estabelecimentos
permanentes, e feitorias por elles fundadas desde Cabo
Verde (como elles dizem) até d Mina, e de mais a mais
huma igreja, levantada neste ultimo lugar em 1388,
como se atreveo a escrever hum Auctor moderníssimo (6).
Longe, porém, de succeder assim, sabemos que esses
mesmos Normandos nem ao menos reconhecerão todas
as Canárias, nem nellas se poderão conservar por muilo
tempo.
4.° Porque ainda que os Francezes, ou pelo decurso e
circumstancias dos tempos, ou por causa das suas per-
turbações internas, e guerras com os estrangeiros, ou por
outros quaesquer motivos tivessem interrompido as suas
(6) Mr. (i'Avezac, Esqnisse general de l' Afrique. Aspect el con-
stitution phisiqiie, Histoire natnrelle, Etlniolorjie, Lingiiistirjue, État
social, histoire, cxploratiom, et Geographie. Paris, 1837, 12.
13
suppostas navegações Africanas, e abandonado os esta-
belecimentos, que os seus modernos escriptores dizem
que elles tinhão feito naquellas partes; he comtudo inve-
rosímil que de todo se houvessem esquecido delles em
pouco tempo, e que lhes não restasse desejo algum de os
poderem ainda tornai- a possuir, ou ao menos de conser-
varem alguma memoria do seu direito. Este estranho es-
quecimento porém he o que se deduz da historia con-
temporânea, não só pelo absoluto silencio que os mesmos
Francezes guardarão acerca de suas anteriores, mas ainda
recentes emprezas; senão também, e especialmente, por-
que tendo os Reis de Portugal e Castella dividido entre si
o globo da terra para fixarem a demarcação e limites de
suas respectivas conquistas, e evitarem futuras contendas
e discórdias, diz a Historia, que fora requerido o Rei de
França para acceder a esta divisão, e ter parte nas con-
quistas, se assim o quizesse; mas que elle volunta-
riamente desistira do direito que podia por este modo
adquirir, e renunciara ao convite (7): acaso por jul-
gar então loucas, insensatas^, e desatinadas as navegações
(7) Andrade, Chronica de el-Rei />. João III, part. 1,% cap. 10." :
«El-Rei Francisco (1.° de França) quiçá desejoso de ter parte nos
grandes proveitos, que tinha por informação que se tiravão da na-
vegação e commercio da índia, começou a arguir novas duvidas so-
bre a demarcação, que lizerão antre sy os Reis de Portugal e Cas-
tella, da qual naquelle tempo elle se lançara fora sendo requerido
para isso^ e agora sentia muyto a renunciação que tinha feito da
parte da acção, que poderá ter neste descobrimento. Deste desgosto
nascia o consentir el-Rei de França que os seus navios andassem
roubando os Portuguezes no mar (;om pretextos, ò:c. A Chronica de
rl-Rei D. Sebastião, attribuida a D. Manoel de Menezes, no cap. 43.",
lalando da empreza de Villegainon sobre o Rio de Janeiro em 1556,
rellecte, que os Francezes nenhum direito tinlião áquellas terras,
tanto porque erão descobrimentos e conquistas dos Portuguezes,
como jje/ff desistência (são as palavras da Chronica) qve os seus
Reis tinhão feito, quando pelo Papa forão convidados para a repar-
licão de novos descobrimentos de terras», &c.
14
Portuguezas, como muitos naquelle tempo lhe chama-
vão (8).
5." Porque ainda depois que os Francezes começarão
a observar as vantagens e grandes proveitos, que os Por-
tuguezes tiravão de seus descobrimentos e conquistas, e
a sentir o tardio arrependimento de haverem renunciado
á acção, que neiles poderão ter. nunca jamais se lembra-
rão de allegar a prioridade de suas navegações e de sua
antiga posse, nem mostrarão intento de reivindicar hum
só palmo de terra na costa de Africa, nem ao menos di-
rigirão para aquella banda as repetidas tentativas do seu
despeitoso ciúme, e as continuas e vergonhosas piratarias
com que tanto incommodárão os Portuguezes, e deterio-
rarão o seu commercio no meio da paz dolosa que com
elles mantinhão (9).
(8) Jeronymo Conestagio, depois de exaltar as façanhas dos Por-
tuguezes na Europa, acrescenta : « O luesnio esforço mostrou esta
nação assim em Africa como na índia, tanto por haver alcançado o
íim de sua estupenda e admirável navegação, que ao principio foi
reputada por temerária e louca pelos mais sábios e entendidos, como
por ter dado naquellas partes grandes provas de suas pessoas nas
armas», &c. Paulo Jovio ciiamou insanas as navegações Portugue-
zas : insana navifjatione atlanticuin praelervecti, &c. ; sobre o que
reflecte o elegantíssimo Fr. Luiz de Souza, que os estrangeiros qua-
lificavão de loucas e desatinadas as nossas emprezas marítimas, ou
porque não achavão palavras que igualassem o louvor que merecião,
ou porque se não atreverão a encobrir a inveja, que lhes fazia a ines-
timarel ijloria, a infinita riqueza, e os triumfos e victorias, que por
meio delias alcançou este pequeno reino.
(9) Não consta que os Francezes mandassem os seus navios ás
possessões Portuguezas de Africa occidental senão pelos annos de
i5%, isto he, cento o setenta annos depois de nossos primeiros des-
cobrimentos, e quando as nações da Europa, sob pretexto de nos
acharmos unidos, ou sujeitos á Monarquia Hespanhola, começarão
a desenvolver a sua antiga inveja, e a aproveitar-se da nossa situa-
ção para retalharem as nossas ricas colónias, p se apossarem delias.
Até então limitarão-se os Francezes a invasões sobre o Brazil, aonde
nos julgavão menos fortes, ou menos acautelados, e a esperarem as
15
Sem embargo porém destas e de outras muitas razões,
que mostravão quanto era vãa e quimérica a opinião do
Padre Labat, não deixou ella de ter seguidores de grande
nome, ou enganados das apparentes razões de escriptor,
adoptadas sem exame, ou arrastados do falso zelo da glo-
ria da sua pátria, ou levados (o que he mais provável) do
baixo ciúme, com que ainda hoje muitos escriptores es-
trangeiros procurão deprimir, escurecer, ou pôr em es-
quecimento a gloria que os Portuguezes adquirirão com
tão justos titulos no século xv: ciúme, bem impróprio,
por certo, de todos os que se prezão de amar a sabedo-
ria; mas que desgraçadamente não he pouco vulgar entre
elles.
Nós, sem nos demorarmos mais em longa e escusada
discussão a este respeito, nem repetirmos o que outros
têem dito, contentar-nos-hemos de traduzir aqui as pala-
vras do douto geógrafo moderno Walkenaer, o qual fa-
lando das opiniões do Padre Labat, e tendo-as refutado
com argumentos e provas irrecusáveis, conclue assim:
«Devemos declarar aos nossos leitores, que as preten-
sões dos Dieppezes ao descobrimento das costas occiden-
taes de Africa, e as suas viagens ao longo delias até Serra
Leoa, anteriormente ás dos Portuguezes, não podem sus-
tentar o mais ligeiro exame: e que ainda que o Abbade
Prévost, e hum grande numero de escriptores hajão ado-
ptado a Relação do Padre Labat, nem por isso deixa ella
de ser huma grosseira impostura, á qual não faríamos,
sequer, a honra de a refutar, se muitos homens respeitá-
veis, arrastados do falso zelo da gloria da sua pátria, não
tivessem julgado devei* rej»roduzil-a, e acredital-a, com
náos da índia, e de Africa jui paragem dos Açores, para ahi nos
roubarem a seu salvo ; procedimento não só iniquo, mas alé pouco
leal, que por muito tempo, e muitas vezes foi objecto das queixas
do governo Portuguez ao de França, sem se obter dos seus Reis
mais do quo boas palavras, e novos insultos.
16
seus votos, e se ella não houvesse sido de algum modo
posta no catalogo das verdades reconhecidas, á força de
ser repetida sem contradicção por escriptores de huma
nação rival, que muitas vezes se mostrão empenhados
em roubar aos Francezes o mérito de seus mais incontes-
táveis descobrimentos » (10).
Assim restitue este sábio escriptor aos Portuguezes a
gloria, que indubitavelmente lhes pertence, de haverem
antes de quaesquer outros navegadores modernos fran-
queado o Bojador, descoberto as costas, terras, povos e
ilhas de Africa occidental, e patenteado o caminho para
a mais remota Ásia, e para o descobrimento do novo
mundo. E comtudo não foi isto bastante para reprimir, ou
conter hum pouco a inconsiderada hgeireza, com que Mr.
de Avezac, neste mesmo anno em que estamos escre-
vendo, e no opúsculo já citado (nota 6), depois de repe-
tir as fabulas do Padre Labat, e nos dar noticia de hwna
igreja fundada pelos Francezes na Mina em 1383, e dos
muitos estabelecimentos que fizerão por toda aquella
costa, conclue em tom decretorio e magistral, que estes
factos têeni sido contestados pelo único fundamento da
commum fama, que proclamou como descobrimentos a
serie de reconhecimentos, que os Portuguezes effeiluárão
mais tarde ao longo das costas de Africa, inconsideração,
e hgeireza que seria incomprehensivel, se não fosse tão
frequente em outros escriptores, e em cuja refutação não
julgámos dever gastar mais palavras.
Outro escriptor, de não vulgar credito nos estudos geo-
gráficos, não achando fundamento provável, em que po-
dasse firmar as fabulas do Padre Labat, recorreo a outros
meios de deslustrar a gloria dos Portuguezes, e do sábio
Príncipe que os instruio, guiou e animou, e suppoz que
(10) Revue Encyclopédique, ou Analyse raisonnée. òíC. Maio de
1828, pag. 327, e mais especialmente pag. 335.
17
as primeiras lenlativas dos Portuguezes na costa Occiden-
tal de Africa ínrão ordenadas por el-fíei D. João I com o
só intuito de acommeller pela retar/uarda os Mouros, a
quem intentava fazer .t^uerra; e que depois disto se forão
seguindo os descol)timenlos, (juasi como meras conse-
quências daquelle piinieiro intento. Assim [)arece que re-
duz este escriptor hiima empreza tão extraordinária, e
seguida por tantos annos com invencivel constância, a
quasi puro effeito do acaso, ou a hum successo secundá-
rio, que não entrava no plano e nas intenções de el-Rei,
nem do Ínclito Infante seu filho.
«D. João I (diz este escriptor), Rei de Portugal, tendo
resolvido usar de represálias contra os Mouros, esquipou
huma armada para hir acommetter as costas de Berbéria.
Despachou alguns navios, que i^econhecessem a costa me-
ridional deste paiz, sem outro intento mais que o de tomar
os Mouros pela retaguarda, ou acommettel-os por onde
elles estivessem menos prevenidos para a defeza. Até en-
tão o cabo de Nam era o limite que os aventureiros Por-
tuguezes não tinhão transgredido. Mas desta vez adian-
tárão-se até o Bojador, palavra que na lingua Portugueza
quer ãizer praia a dobrar (rivage à doubler)», á-c.
Todo este discurso, porém, he fundado em supposiçôes
arbitrarias, he destituído de fundamento algum solido, e
he contrario á verdade histórica.
Primeiramente : todos os escriptores Portuguezes, sem
excepção alguma, atlribuem a primeira idéa e projecto dos
descobrimentos ao Infante D. Henrique, e não a el-Rei seu
pai ; e suppõem ser este pensamento inspirado ao immor-
tal Principe pelos vastos conhecimentos que tinha adqui-
rido da geografia, cosmogralia, e náutica, para cujo adian-
tamento fundou a famosa escola de Sagies, donde sahírão
tantos homens consummados naquellas sciencias.
Em segundo logar: nem o projecto dos descobrimentos
teve relação alguma directa com a foninda dcOuta: nem
TOMO V _>
18
el-Rei D. João I teve lembrança ou inlenlo algum de to-
mar os Mouros pela retaguarda desta praça; nem com
esse intento, ou sem elle, despachou hum só navio, quanto
mais armada, para reconhecer a costa meridional deste
paiz, como erradamente diz o escriptor. El-Rei tendo re-
solvido a conquista de Ceuta, mandou, na verdade, reco-
nhecer a praça, a sua situação, e a costa do mar adjacente.
A este reconhecimento forão D. Álvaro Gonçalves Camelo,
Prior do Crato, e Aííonso Furtado, Capitão-mór do mar,
com sós duas galeras, cujo destino apparente era huma
viagem á Sicília, e certa negociação com a Rainha D. Rran-
ca, que ali reinava. As galeras demandarão Ceuta sob pre-
texto de se proverem de algumas cousas necessárias á sua
derrota, e depois de examinarem, e sondarem a costa (não
a meridionai mas sim a do norte contra Hespanha), e de
tirarem o plano da praça, tomarão eíTectivamente o rumo
de Sicilia para melhor occultarem os seus verdadeiros in-
tentos, e passado pouco tempo, voltarão a Portugal com
as informações que el-Rei desejava, e a que os havia man-
dado. Não iiouve nenhum outro reconhecimento de cos-
ias meridionaes, nem outros alguns navios que a isso
fossem.
Em verdade custa a crer, e nós não podemos deixar de
admirar, que hum escriptor geógrafo ouse escrever, que
el-Rei D. João 1 querendo tomar Ceuta, e pretendendo
com esse fim incommodar a retaguarda dos Mouros, man-
dasse as suas esquadras ao cabo de Nam, e ainda além
delle ao Bojador! Basta lançar os olhos a huma carta geo-
gráfica para se ver quanto he absurdo este pensamento.
Demais, que a praça de Ceuta foi tomada em 1415, e
só depois desta conquista he que nos consta que o Infante
mandasse os seus navios a dobrar o Bojador para o sul,
apartando-se cada vez mais da retaguarda de Ceuta, e dos
limites do império de Marrocos, e insistindo neste em-
penho por cousa de doze annos, até effectivamente fran-
quear aquelle então temeroso passo, pelos annos de 1429
ou 1430.
He portanto fora de duvida, que o sábio Infante levou
na gloriosa empreza de seus descobrimentos hum fim
mais alto e mais importante do que a mesquinha idéa de
colher os Mouros pela retaguarda, idéa da qual se não diz
huma só palavra na vida do Infante, nem de seu augusto
pai, nem tão pouco em historia alguma dos descobrimen-
tos Portuguezes.
Este alto e importante fim, este generoso e magnânimo
intento do Infante, foi expressamente declarado por elle
mesmo na supphca, que dirigio á Santidade do Papa Ni-
coláo V, em virtude da qual se expedio a Bulia de 6 dos
idos de Janeiro do anno da Encarnação do Senhor de
1454, confirmada logo depois pelo Santo Padre Calixto III
a 3 dos idos de Março do anno da Encarnação de 1455.
Dizia o Infante : « Que tinha por noticia, que nunca, ou
ao menos desde a memoria dos homens, houvera costume
de navegar o mar Oceano para as regiões meridionaes, e
orientaes, sendo o mesmo mar tão desconhecido a nós os
occidentaes, que nenhuma certa noticia tinhamos das gen-
tes daquellas partes; pelo que julgava fazer grande ser-
viço a Deos, se por sua industria e trabalho se fizesse o
dito mar navegável até aos povos Indianos, que se dizia
serem Christãos, a fim de participar e communicar com
elles; de empregar o seu auxilio contra os Sarracenos,
e outros inimigos do nome Christão: e de fazer pregar
u Evangelho aos idolatras, que porventura habitassem
aquellas remotissimas regiõesy> (11). Por onde se vé cla-
(H) "Piacterea (diz a Bulia) cuiu olim ad ipsiiis liiJantis perve-
nisset notiliam, quod nunquam, vol saltem a memoria hominum,
iioti consuevisset Tperhujnsniddi Oceannm iiuirc mcridionales, et orien-
ta Irs pia (/as navif)ori, iliudque ikiIjís ocfiduis adeo forct incognilum.
ut nullam de parfiuin illanun gentibus cerlam nofitiam haberemus;
credens se tnaximum in lioc Deo praestare obsequium, si ejus opera
20
ramente quaes erão os primeiros e originaes intentos do
Infante, e quão longe estava da verdade o escriptor, que
acabámos de refutar.
O mesmo escriptor porém parece que não tinha
grande confiança nas suas próprias idéas; porque pondo
de parte a guerra que se queria fazer aos Mouros pela
retaguarda, varia de opinião e de principio, e diz : « Que
o bom êxito da empreza da conquista das Canárias pelo
Francez Bethencourt em 1402 fora o que dera o primeiro
impulso a todas as mais, que se seguirão naqiiellas para-
gens. Esta lembrança não he mais feliz que a precedente,
nem estriba em melhores fundamentos.
A conquista das Canárias, quando quer, e por quem
quer que fosse feita, não tinha relação alguma com a na-
vegação e descobrimento dos mares e terras meridionaes,
e orientaes para passar d índia, que era (como acabá-
mos de ver) o pensamento do Infante, e a alma da sua em-
preza. Não facilitava nem aquella navegação, nem aquelle
descobrimento: não facilitava, ao menos, a passagem do
cabo Bojador, que lhe ficava hum pouco ao sul. Os nave-
gadores Porluguezes do Infante D. Henrique nunca pro-
curarão, nem tomarão as Canárias como ponto de partida
para suas expedições, nem como baliza que os orientasse
na direcção de suas viagens.
Se o escriptor quer dizer, que o Infante estava pei'-
plexo, ou irresoluto, ou timido em suas resoluções, e que
o bom successo do Francez Bethencourt o animou, e esti-
ei industria 7iiare ipsinn nsqne aã Indos, qni Christi nomen colere di-
cuntur narigabilc fieret, sicque cum lis parlicipare, et illos in Chris-
tianorum auxiiium adversus Sarracenos, et alios hujusinodi fidei hos-
tes commovere posset, ac nonnullos gentiles, seu paganos, nefan-
díssima Mahumetis secta uiinime infectos, populos, inibi médio exis-
tentes, continuo debellare, iisque incognitum sacratissimum Ciiristi
nomen praedicare, ac facere prsedit^ari », &c. Provas daHistatia Ge-
nenh(]ka. tom. !."
21
rnuloLi a proseguir a sua empreza, erra ainda mais gros-
seiramente, e mostra grande ignorância da historia das
Canárias.
As Canárias tinhão sido procuradas, reconhecidas, e vi-
sitadas pelos Portuguezes no século xiv mais de huma
vez. ENRei D. Affonso IV intentando conquistal-as, man-
dou a ellas os seus navios antes do anno de 1336, e se-
gunda vez em 1341; e no anno de 1344 dizia ao Santo
Padre Clemente VI: «Que quando cuidava em mandar
huma armada á conquista daquellas ilhas, fora impedido
pela guerra com el-Rei de Castella, e depois com os
Mouros (12). Zurita faz menção de navegantes Guipus-
coanos, e Andaluzes, queforão m descobrimento das Caná-
rias em 1393, e se apossarão de algumas delias, e acres-
centa, que finalmente el-Rei D. Henrique III de Castella
facultara a Roberto de Braquemont no anno de 1401 o
reconhecel-as, e conquistal-as, e que commeltendo Bra-
quemont a expedição a seu parente João de Bethencourt,
este com effeito conquistara algumas, e levantara forta-
leza na Lançarote, em 1417.
Do que tudo manifestamente se collige: i.°, que a par-
ticular empreza da conquista das Canárias pelo Francez
(alias Normando) Bethencourt nenhuma influencia teve,
nem podia ter, nas emprezas marítimas da nossa gente;
pois nem era nova, nem extraordinária, nem tinha por
objecto descobrir novas terras e novos mares, mas sim
e tão somente conquistar ilhas já conhecidas, e muito an-
tes frequentadas por outros navegantes, e especialmente
pelos próprios Portuguezes; 2.", que ainda concedendo
(postoque seja falso) que a conquista das Canárias fosse
capaz de dar o primeiro impulso aos descobrimentos Por-
tuguezes, nenhuma necessidade tinha o Infante de esperar
(12) Vejão-se as duas Memorias do Sr. .loaquim José da Cosfa
do Macedo, nas Collenves ila Academia Real das Sciencias de Lis-
boa, totii. 0.". pari. \.\ pag. H. r loiíi. 11/', iiarl. 2.-\ pag. 177.
22
que esse impulso lhe viesse de França, ou da Normandia,
pois o tinha mais perto, em sua própria caza, e nas em-
prezas de seu bisavô D. Aífonso IV; e, consequentemente,
3.°, que se a gloriosa originalidade dos descobi-imentos
do Infante D. Henrique podesse ser deslumbrada, ou oífus-
cada pelo descobrimento ou conquista das Canárias, não
caberia por certo essa honra ao navegante Normando, que
não fez mais que repetir o que muitos outros tinhão feito
antes delle.
Mas não nos enganemos com a idéa de orighmUdade,
que no nosso caso parece não ter sido sempre bem deter-
minada pelos escriptores. A (jriginalidade, que nós atlri-
buimos ás idéas, planos, e descobrimentos do immortal
D. Henrique, não consiste precisamente em que só elle
mandasse navegar mares, e descobrir terras desconheci-
das, ou que fosse elle o primeiro que o emprendesse;
consiste sim, e propriamente, em que desde tem[)Os an-
teriores á era Christãa só elle projectou a circmnnavega-
çào Africana, e por meio delia abrir caminho mar it imo
para o Oriente, projecto que, pelo menos desde aquelles
remotos tempos, ninguém formou antes deile, e ninguém
executou senão elle, e os Portuguezes que se lhe seguirão
depois da sua morte.
E tanto he certo serem estes os principaes intentos do
illustre Infante, e as bases, ou idéas fundamentaes do seu
plano, que as contradicções que de muitos ao principio ex-
perimentou, e as difficuldades que lhe oppunhão, erão em
grande parte fundadas na supposta ou acreditada impos-
sibilidade de haver habitantes na zona tórrida, e na outra
impossibilidade da existência dos antípodas (13): contra-
(13) Entre as razões que, segundo os nossos escriptores, se alle-
gavão para impugnar os projectos do Infante D. Henrique, duas erão
as principaes : liuma fundada na opinião de Aristóteles, recebida
naquelle tempo nas escolas, que negava que a Zona Tórrida podesse
ser habitada; opinião que contirmavão com a dePlinio, de Virgilio,
23
dicções, e difficuldades, que não podião ter lugar algum,
se os projectos reconhecidos do Infante não consistissem
em descobrir as costas e mares occidentaes e meridionaes
de Africa, e passar por este caminho ao opposto hemis-
fério, aonde somente podião achar-se os antipodas. Vejão
pois os escriptores estrangeiros que relação tem a con-
quista das Canárias com hum tão vasto e grandioso pro-
jecto, e quão insensato he atlribuir a tão pequena causa
hum eífeito tão extraordinário e tão novo !
Finalmente, o escriptor que acabamos de refutar, para
nos não deixar (ao que parece) duvida alguma acerca do
espirito, e das intensões que o dirigem, diz ainda depois,
de Ovidio, e de outros antigos. A outra era que Lactancio, Santo
Agostinho, e muitos outros escriptores, respeitáveis pelo seu saber
e piedade, constantemente linhão affirmado não haver, nem poder
haver antipodas. A estas razões acrescentavão, que Pindaro, famoso
poeta Grego, S. Gregório Nazianzeno, e outros erão de parecer que
o Oceano se não podia navegar além das coluranas de Hercules; e
finalmente discorrião, que as terras que o Infante queria indagar,
parecia terem sido cdadas somente para habitação de animaes bru-
tos e de feras selvagens, e que se assim não fosse, seria impossivei
que de tantos Reis e Principes, que no discurso dos séculos tinha ha-
vido nas Hespanhas, desejosos de se assignalarem por emprezas gran-
des e gloriosas, nenhum se lembrasse de mandar descobrir terras tão
visinhas, contentando-se (dizião) com a que Deos dera para habita-
ção dos homens, e não de brutos, como devia ser a que o Infante
buscava, ainda que se viesse a descobrir. Alguns acrescentão, que
ainda se dava outra razão contra os projectos do Infante, e era, que
quem navegasse para aquellas partes se converteria de branco em ne-
gro. Este modo do pensar, que bojo nos parece ridículo, era fundado
na opinião então corrente (o não sei se ainda do todo desvanecida)
que attribuia ás inthicncias do clima a côr que se observa nas dilfe-
rentes raças de homens, opinião que seguio Plinio, liv. 2.°, cap. 78."
(Aethiopas vicini siderii vapore lorreri. adnstisque similes qigni,
barba et capillo vibrato, non est dubium), e que parece indicar que
se não ignorava do toilo serom a(|uplles paizos. que so buscavão, ha-
bitados do homens negros, noticia que provavolmonlo se tinha adqui-
rido pelas informações dos Mouros.
24
que os Porluguezes descobrirão as costas de Africa aju-
dados de alguns Italianos, que erão então os iinicos que
os podião dirigir.
Nós não disputámos aos Italianos, nem a nenliuma ou-
tra nação o seu merecimento verdadeiro, e solido, e pro-
vado, de qualquer natureza que elle seja; nem queremos
fazer aqui odiosas comparações. Mas não podemos, nem
devemos escusar-nos a dizer, que os Italianos não derão
ás navegações Portuguezas soccorro algum essencial, nem
de sciencia, nem de forças, nem de industria, nem de pe-
ricia náutica; e que alguns poucos, que por acaso tiverão
parte em nossas emprezas. em vez de nos trazerem soc-
corro, vinlião pelo contrario participar da nossa gloria, e
talvez dos lucros, que começavão a resultar de nossos des-
cobrimentos e conquistas.
Succedia naquelles tempos o mesmo que ainda hoje
succede em circumstancias similhantes.
Alguns aventureiros illustres, amigos da gloria, e de-
sejosos de ler parte nas grandes e famosas emprezas, vi-
nhão espontaneamente oíferecer-se aos Príncipes Portu-
guezes, attrahidos do seu nome, e da fama que delles cor-
ria por toda a Europa, para os servirem no mar ou na
terra, e illustrarem assim suas pessoas, e adquirirem
honra, reputação, e gloria (14).
(14) Quando el-Rei D. João I preparava a grande armada, com
que havia de hir á conquista de Cauta, consta pela historia, que al-
guns estrangeiros, Inglezes, Francezes. e Allemães vierão offerecer-se
ao seu serviço, e effectivamente o acompanharão, levando hum delles
quatro ou cinco haixeis, e outro quarenta lanças á sua custa. Pelos
annos de 1442 veio a Portugal hum Gentil-hometn da caza do Im-
perador Frederico III, por nome Baltazar, o qual quiz embarcar-se
em huma das expedições cá costa de Africa, unicamente com o fim
de satisfazer a sua curiosidade, e ver as cousas novas, que a fama
por toda a parte divulgava das navegações Portuguezas. Em 1446
veio com o mesmo intento outro fidalgo da corte de Dinamarca cha-
mado Balarte, e teve a infelicidade de morrer de desastre em Cabo
:25
Outros por descontentes das suas pátrias, ou por de-
sejarem e buscarem melhor fortuna do que nellas gosa-
vão, vinhão alistar-se no serviço dos nossos Reis e do In-
fante, aonde suppunhão, e espera vão maiores e mais
certos interesses.
Outros serião talvez ciiamados e convidados pelos nos-
sos Príncipes, que nunca desdenharão aproveitar os es-
trangeiros beneméritos, ou para augmentarem a massa
dos conhecimentos scientificos, ou para terem em seu ser-
viço maior numero de empregados úteis, quando o mesmo
serviço era vasto, e importante.
Pelo que respeita em particular aos Italianos, o escri-
ptor que afíirma, que elles ajudarão os Portuguezes em
seus descobrimentos, e que erão os únicos que os po-
Hão dirigir, he que devia indica r-nos quem forão es-
ses Italianos, mestres, auxiliadores, e directores dos Por-
tuguezes; mas he mais fácil usar de frases vagas, que
não têera significação alguma determinada, do que re-
ferir sincera e desapaixonadamente factos verdadeiros e
provados.
O primeiro Italiano, de algum nome, que tomou parte
Verde, querendo haver hum elefante vivo. Em 1493 veio hum grande
senhor Francez, que os nossos charaão Mr. de Liou, oíferecer-se a
el-Rei D. João II para o servir com trezentas lanças na guerra de
Africa. Em lolG escrevia Henrique VIII, Rei de Inglaterra, a el-Rei
D. Manoel recommendando-lhe coin encarecidas palavras a João
Wallop, nobre cavalleiro Inglez, varão illustre na milicia terrestre
e naval, que desejava servir debaixo das bandeiras de Portugal,
movido das grandes cousas que tinha ouvido dos Portuguezes, o
de como á custa de inmicnsas despezas, c com incrivel valor Unhão
alcançado formosas victoi'ias, doscoberlo hum mundo d'anlcs igno-
rado (itjnDlum antea orlw.m), e It^vado as bandeiras de Christo victo-
riosas por todas as praias do Oceano, vencendo Reis e povos ate o
Mar Vermelho. E porque todos estes factos são verdadeiros, atre-
ver-se-ha altmem a dizer, que as emprozas e grandes feitos dos Por-
tuguezes são d(í\i(Ins ao auxilid, ou á direcção dos Aliemães, e dos
Dinamarquczes, dos Prancezcs, ou dos Inglezes?
em nossas navegações, foi Luiz de Carfawosío, Veneziano,
o qual, segundo suas próprias Relações, veio a Portugal
em 1444, e fez duas viagens á costa de Africa, huma em
\ 445, e outra era 1 446, vinte e oito, ou vinte e nove annos
depois de começadas as emprezas do Infante D. Henri-
que, e vencidas as primeiras difiQculdades, e quando já
os Portuguezes, sem auxilio nem direcção estrangeira, ti-
nhão descoberto as ilhas da Madeira, Porto Santo, e De-
serta, algumas do Archipelago dos Açores, e a costa de
Africa até Cabo Verde inclusivamente. Cadamosto nem foi
chamado, nem veio de propósito a Portugal. Dirigia-se ao
norte a negociar suas fazendas; sahio em terra no cabo
de Sagres; e ahi informado de nossas navegações, e dos
lucros que já se tiravão do commercio dos lugares des-
cobertos, desejou ser admittido em nossos navios, e avis-
tando-se com o Infante, obteve delle fácil consentimento.
Embarcou em huma caravella do mesmo Infante, que en-
tão se apromptava para Africa, governada e guarnecida
de Portuguezes ; e nella correo a costa de Cabo Verde para
o sul até o rio Gambia, e paiz deste nome, que era o que
deterrmnadammto buscarão os Portuguezes por expressa
ordem do Jn/antc. Nesta primeira viagem de Cadamosto
se encontrou a caravella, era que elle hia, com outras duas,
em que navegava António de JSola, Genovez (de que logo
falaremos) com alguns Portuguezes criados do infante,
e accordando-se todos, resolverão hir em conserva, e as-
sim o executarão.
No anno seguinte de 1446 fez Cadamosto a sua segunda
viagem em huma caravella, acompanhado de outras duas,
huraa do Infante D. Henrique, e outra era que hia Antó-
nio de Nola. Na altura de Cabo Verde descobrirão quatro
ilhas daquelle archipelago, descobrirão a costa do conti-
nente até o Rio Grande, e defronte delle algumas ilhas,
que parece serem as do archipelago dos Bissangos, donde
voltarão a Portugal : e não sabemos que Cadamosto fizesse
27
outra alguma viagem para arliaular os descobrimentos Por-
tuguezes.
Nestas duas pode ser, e he de presumir que eile mos-
trasse génio curioso, animo resoluto, e até alguma perí-
cia náutica; mas nós não sabemos, que por sua direcção
e magistério se vencesse alguma especial ditlíiculdade, ou
que elle por qualquer modo corregisse, rectificasse, ou
aperfeiçoasse os conhecimentos náuticos dos Portugue-
zes, nem os planos, ou os melhodos de suas navegações;
e julgamos não fazer injuria a Gadamosto, se disser-
mos, que o seu nome não seria tão conhecido, se elle
não tivesse escripto as Relações das suas viagens, que
divulgando-se pela Europa, e perpetuando-se depois pela
imprensa, o associarão para sempre á gloria de nossas
emprezas.
O segundo Italiano, de que temos noticia que tomasse
parte em nossas navegações, he António de Nola, Geno-
vez. que ha pouco nomeámos. Não temos certo conheci-
mento dos motivos, que o trouxerão a Portugal; e so-
mente alguns de nossos antigos escriptores dizem, que
elle, descontente da sua republica, viera a este reino com
duas náos e hum barinel, trazendo em sua companhia
dous sobrinhos, ou hum sobrinho e hum filho natural,
ambos do mesmo appellido. Dos seus descobrimentos sa-
bemos o que diz Gadamosto, e nós referimos nos antece-
dentes parágrafos. Os escriptores Portuguezes e estran-
geiros vincularão o nome de António de Nola ao desco-
brimento das ilhas de Cabo Verde, postoque com alguns
erros e contradicções chronologicas: nós porém, sem o
querermos despojar dessa gloria, contentâmo-nos com
reflectir, que as ilhas de Cabo Verde, na situação em que
estavão, havião de ser mais cedo ou mais tarde desco-
bertas i)or alguns dos muitos navegantes Portuguezes
que corrião aquelles mares, e que o seu descobrimento
por António de Nola nos não parece bastante pai-a lhe dar
28
O titulo pomposo e enfático de auxiliador e director das
nossas emprezas maritimas.
Outro tanto dizemos de Fernando Pó, que aqui apon-
tamos por nos parecer Italiano o seu appellido, postoque
em nenhum dos nossos escriptores o temos achado desi-
gnado como estrangeiro. Este navegador descobrio a ilha,
que conserva o seu nome, e he tudo quanto sabemos da
sua perícia náutica.
O quarto Italiano de nome, que nos occorre, he o ce-
lebre America Vespticio, Florentino, o qual foi positiva-
mente convidado por el-Rei D. Manoel, mais de oitenta
annos depois de começadas e muito adiantadas as nossas
emprezas maritimas, e por mandado daquelle Príncipe
reconheceo as costas da Terra de Santa Cruz (Brazil), já
descoberta por Cabral em 1300, e tocou vários pontos
daquellas vastas regiões, hindo, comtudo, nas suas duas
viagens, em navios Portuguezes, navegados por Portu-
guezes, e debaixo da direcção de Capitães Portuguezes.
Ninguém dirá (nos parece) que naquelle tempo necessi-
tássemos ainda das direcções Italianas em nossas nave-
gações.
Em summa: a passagem do cabo Bojador tão dilFicul-
tosa, e tão temida naquelles primeiros tempos; o desco-
brimento da alta e baixa Guiné; a estupenda passagem
do cabo da Boa Esperança; a derrota do grande Gama até
Calecut, que foi o acontecimento de maior interesse, e de
igual diíFiculdade, e os ousados descobrimentos que logo
se seguirão até ás costas mais remotas da China, e do Ja-
pão, d-c, tudo isto foi obra somente de Portuguezes, em
que nenhum estrangeiro teve parte, como he constante
da historia.
Seja-nos permittido acrescentar ainda, em nosso justo
desagravo, que nem os Italianos, nem outra alguma na-
ção da Europa, era naquelles princípios, e depois no de-
curso do século XV, mais instruída que os Poituguezes
Í9
nos estudos da astronomia, cosmografia, e náutica (15).
Os Italianos navegavão, he verdade, desde longos tem-
pos, e derramavão pela Europa as drogas e especiarias
do oriente, e com isto tinhão chegado a grande riqueza,
poder, e luzimento as republicas de Veneza, Génova, Piza,
Florença, d-c; comtudo estas suas navegações erão quasi
meramente commerciaes ; limitavão-se aos mares conhe-
cidos, e especialmente ás costas do Mediterrâneo, mais
ou menos praticadas das outras nações marítimas ; e nunca
(15) Citaremos em prova disto dous ou três escriptores, que se
não podem reputar suspeitos. Seja o primeiro Montucla, Historia
das Mathematicas, Supplemento contendo a historia da navegação,
tom.â.", pag. 6i8 : «Aos Portuguezes devemos (he forçoso confessal-o)
o exemplo deste ardor que nos grangeou hum conhecimento mais
perfeito do globo. No meio do século xv, D. Henrique, filho de João,
Rei de Portugal, Principe filosofo, e versado na mathematica, con-
cebeo o nobre desígnio de adiantar os descobrimentos. . . ao longo
das costas de Africa. Ajudado dos dous mathematicos José e Rodrigo,
ensinou aos navegantes methodos, e lhes deu instrumentos próprios
para observai" o sol e as estreitas. . . A invenção das cartas hydrogra-
ficas he obra do Principe D. Henrique », &c.
Malte Brun, Précis de Geographie: «A marinha Portugueza foi
mui florente no tempo de D. .loão I. Havia então no reino escolas
mui celebres para os estudos da navegação, em hunia das quaes aca-
bou Colombo de aperfeiçoar os seus talentos. No mesmo reinado erão
os Portuguezes reputados como os primeiros navegadores do seu sé-
culo, e Portugal occupava o primeiro lugar entre as potencias ma-
ritimas».
Bory de St. Vincent: «Nestes tempos heróicos se arremeçou o
génio Portuguez a hir brilhar até ás extremidades da terra. A arte
da navegação, e ns sciencias geográficas cultivadas com feliz successo
abrirão o vasto caminho dos mares aos valerosos aventureiros. . .
Pouco a pouco a costa de Africa foi explorada até ao fundo da Guiné
meridional... Em 1497 foi dobrado o cabo Tormentoso, e descoberto
o caminho da índia: vierão alguns guerreiros do Tejo dictar leis
ao gollo Pérsico, ao Sinde, c ao Ganges. Huiiia multidão de ilhas,
a que nem o nome se sabia, tomarão seu lugar na carta geográfica,
e a metade da America meridional foi também tributaria a este canto
da Europa », &('.
3Q
tiverão por objecto o descobrimento e exploração de ma-
res, terras, e costas totalmente ignoradas dos Europeos.
E d'af{ui veio não só a admiração e o espanto que em
toda a Europa causarão naquelles tempos as ousadas na-
vegações Portuguezas (que alguns tinhão, como já disse-
mos, por insanas, até entre os próprios Italianos) (16),
mas também o empenho com que muitos estrangeiros sá-
bios, e curiosos, vinhão a Portugal para verem com seus
olhos o que a fama divulgava, e para reconhecerem por
si mesmos o que de outro modo parecia superior a toda
a credibilidade.
Agora que nos temos demorado neste assumpto mais
do que ao principio foi nosso intento, não será totalmente
alheio delle notar ainda algumas outras falsidades, e erros
não menos grosseiros, que se têem escripto ao mesmo
respeito, para que por elles se veja com quanta razão nos
queixámos, e quão justa he, e bem merecida a indignação
que a cada passo nos excita o baixo ciúme, ou a affectada
ignorância, com que os estrangeiros tratão nossas cousas.
Mr. RoUin (Histoire ancienne) tratando dos progressos
da navegação, e encarecendo as vantagens da bússola, e
de alguns outros instrumentos, que se forão inventando, e
taboas e cálculos que se tizerão para facilitar a observação
dos astros, continua assim: «Os pilotos se aproveitarão
destas vantagens, e ajudados deste soccorro atravessarão
mares desconhecidos, e o successo das primeiras viagens
os animou a tentar novos descobrimentos. Todos os povos
da Europa se empregarão d 'porfia em navegar mares
desconhecidos. Os Francezes forão dos primeiros que as-
signalárão a sua coragem e dexteridade. Occupárão as
Canárias, e penetrarão mui avante em Guiné. Os Portu-
(16) Fr. Bernardo de Brito no Elorjio de el-Rei D. Manoel, diz
que «alguns llalianoí^ chamavão temerárias as emprezas dos Portu-
gnezes, por não serem dentro de caza, e com destruição da pátria,
como as suas delles ».
3i
guezes tomarão a ilha da Madeira, e a de Cabo Verde. Os
Flamengos descobrirão as ilhas dos Açores. Estes des-
cobrimentos não farão mais que preludio do do novo
mundo». Aqui fala de Colombo, e logo continua: « Por
outra parte os pilotos do Rei de Portugal, que até então
não tinlião feito mais que correr as costas de Africa, do-
brarão então o cabo da Boa Esperança», &c.
Tanta força tem a preoccupação, o amor desordenado
da pátria, ou a presumpção da gloria nacional, que hum
escriptor tão sizudo, e tão douto como Rollin, lhe não
pôde resistir, escrevendo as palavras citadas com menos-
cabo da verdade, do seu próprio credito, e até do seu
saber.
Nós perguntaremos primeiro a Rollin, que pilotos forão
esses que atravessarão mares desconhecidos, e quaes os
povos da Europa que á porfia se empregarão em os na-
vegar?
Se o douto escriptor quizer ser sincero e verídico não
terá muito que responder a esta pergunta, senão recor-
rendo aos pilotos Portuguezes, e á nação Portugueza ; pois
de nenhuns outros e de nenhuma outra sabemos, que nos
tempos de que falia Rollin atravessassem mares desconhe-
cidos, e porfiassem em os navegar.
Mr. Rollin julga-se com direito a pôr os Francezes na
classe dos primeiros, que naquellas emprezas assignalá-
rão a sua coragem e dexteridade, repetindo sem prova
alguma os suppostos descobrimentos de Guiné, e a con-
quista das Canárias. Mas ambas estas quimeras ficão acima
refutadas, e nos parece que não merecem mais longa dis-
cussão.
.Das outras nações não aponta Rollin outra alguma, que
fizesse descobrimentos marítimos naquelle tempo, senão
os Flamengos, a quem attribue o descobrimento das ilhas
dos Açores. Esta opinião he destituída de fundamento, e
alguns escriptores que a tem seguido, talão com tanta va-
32
riedade e incerteza, que bem mostrão não procederem
sobre razões solidas; mas sem nos empenharmos aqui
em discutir este ponto (que liavemos de tratar em outra
parte) contentâmo-nos com dizer: 1.°, que muito antes
dos Flamengos tinhão os Portuguezes descoberto as prin-
cipaes illias do archipelago dos Açores, como he sabido;
2.°, que ainda suppondo certo esse descobrimento dos
Flamengos, resta muito para mostrar, que os navegado-
res desta nação por/idrão em navegar mares desconhe-
cidos; e resta ainda muito mais para provar, que todas
as nações entrarão no mesmo empenho na época de que
fala Rollin.
Ultimamente descobre-se mais claramente o ciúme do
auctor, quando no meio desse alvoroço, e porfiado em-
penho, que suppõe em todas as nações, apenas se digna
attribuir aos Portuguezes o descobrimento da ilha da Ma-
deira, e da de Cabo Verde, sendo bem notável, que para
attenuar ainda mais o merecimento dos Portuguezes, até
supponha este escriptor huma só ilha de Cabo Verde (Visle
de Madera, et celle da Cop-vcrd), como se falando delias
no numero plural avultasse mais a gloria dos descobri-
dores !
Estes descobrimentos (diz Rollin) não farão mais que
preludio do do novo mundo. Nós ousámos contradizer,
nesta parte, redondamente o douto escriptor, e susten-
tamos que os descobrimentos dos Portuguezes desde o
anno 1416, em que os começarão, até o de 1492 em que
Colombo descobrio as Antilhas, forão alguma cousa mais
do que preludio deste ultimo successo. Pois que? Julga
Rollin, ou pôde julgar alguma pessoa de são juizo, que o
descobrimento de toda a costa occidenlal de Africa e do
cabo da Boa Esperança (já dobrado ao tempo da expedi-
ção de Colombo), não foi mais que preludio da viagem de
Colombo? Ainda quando as navegações e os navegadores
Portuguezes não tivessem dado a Colombo exemplo e li-
:í3
çues, ainda quando nunca tivessem existido os descobri-
mentos de Colombo, poderia acaso negar-se algum valoi^
próprio e real a descobrimentos, que facilitarão a circum-
navegação Africana; que abrirão o caminho maritimo do
oriente; que mostrarão aos astrónomos novos ceos e no-
vas estrellas; que desvanecerão a antiga preoccupação de
ser inhabitavel a zona tonida, e de serem impossíveis os
antípodas; e finalmente, que fizerão confessar ao mundo
(segundo a frase do illustre Marechal de Turenna) a igno-
rância, em. qiip. vivia até ao tempo do glorioso atrevimento
Portnguez?
«Os pilotos do Uei de Portugal (diz ainda RoUín) que
até ao descobiimcnío de Colombo não tin/ião feito mais
que correr as costas de A/rica, dobrarão então o cabo da
Boa Esperança.»
O escriptor ignorava (ao que parece) ([ue o cabo da
Boa Esperança tinha sido descoberto e dobrado pelo in-
trépido navegador Portuguez Bartliolomeu Dias, man-
dado a essa grande empreza por el-Rei D. João II, em
1486, alguns annos antes que Colombo começasse a sua
navegação.
Perdoemos ao escriptor Francez esta ignorância: mas
quem ha de perdoar-lhe o affectado desdém, com que diz
que até áquelle tempo os pilotos do Rei de Portugal não
tinhão feito mais que correr as costas de Africa?
Os pilotos do Rei de Portugal, e os grandes navegado-
res Portugufzes dnquelle século não só tinhão corrido
toda a costa occidental de Africa, por elles mesmos palmo
a palmo descoberta, e nunca porventura vista ou tocada,
na sua maior parte, de alguns outros navegadores antigos
ou modernos; mas tinhão também fundado nella fortale-
zas, feitorias, povoações, e cidades: tiniiãoannunciadoem
algumas daquellas barbaras regiíjes o Evangelho de Jesu
Christo, e plafilado a sua fé; tinhão revelado á Europa e
ao mundo as immensas vantagens que dali podião vir ao
TOMO V 3
34
commercio; tinhão ligado communicação e amizade cora
os Príncipes Africanos, e feito algumas diligencias para
alcançarem noticia das grandes feiras de Tomboctu, e Hua-
dem, à-c. E com isto tinhão ainda descoberto e povoado
os archipelagos da Madeira, dos Açores, de Gabo Verde,
de S. Thomé; tinhão despachado viajantes por terra á
Abyssinia e á índia; e tinhão finalmente aberto o cami-
nho, por onde os sábios chegarão a alcançar o perfeito co-
nhecimento do globo que habitamos. E julga Mr. Rollin,
que satisfaz ;i verdade e sinceridade histórica, encerran-
do-se em dizer, que os pilotos do Rei de Portugal, até á
empreza de Colombo não tinhão feito mais que correr as
costas de Africa?! Nós, por certo, temos pejo, e nos sen-
timos magoado de notar taes ignorâncias, e tão ineptas
reticencias em hum escriptor tão erudito, e tão acreditado
entre os eruditos !
Seria necessário escrever hum grosso volume, se qui-
zessemos notar os erros, as ignorâncias, os anachronis-
mos, e as falsidades, que a cada passo se lêem nos escriptos
estrangeiros acerca de nossos descobrimentos e suas cir-
cumstancias.
Hum, por exemplo, diz que os Portuguezes se glorião
de serem os primeiros que conhecerão o cabo da Boa Es-
perança, mas que he indubitável que tombem os antigos
o conhecerão, sem comtudu designar quem forão estes
antigos (17). E em outro lugar, diz que osFrancezes des-
cobrirão a região de Guiné, e fundarão nella colónias;
mas que sendo o reino de França gravemente perturbado
pelas guerras de Carlos VI e VII, forão os Francezes ex-
pulsos de Guiné pelos Portuguezes, Inglezes, Hollande-
zes, Dinamarquezes, e Suecos, que todos ali tiverão esta-
belecimentos! (18).
(17) Moreri, Diccion. Univers., v. Ethiopia.
(18) Ibid.. íbid, V. Guiné.
35
Outro diz que o Cabo Verde fora conhecido antes que
os Portuguezes lá chegassem em 1474. Que Axim he hum
pequeno paiz na costa de Africa habitado antigamente
pelos Francezes, e que os Portuguezes os lançarão d^ali,
e edificarão no mesmo lugar hum forte em 1416! Que se
crê que o cabo da Boa Esperança foi avistado em 1420
por hum navio que vinha da índia! Sem comtudo nos
dizer d'o?ide ou para onde vinha esle navio da índia em
1420, nem aonde ancorou, ou deo noticia de ter avistado
o cabo! Este escriplor ainda acrescenta, que as ilhas do
Cômoro forão descobertas pelos Portuguezes; mas que
estes se portarão tão mal, que nunca mais os Europeos
poderão ali conservar-se (19).
Outro diz que a ilha de S. Thomé fora descoberta em
1405, a do Príncipe em 1471, a ([^Annobom em 1526, e
que os Portuguezes se apossarão de Çofala em 1586 (20).
Outro diz que o nome da China foi inventado pelos Por-
tuguezes. Que Bombaim he derivado das palavras Portu-
guezas buon-bahia. Que o nome de Siam fora dado pela
ignorância Portuçueza ao reino e capital, que assim seno-
meião. Que os nomes de Cochinchina, Siampa, e Cam-
boge são desconhecidos no paiz, d-c. Este mesmo escri-
ptor chama ilhas Paracels huns ilhotes defronte da costa
oriental da Cochinchina, aos quaes os Portuguezes deno-
minarão parce/^ com o nome genérico, que significa baixo
formado de penedos ou rochas, que sobem pouco acima
da super ficie do mar, á-c, á-c. (21).
Outro ainda diz, que os Francezes forão os primeiros
que abordarão á ilha de Madagáscar , e nella fuudárão
hum estabelecimento, que se não consernui (22), cVc. d-c.
(IS)) Mv. \\ni'f. Diriion. Vuicers. de Geoiiruf. Miidi'tii., otl.
do 18i;i.
(20) Mr. la (Jroix, Comp. de Gcoijynl'. moderu.. iil. ilf 1777.
(21) Pinckerton, Abreg. de Geograf., &c.
(22) Mr. de Bulíon, líht. mtur. de 1'Iwiiiiiu:
36
Taes são as liçOes que nos dão os estrangeiros, e a vin-
gança que tomão das que nós lhes demos no século xv, e
da gloria verdadeira e solida que então adquirimos!
NOTA NA EDIÇÃO DE 1840
O discurso que agora publicámos pela imprensa, foi es-
cripto ha cousa de dez annos, quando, achando-nos em
forçado e penoso ócio, procurávamos distrahir de amar-
gas cogitações o nosso espirito, e empregar o tempo com
alguma satisfação, e utilidade própria.
Succedendo, muito depois, dar leitura delle a algumas
pessoas de nossa amizade, e respeito, e julgando ellas que
a sua publicação poderia ser conveniente, não hesitámos
em consentir que se publicasse, e então lhe fizemos al-
gumas poucas e pequenas alterações.
Quando porém o tirávamos a limpo para a impressão,
vierão á nossa mão duas obras, que tocando alguns dos
pontos do mesmo Discurso, nos pareceo que não devião
ficar de todo sem resposta. E como a nossa situação já
então nos não permittisse entrar de espaço, e pausada-
mente nesse empenho, hmitámo-nos a escrever o seguinte
P. S., que bastará, emquanlo penna mais hábil não em-
prende, sobre tão importante assumpto, algum trabalho
mais acabado.
P. S. 1."
A primeira daquellas duas obras, que vierão á nossa
mão, tem por titulo Voyages en Afrique, comprenant
li's découveríes et mnqaêtes des Portiigais. Paris, 18H4,
2 vol., 8.°
No tom. \.^, pag. 106, confessa o escriptor com notá-
vel ingenuidade: a Que toda a parte occidental de Africa,
37
desde Gibraltar até o cabo da Boa Esperança, somente
foi bem conhecida depois que os Porttcguezcs dobrarão
este cabo, indo ás índias por mary>; mas logo acres-
centa:
«Comtudo, muitos viajantes, entre outros Villaul-bel-
lefbnd, eLabat, provão pelos monumentos, que ainda sub-
sistem em Africa, que desde o meio do século xív, isto he,
mais de cem annos antes dos primeiros descobrimentos
dos Portuguezes, alguns mercadores Francezes de Dieppe,
seguindo as costas desde Gibraltar, forão ao Senegal, e
formarão estabelecimentos sobre a costa de Malaguetta,
donde trazião pimenta e marfim. Dão-se por prova destas
viagens os nomes Francezes, que se têem conservado na-
quelles paizes, onde algumas bahias se chamão ainda
baies de France, e onde dous lugares se nomeião ainda,
hum le petit Dieppe, e outro le petit Paris. Ajuntão, que
os tambores negros batem ainda huma marcha Franceza!
E aíTirma-se emíim que o celebre castello da Mina fora
edificado pelos Poituguezes sobre as ruinas de hum an-
tigo estabelecimento Francez, que tinha sido abandonado
durante as guerras civis, assim como outras possessilies
em Cormentim e Commendo . Mas he difjlcil crer que tenhão
ficado tão poucos vestigios de tamanho poder. O que pa-
rece provado he que com efíeito os Normandos, inclinados
sempre, pela sua situação, ao commercio marítimo, fre-
quentarão longo tempo as costas de Africa, onde tiverão
feitorias, que as guerras civis fizerão abandonar depois
da morte de Carlos VI. He ao menos certo que quando os
Inglezes, primeiro a[)ós os Poituguezes, fizerão empre-
zas commerciaes na cosia de Guiné, os Francezes pare-
dão ter-se esquecido daqueUe caminho, a que só voltarão
algum tem[)o depois. »
Muito de propósito copiámos todo este lugar, traduzido
fiel e litteralmente em portuguez, para que por elle se
conlicça quanto he vão, inconsistente, e até cnntiMdictoric
38
O discurso do escriplor, e quanlo elle mesmo reconhecia
a verdade, que pretende encobrir e confundir.
Refere-se elle a muitos viajantes, que i)rovão as empre-
zas dos mercadores de Dieppe nas costas occidentaes de
Africa no século xiv. E quando era de esperar, e a im-
portância e novidade da matéria pedia que elle nomeasse
algum, ou alguns contemporâneos, ou ao menos dos
tempos próximos, que nos revelassem aquelle tão igno-
rado segredo, não achámos apontados senão os nomes de
Yillaut-bellefond, e do Padre Labat. ambos posteriores
trcs séculos e mais áquellas imaginadas cniprezas do sé-
culo XIV, e cujas opiniões já ficão devidamente avaliadas
no nosso Discurso (pag. He seguintes).
De vocábulos Francezes, usados na cosia de Africa, não
dão estes viajantes ou escriptores, nem podem dar, hum
único exemplo ; ao mesmo tempo que nós os Porluguezes
podemos apontar muitos, e ceitos vesligios, que lá licárão
(como era natural), e ainda hoje se conservão do nosso
idioma. O próprio escriplor, que refutámos, nos dá fre-
quentes provas disso, tanto nos breves vocabulários que
traz dos idiomas Fulo, Mandinga, e Gelofo, como nas in-
terpretações, que a cada passo nos ollerece dos vocábulos
daquelles paizes.
Chamar para aqui os nomes bahia de França, pequeno
Paris, pequeno Dieppe, sem indicai' hum só auctor, ou es-
cripto dos séculos xiv, xv, ou xvi, em que se achem taes
denominações, indica pobreza de provas, e he abusar de-
masiadamente da boa fé, e sinceridade dos leitores, ou ter
em pouco o seu juizo e discernimento.
Nada porém nos parece mais extravagante, ridículo, e
impróprio de hum escriplor serio e sizudo do que aífir-
mar, que ainda hoje os tambores negros tacão hunta mar-
cha Franceza! Nós convidámos o escriplor a nos dar
(porque será certamente cousa curiosa, e grata aos ama-
dores) em caracteres de musica alguma amostra das mar-
39
chas militares Francezas do século xiv, comparadas com
a actual musica negra das costas de Africa! Emquanto
elle porém se não prestar a este nosso innocente desejo
e convite, concordaremos com elle em dizer, como elle
diz, que he di/ficil crer que ficassem tão poucos (melhor
dissera nenhuns) vestígios de tamanho poder j, e de tantas
emprezas; e que esses mesmos suppostos vestígios se re-
duzão a três nomes modernos, e á musica dos tambores
dos negros!
As ruínas do estabelecimento Francez da Mina, que
Mr. de Avezac condecorou com o nome de igreja, e so-
bre as quaes, diz o nosso escriptor, que os Portuguezes
fundarão o castello de S. Jorge, estas ruínas, digo, nunca
existirão senão na fantasia dos escriptores que copiarão,
e ornarão as fabulas do Padre Labat. A historia da fun-
dação do castello e cidade de S. Jorge da Mina pelos Por-
tuguezes, de mandado do grande Rei D. João II, deve
ler-se em Garcia de Rezende, escriptor contemporâneo e
verídico, e no illustre Barros, dec. 4.% liv. 3.°, cap. 1.°
e 2.°, onde se verá quaes forão as ruinas Francezas, que
lá acharão os Portuguezes. Os testemunhos positivos des-
tes dous escriptores não se refutão por huma simples afíir-
niativa, destituída de fundamento, e de qualquer género
de prova, que ao menos lhe dé alguma côr, e apparencia
de verdade.
Bem conhecia o escriptor toda a futilidade de suas opi-
niões e argumentos; e por isso depois de tantas palavras
inúteis, se encerra em dizer que parece provado que os
Normandos hequentárão longo tempo as costas de Afri-
ca (23), e tiverãíj ali feitorias: e como nem disto mesmo
(23) A única eiupreza dus Nonnaiidos sobi'e as costas de Afritia
liiiiHou-se á conquista das Canárias, muito d'antes conhecidas e vi-
sitadas pelos Portuguezes, como dissemos, e provámos no nosso
Discurso. Xa historia destes povos mo ha hum único indicio de que
cllfs so dirijíissfiii j;iinais ás costas do confiMcnlo AlVicino, niuilo
40
podesse dar, nem desse prova alguiiui, tira por ultima
conclusão, que ao menos he certo, que quando os Ingle-
zes, primeiros depois dos Portuguezes, forão a Guiné,
os Francezes se tinhão esquecido daquelk caminho!
Mas até nestas poucas palavras, já tão reduzidas, he o
nosso escriptor pouco sincero, e pouco verídico. Se elle
quizera falar a verdade pura e clara , devera dizer : 1 .°, que
os Portuguezes começarão os seus descobrimentos na costa
de Africa nos princípios do século xv, quando nenhuma
nação da Europa se lembrava de taes emprezas, nem ainda
as julgava exequíveis; S."*, que por todo o século xv c xvi
forão elles os únicos, que frequentarão aquellas costas, e
nellas fizerão largos estabelecimentos; ii.", que só no ílm
do século XVI, depois de dous séculos quasi inteiros de
posse pacifica, e exclusiva dos Portuguezes, he que os
Inglezes, e depois delles outros povos, começarão as
suas emprezas para aquellas terras, com o hm de nos
despojarem da posse e senhorio que nellas tinhamos,
com o pretexto de estarmos então sujeitos a Castella;
mas em realidade movidos da inveja da nossa gloi-ia. e
da cobiça das nossas riquezas; 4." linalmente, que até
então estiverão os Francezes, não esquecidos (como diz o
escriptor), mas perfeitamente ignorantes daquelle cami-
nho, que nunca tinhão visto, nem trilhado, nem frequen-
tado (á4).
menos das Canárias para o sul ; nem que elles, ou outro algum povo
Europeo, antes dos Portuguezes, passasse além do caho de Nam. para
a mesma handa.
(24) He mui notável o modu com que se explica iMr. Moreri no
seu Diceion. Histor.. seguindo o Padre Labat, c adoptanilo as suas
fabulas. Diz elle no artigo Guiné, que os Francezes descobrirão esta
região e fundarão nella colónias; íuas (\\\p sondo o reino de Franca
(jracemente perturbado pelas guerras de Carlos VI e Vil, forão os
Francezes expulsos de Guiné jielos Portucjuezes, Inglezes, Hollandc-
zes, Dinainarquezes, e Suecos, qite todos ali tirerão estaheleciínentos!
Assim se escreve ás vezes a historia em PVança ! A verdade he, que
41
P. S. 2."
A outra obra que veio á nossa mão, e a que nos refe-
rimos no principio desta nota, tem por titulo Notices sta-
tistiques sur les colonies Françaises, imprimées par or-
dre de Mr. VAmiral Baron Diiperré, Ministre Secrétaire
VÉtat de la Marine et' des Colonies. Paris. Imprimerie
lioyale, i839, 8.°
Na 3.^ parte desta obra, intentando o Auctor dar a No-
ticia estatística do Senegal, e suas dependências, começa
por estas palavras, que aqui fielmente traduzimos:
«As primeiras expedições dos povos modernos pela
costa occidentalde Africa datão do meio do século xiv.
Elias forão emprehendidas por Francezes, habitantes de
Dieppe, e não (como por longo tempo se tem acreditado)
por Portuguezes, e Hespanhoes. »
Confessamos ingenuamente, que huma affirmativa tão
dogmática, tão decretoria, e tão solemnemente enunciada
em huma obra, que se pôde reputar official, nos poz em
alguma perplexidade, receiando achar ali desmentidas to-
das as nossas antigas Relações e Historias, todas as nossas
crenças c tradições, e a opinião assentada e nunca con-
os Portuguezes não expulsarão, nem podião expulsar de Guiné os
Francezes, que nem lá estavão, nem nunca lá tinhão hido. A ver-
dade he, que nenhuma nação Europea ousou fazer tentativa alguma
sobre as nossas possessões de Africa occidental antes do anno de 1590,
isto he, cento e cincoenta, ou mais annos, depois dos nossos desco-
i)rimentos, e posse exclusiva. A verdade lie, que nenhuma das nações
nomeadas por Moreri teve estabelecimento algum em (luiné, nem
em outro (pialquer lugar das costas dtí Africa, senão depois que
D. Filippe II se apossou violeida e tyrannicamentc de Portugal.
Moreri, misturando todas aijuelhis nações sem distineção de épocas
e de tempos, ten\ manifestamcnie cm vista: 1.", deprimir, ou escu-
recej', ou confundir a gloria dos Portuguezes; 2.", exaltar a nação
Franceza, quasi daniln a entender, tpie foi necessária huma conspi-
ração geral da Europa para expulsai' os Francezes de Guiné!
42
testada de todos os escriptores nacionaes e estrangeiros,
contemporâneos, ou próximos ao tempo daquelles nossos
descobrimentos, e que delles falarão em seus escriptos.
Mas a nossa perplexidade e receio não durou senão al-
guns poucos momentos; porquanto, continuando a leitura
da obra, logo observámos (cousa verdadeiramente notá-
vel, e digna de séria reflexão) que o cscriptor nem liuraa
só prova acceitavel nos dá da sua estranha e atrevida pro-
posição; nem com hum só facto ou testemunho fidedigno
a auctorisa. E por certo que nos fez isto a maior admira-
ção em hiima obra impressa na Imprmsa Real de França,
approvada, ou consentida, e mandada imprimir pelo Mi-
nistro da Repartição da Marinha e Colónias, em cujos
archivos deverião existir piovas (se as houvesse), ou ao
menos algumas memorias, lembranças, ou indícios, que
auclorisassem a crença (|ue se pretende estabelecer con-
tra o manifesto, e innegavel direito primitivo, original, e
único dos Portuguezes.
Sabido he, e por todos reconhecido (e nós já o mostrá-
mos no nosso Discurso) que quando os Portuguezes co-
meçarão a grande empreza dos seus descobrimentos nas
costas occidentaes de Africa, era o cabo de Nam o termo
de todas as navegações Europêas para aquella banda; e
que quando elles i)assárão além daquelle cabo, e mais
depois, no fim de doze annos de tentativas infrucluosas,
chegarão a dobrai- o temido Bojador, e se forão adian-
tando passo a passu na costa paia o sul, não acharão hum
só vestígio de outra alguma gente Europêa, que para ali
tivesse navegado, achando aliás naquelles povos selva-
gens tão profunda ignorância das cousas da Europa, e
tão estranha admiração de tudo quanto vião, que até os
navios dos Portuguezes lhes parecião grandes aves, que
hião voando por cima das aguas.
Sabido he (e nós também já o dissemos e provámos)
que nenhuma nação da Europa pretendeo naquelle tempo
43
allegar, e ainda menos provar a sua prioridade na em-
preza das navegações pela costa de Africa, antes geral-
mente as tinhão por temerárias e insanas.
Os próprios Portuguezes se oppunlião, ao principio,
aos pianos e projectos do illustre Infante D. Henrique com
os fundamentos que ficão apontados no nosso Discurso
(a pag. 22j ; e lie inverosimil que se os Francezes ou Nor-
mandos tivessem já frequentado aquellas costas, e fun-
dado nellas feitorias, estabelecimentos, e até igrejas, como
agora se quer afíirmar, lie inverosimil, digo, ou antes he
absolutamente impossível, que os Portuguezes o ignoras-
sem, ou que, sabendo-o, oppozessem ao Ínclito Infante
os medos, receios, diíiiculdades, e contradicções, que já
devião estar desvanecidas e dissipadas por essas navega-
ções Francezas.
Quando o Infante dirigio ao Papa Nicoláo V a supplica,
de que falámos a pag. 19, não teve duvida em dizer-lhe,
que nunca jamais desde a memoria dos homens houvera
costume de navegar o mar Oceano para as regiões meri-
dionaes e orientaes, setido o mesmo mar tão desconhecido
a nós os occidentaeSj, que nenhuma certa noticia tínhamos
das gentes daguellas parles. E poderia o Infante dizer isto
com verdade, se os Francezes, já de cem annos atraz,
tivessem navegado até Guiné, e costa da Malaguetta, e
fundado por ali estabelecimentos, feitorias, e igrejas?
O escriptor, que vamos refutando, até parece (sem em-
bargo do apparato de aulhenticidade que quiz dar á sua
obra) nãu ter idéa alguma justa e exacta dos successos
relativos áquelles descobrimentos; porque copiando ou
adoptando o erro palmar de Moreri, diz como elle. que
sendo o commercio da costa de Africa abandonado pelos
Francezes no século xv, vierão os estabelecimentos Fran-
cezes a ser preza dos Portuguezes, dos Hespanhoes, dos
Jnglezes, e dos Hollandezes, á excepção somente do esta-
belecimento do Senegal!
44
NÓS já refutámos esta falsidade histórica, ou antes este
doloso, e fraudulento modo de apresentar os factos da
historia aos leitores desacautelados e menos instruídos.
Já dissemos, e não cessaremos de repetir, que os Portu-
guezes descobrindo as costas occidentaes de Africa palmo
a palmo desde os princípios do século xv, as possuirão
exclusivamente até aos fins do século xvi, por quasi dous
séculos inteiros, sem que nação alguma da Europa ou-
sasse perturbal-os naquella posse, senão hostilisando fur-
tiva e piraticamente o nosso commercio, não nas costas
de Africa, nem á força aijerta, mas esperando os nossos
navios, para os roubarem, na paragem e altura dos Açores.
Nenhum estabelecimento Francez encontrarão os nossos
em Africa, em que podessem fazer preza. Em summa,
nenhuma nação da Europa frequentou aquellas costas, se-
não depois que o jugo de Castella pesou sobre nós, e que
nós, os Portuguezes, abatidos, empobrecidos, desalenta-
dos pelas desgraças publicas, ecommuns, e desamparados
daquelle mesmo poder tyrannico, que nos dominava, e que
até parecia comprazer-se nas nossas perdas, começámos
a decahir dos brios nacionaes, e a experimentar os effeitos
da antiga inveja, que as nações Europèas linhão á nossa
riqueza, e á prodigiosa extensão de nossos domínios.
Estas verdades são reconhecidas e confessadas por to-
dos os escriptores, por todas as historias até aos princí-
pios do século XVIII, em que o Padre Labat publicou as
suas fabulas, adoptadas depois por alguns outros. E será
bastante a auctoridade do Padre Labat para contrastar os
factos, e historias de três séculos inteiros? Este he com-
tudo o único testemunho apontado pelo nosso escriptor !
O leitor imparcial, e reflexivo julgará se elle merece a sua
attenção, ou se a merece hum escripto, que nelle só se
funda, apesar de vir tão auctorisado pelo Ministério da
Marinha e Colónias de Franca.
índice ghronologigo
DAS NAVEGAÇÕES, VIAGENS, DESCOBRIMENTOS,
E CONQUISTAS DOS POllTUGUEZES
NOS PAIZES ULTRAMARINOS
DESDE O PRINCIPIO DO SÉCULO XV
PREFAÇÃO
Damos á luz publica neste escripto o índice Chronolo-
(jko das navegações, viagens, descobrimentos, e conquis-
tas dos Portuguezes nos paizes ultramarinos, desde os
principios do século xv.
Este titulo não inculca, por certo, obra de grande valor
e importância, nem nós o escrevemos com esse intento :
mas pareceo-nos o mais accommodado á natureza e fins
do nosso trabalho, e o mais próprio das circumstancias
que o motivarão.
Muito tempo havia que nós desejávamos, e procuráva-
mos ter huma idéa geral, mas fiel e exacta, das grandes
e gloriosas emprezas ultramarinas dos nossos compatrio-
tas, que naquelle tempo derão tanto credito e fama á na-
ção Portugiieza, e forão de tanta e tão reconhecida utili-
dade para o mundo moderno, em todos os ramos do seu
progresso, e civilisação. Mas ainda (jue para o conseguir
não poupássemos nenhum dos meios, que esta vão ao nosso
alcance, a cada passo comtudo nos viamos ou embaraçados
no nosso estudo, ou frustrados nas nossas diligencias.
Os escriptores nacionaes, que podíamos consultar erão
48
poucos, incompletos, ás vezes discrepantes em suas nar-
rações, e sempre diminutos nas particulares noticias do
século XV, que mais convinha indagar e apurar.
Dos Roteiros, Relações e Memorias, que necessaria-
mente se havião de escrever logo naquelle tempo de nos-
sas primeiras navegações e descobrimentos, mui pouco
nos resta hoje. salvo as Relações de Cadamosío, e essas
mesmas impressas hum século depois em Itália, e em
lingua Italiana, e não de todo isentas de imperfeições e
erros (1).
He natural que o prudente e cauteloso segredo, em que
os nossos Príncipes, ao principio, reservavão aqnellas Me-
morias e Relações; a perda de muitas delias nas mãos dos
chronistas, ou nos próprios gabinetes dos Príncipes por
occasião da sua morte; o descuido de recolher estes e ou-
tros documentos ao Archivo geral do reino ; a dilíiculdade
de multiplicar as cópias, por não haver ainda a arte ty-
pograOca, ou por não ter chegado a Poilugal, logo nos
primeiros annos da sua invenção; he natural, digo, que
estas ou outras semelhantes causas produzissem a falta,
que depois se experimentou, logo que se quiz escrever-
em corpo de historia a serie de nossas emprezas ultra-
marinas.
O certo he que o illuslre Barros, quando tomnu sobre
si esta difficil incumbência, já se queixava da falta de Me-
morias antigas; e bem mostrou que as não tinha, pois tão
breve e imperfeitamente falou dos successos que prece-
derão á expedição do grande Vasco da Gama.
Castanheda começou a sua Historia da índia por essa
mesma expedição, e nada diz dos tempos anteriores.
Nos outros nossos escriptores (pela maior parte mais
modernos) achão-se na verdade algumas noticias do obje-
(1) Quando isto escreviaraos ainda não tinha apparecido a edição
da obra de Azurara, ha pouco publicada em Paris pelo Sj'. Visconde
de Santarém.
49
cto de que tratamos; mas são ellas tão dispersas por diffe-
rentes obras, tão apoucadas em suas circumstancias, e
assim mesmo escriptas com tanta falta de coherencla,
exacção e alinho, que lie de mui diílicil, e impeilinente
trabalho reduzil-as a alguma ordem, e tirar delias hum
resultado, qual se deseja, liquido, seguro, e aceitável.
Nos escriptores estrangeiros não ha que procurar neste
assumpto, nem a conveniente miudeza e exacção, nem (as
mais das vezes) a devida imparcialidade. Omittem factos,
e circumstancias substanciaes; alterão datas ; errão ou des-
figurão nomes; e alguns deixão-se dominar de tão desar-
razoado ciúme, que parece que ainda hoje lhe fazem som-
bra os relevantes serviços, que os Portuguezes fizerão ao
mundo naquelles antigos tempos, e o immenso louvor,
que por elles merecerão, e lhes he devido. E não se tenha
por apaixonado este nosso juizo, porque muito teríamos
com que o justificar, se tanto fosse necessário.
Em tal estado de cousas resolvemos começar a escre-
ver, para nosso uso particular, o índice Chronologico, que
agora damos á luz, apontando nelle mui summariamente
os factos que nos parecerão mais importantes, e coUo-
cando-os na sua ordem puramente chronologica, como
para nos servirem de guia, quando quizessemos dar maior
extensão ao nosso estudo, ou instruir-nos mais ampla-
mente neste ramo da nossa historia, que reputámos de
tanto interesse para o publico litterato, quanto glorioso
para os Portuguezes.
Com este intuito lemos as obras, escriptos, memorias,
ou documentos, nacionaes, ou estrangeiros que se offe-
recêrão á nossa indagação, combinando (quando nos pa-
receo necessário) huns com outros, comparando os grfíos
de credito que cada hum podia merecer, e tirando de to-
dos, não sem grande trabalho, aquelles resultados que
tivemos por bem assentados, ou que pelo menos se nos
representarão fundados em maiores, e mais certas razíJes.
TOMO V /,
50
Artigo ha no Índice, que conlendo-se em poucas linhas,
nos levou algumas horas de leitura, e talvez alguns es-
forços de reflexão : e nem por isso nos gloriámos de ha-
ver evitado erros e defeitos, hoje inevitáveis em seme-
lhante matéria.
Decorrerão os tempos, e a nossa situação pessoal sof-
freo por vezes graves e penosas mudanças, privando-nos
de alguns dos meios, que podião concorrer para que o
nosso trabalho fosse menos imperfeito. Por fim pareceo-
nos, ou nos persuadirão, que assim mesmo seria útil a
sua publicação, já por não se perder de todo o tempo que
nisto tínhamos consumido, já porque o nosso trabalho
poderia aproveitar a quem com o mesmo intento, e zelo,
e com mais meios e capacidade quizesse levantar á gloria
nacional, e ao século xv portuguez hum monumento único
na historia das nações modernas.
Começámos a escrever o Índice em 1832, e fizemos-
Ihe depois retoques, correcções, e additamentos. A Me-
moria sobre as viagens por terra foi escripta posterior-
mente. Hoje ser-nos-hia impossível rever estes trabalhos,
e dar-lhes mais algum aperfeiçoamento. O publico medirá
pelo nosso zelo, e amor da pátria a sua benigna e favorá-
vel indulgência.
índice cíironologico
período V
DESDE o ANNO DE 1412 ATÉ AO DE 1460
Aqdo de 1412
Os nossos escriptores, que tratarão dos descobrimentos,
e omprezas marítimas, de que foi primeiro auctor o grande
e Ínclito Infante D. Henrique, filho de el-Rei D. João I, no-
tão commummente este anno de 1412 como principio de
seus úteis e gloriosos trabalhos; e dizem que então co-
meçou este sábio Príncipe a mandar alguns navios ao des-
cobrimento da costa Africana, desde o cabo Nam para as
partes do sul, e pólo antárctico.
João de Barros nas suas Décadas, e Faria e Souza, tanto
na Azia Portugueza, aonde faz o extracto delias, como na
Relação das armadas, que coUigio de listas, e memorias
antigas, assignão a referida época. O mesmo seguirão
muitos escriptores nossos; e muitos outros o suppõem,
quando dizem, que depois da conquista de Ceuta (em
1413), e das informações, que o Infante alii houvera dos
Mounjs, viera muito mais animado a proscguir os seus
projectos.
Assim, postoque não tenhamos individual noticia dos
navios, que enlão sahírão ao descobrimento, nem dos ca-
pitães, ou pilotos que os governarão, não julgámos dever
52
por isso alterar a época estabelecida; antes havemos por
mui pi'ovavel, que por aquelles annos he que os nossos
navegadores passarão o cabo Nam, que era até então o
termo das navegações Europêas, e chegarão ao Bojador,
aonde por muito tempo encontrarão depois obstáculo a
seus repetidos esforços.
Se alguém comtudo duvidar de que o Infante já no re-
ferido anno de 4 4 li começasse a executar os seus parti-
culares projectos, ainda assim se pôde, e deve sustentar
a mesma época, reflectindo-se que nesse anno se deo
principio aos preparativos para a grande expedição de
Ceuta, que foi sem duvida hum passo importantíssimo
para os descobrimentos, não só pela ampla informação
que ahi se houve das terras, costas, e gentes de Africa,
mas também, e especialmente, porque sendo a praça de
Ceuta como chave dos mares adjacentes, e abrigo das ar-
madas berberescas, mal podião os nossos navios fre-
quentar com segurança as costas, visitar os portos, e na-
vegar para as partes do sul, emquanto Ceuta estivesse
em poder dos Mouros.
Notemos ainda mais, que na Bulia de Nicoláo V do anno
de 145o, de que cm outro lugar falamos, se diz que o
Infante começara de mui pequena idade (ab ejus ineunte
aetate) as suas emprezas; e esta frase mais convém ao
anno 4412, em que elle tinha dezoito annos, do que ao
de 4447, em que já contava vinte e três.
Anno de 1415
Neste anno foi a gloriosa expugnação de Ceuta, con-
cluida por el-Rei D. João I, acompanhado dos Infantes
seus íilhos, em hum só dia, a 24 de Agosto.
Alguns dos nossos escriptores se equivocarão, assigna-
lando a esta conquista o dia 14 de Agosto. Outros muitos
porém, mais bem informados, a poserão em 21, e este he
53
O dia que se collige do epitáfio de el-Rei, gravado solire
o seu tumulo em tempo de el-Rei D. Duarte, seu filho e
successor, aonde se nota que el-Rei, depois de tomada a
praça de Ceuta^ a presidiara por dezoito aniios, menos
oito dias, e que fallecêra a 14 de Agosto de 1433; por
onde se vê que os dezoito annos serião completos, se elle
vivesse mais oito dias, isto he, até 21 de Agosto.
Em Ceuta procurou o Infante D. Henrique, e alcançou
dos Mouros algumas importantes informações para a exe-
cução dos seus desígnios, e teve mais certo e individual
conhecimento do deserto, que os Árabes chamão Çahará,
dos povos Azenegues, confinantes pelo sul com os Gelofos,
do commercio que d'aqui se fazia para a costa septem-
trional, e de muitas circumstancias daquellas terras, cos-
tas, e gentes, com o que se animou muito mais (como já
dissemos), e de todo se resolveo a proseguir a empreza
que o seu grande espirito, auxiliado dos conhecimentos
cosmograficos, lhe havia inspirado.
A armada, que el-Rei levou á expedição de Ceiítaj, con-
stava de 220 vasos de guerra e transporte ; a saber, 33
náos, 59 galeras, e vários galeões, caravelas, e outros
baixeis de differentes grandezas, em numero de 128.
Logo depois desta conquista tomou el-Rei o titulo de
« Rei de Portugal e do Algarve, e Senhor de Ceptay>.
Annos de 1416 e 1417
Por estes annos, logo depois da conquista de Ceuta, co-
meçarão as tentativas, que o Infante mandava fazer para
dobrar o caho Bojador, e passar avante para o sul, as
quaes forão continuadas, mas sem fructo. por alguns
annos.
O grande lançamento que o cabo fazia ao mar, as cor-
i'entes impetuosas das agoas, a sua apparcnte eflerves-
cencia, c outras semelhantes circumstancias, forão causa
de se mallograreni por muito tempo estas tentativas, te-
mendo os ainda então inexpertos navegantes, que os ma-
res os engolissem, ou que as correntes os não deixassem
voltar ao rumo de norte.
Anno de 1418
Neste anno foi mandado Bartolomeu Perestrello, Ca-
valleiro da Gaza do Infante D. João, á empreza de dobrar
o Bojador; mas sendo assaltado da tempestade, perdeo a
derrota que levava, e foi arrojado a luima ilha desconhe-
cida, a que deo o nome de Porto Santo, por ter achado
nella abrigo, e descanso de sua trabalhosa navegação.
Damião de Góes, e Soares da Silva põem este descobri-
mento no anno seguinte de 1419.
Alguns negão que Perestrello fosse o descobridor desta
ilha, e somente dizem que o infante lhe dera a Capitania
delia; mas a pratica geral daquelle tempo nos parece per-
suadir o contrario.
Annos de UÍ9 c 1 i20
No anno seguinte de 1419 voltou Perestrello com os
outros dous navegantes João Gonsalves Zarco, e Tristão
Vaz, Cavalleiros do Infante D. Henrique, cada hum em
seu navio, á ilha de Porto Santo, levando Perestrello or-
dem, e alguns preparos para começar a sua cultura.
Dizem os escriptores antigos, que lançando-se na ilha
huma coelha, que no mar havia paiido, fora a criação
destes animaes em tanto augmento, que destruião as
searas, e por algum tempo retardarão, ou embaraçarão
o projecto da colonisação da ilha.
O Perestrello voltou a Portugal: mas João Gonsalves, e
Tristão Vaz. tendo observado huma espécie de nevoeiro,
que constantemente se lhes offerecia no mar, e sempre
no mesmo sitio, e direcção, suspeitarão o que poderia ser,
55
e dirigindo-se para aquella parte, descobrirão a ilha da
Madeira, a que derão este nome pelo alto e basto arvo-
redo, de que a acharão coberta.
Algumas antigas Memorias dizem que Francisco Alco-
forado, Cavalleiro da Gaza do Infante D. Henrique, fora
neste descobrimento, e o descrevera em huma exacta Re-
lação.
De João Gonsalves Zarco se diz que foi o primeiro Por-
tuguez, que usou da pólvora, e artilheria nos navios. Ma-
noel Thomaz, na Insulana j liv. 1.°, est. 83.°, falando
delle, diz:
Bem he verdade, que este o Lusitano
Primeiro foi, no mar com nome eterno.
Que usou da dura fruta de Vulcano,
E o salitrado aljôfar do inferno ;
Anno de 1425
Por estes annos começou o Infante a mandar povoar as
ilhas da Madeira, e Porto Santo, e também a Dezerta,
que sem duvida foi descoberta com as primeiras.
Elle mesmo na doação que fez do espiritual destas ilhas
á Ordem de Christo em 18 de Setembro de 1460, quasi
dous mezes antes do seu íallecimento, diz: « Comecei de
povorar ajuinha ilha da Madeira, haverá ora trinta e
cinco annos, e isso mesmo a do Porto Santo, e deshi, pro-
segiiindo, a Dezerta -a; por onde parece fazer-se verosí-
mil, ao menos em parte, o que uniformemente referem
os nossos escriptores, que lançando-se fogo aos bosques
da ilha da Madeira, este se ateara de tal modo, que por
alguns annos não fora possível povoal-a. Os annos devem
neste caso contar-se desde 1419, anno fio descobrimento,
até 14^i5. E dizemos, ao menos cm parte, porque algum
tempo era preciso para se prepararem as famílias, e os
mais objectos necessários ;i [(ovo.içíio c culdiia daquellas
ilhas.
56
O Infante dividio a ilha da Madeira euíve os seus dous
descobridores. Mandou vir da ilha de Cândia a preciosa
planta da m;dvazia, que tanto ali prosperou, c tão ntil
tem sido ao commercio e riqueza da Madeira. Mandou
lambem vir da Sicilia a canna do assucar, e mestres, que
a ensinassem a plantar e cultivar, e a fabricar o assucar.
E foi esta cultura tão bem recebida do terreno, que em
loOI se participava a el-Rei D. Manoel haverem-sc fabri-
cado, nesse anno, na ilha 63:800 arrobas de assucar.
Quando Barros escrevia as suas Décadas, diz elle, que
huma porção de terra de Ires léguas dava ao quinto mais
de 60:000 arrobas. E Bluteau, nos principios do século
passado, escrevia que na ilha houvera algum tempo loO
engenhos de assucar, os quaes rendião 400:000 arrobas.
Da ilha da Madeira sahírão depois os mestres, que forão
introduzir <» fabrico do assucar na ilha de S. Thomé, e de
ambas estas ilhas se propagou mais depois no Brazil, por
industria dos P(»rtuguezes, tanto a cultura da canna, como
a factura do assucar.
O grande Infante D. Henrique, postoque applicado á
povoação e cultura da Madeira, Porto Santo, e Dezerta,
nem por isso se esquecia de continuar, e promover a sua
primeira, e principal empreza, da qual porém sabemos
que por espaço de doze annos se não tirou fructo algum,
não se conseguindo em todo este tempo dobrar o cabo
Bojador.
Ânuos de 1 i29 e iVM)
Gil Eannes, natural de Lagos, dobrou emfim o formi-
dável Bojador.
Dizem os antigos escriplores Portuguezes, que esta
passagem do cabo fora então reputada como huma faça-
nha igual a algum dos trabalhos de Hercules: expressão
que hoje parece nimiamente exagerada, mas que o não
era tanto naquelles tempos, vistas as diíTiculdades. os
57
medos, e os perigos, que ou se tinhão experimentado, ou
se imaginavão e suppunhão na mesma passagem, e que
por tanfo tempo a liavião retardado.
Parece-nos não se ter ainda determinado com bastante
precisão e certeza a época deste notável acontecimento.
Muitos dos nossos escriptores a referem ao anno de 1433;
alguns ao de 1432; outros ao de 1434; e outros final-
mente ao de 1428.
Se nesta matéria pôde liaver lugar a conjecturas, nós
temos por mui verosímil, que a passagem do Bojador se
executou em 1429, ou quando mais tarde em 1430. As
razões, em que nos fundámos, são as seguintes:
1 .^ Que os nossos antigos uniformemente dizem, que
o Infante D. Henrique, por mais de doze annos, fizera
tentativas para dobrar este cabo, mandando a elle fre-
quentemente os seus navios. E como estas tentativas co-
meçarão logo depois da expedição de Ceuta, isto he, em
141G, ou ao rnais tardar, em 1417, parece que a passa-
gem do cabo seria em 1429, ou em 1430.
2.'' Que o Papa Martinlio V perniittio por huma sua
Bulia, que se pocíesse contratar e commerciar com os in-
fiéis. Esta permissão, cuja verdadeira data ignoramos,
não podia ser posterior a 20 de Fevereiro de 1431, em
que aquelle Santo Padre falleceo. Tinha pois sido pedida,
e pôde ser que concedida pelo menos em 1430. Por ou-
tra parte he de presumir que o Infante somente a pediria
depois de se ter vencido a grande diíTiculdade do Bojador;
porque até então nem sabemos que os nossos navegado-
res sahissem em terra a negociar, ou procurassem ter
communicação e commercio com os habitantes; nem he
verosímil que o intentassem a respeito dos Mouros, com
que os Portuguezes eslavão em actual, e continua guerra.
Donde se collige, que antes de 1430, ou quando muito
nesse nií^smo anno, já se linha vencidíj o Bojador.
3.'"^ Que na Bulia do Papa Nicoláo V (já citada) dos prin-
cipios de Janeiro do anno da Encarnação de 1454, que
he anno vulgar de 14o5, se diz que o Infante iiavia vinte
e cinco annos (a viginti quinque annis citra, isto he, ha
vinte e cinco annos a esta parte) não cessava de mandar
navios ao descobrimento das terras e costas do Bojador
para as partes do sul. Logo o Bojador já tiniia sido do-
brado, e já se navegava além dolle para o sul vmte e
cinco annos antes da data da Bulia, o que vem a dar em
Janeiro de 1430, e mui provavelmente no anno antece-
dente de 1429.
Advertenoia
Pareceo-nos aqui lugar próprio para notar em geral,
que algumas das differenças (|ue se encontrão nos antigos
escriplores a respeite» de datas, e que talvez parece que
embaração a chronologia dos descobrimentos, se devem
altribuir, segundo o nosso juizo, a que liuns tomavão por
época de tal, ou tal exi)edi(;ão e descobrimento o anno
em que os navegantes saliião de Portugal; outros o anno
em que chega vão á costa de Africa, e eííecti vãmente to-
cavão o ponto descoberto, o (jue muitas vezes succedia
no anno seguinte ao da sabida; e outros finalmente o anno
em que voltavão ao reino, e se divulgava a noticia. Por
onde entendemos, que quando a differença das datas
he pequena, e de annos immediatos, se não deve fozer
conta com ella para d'ahi arguir alguma incerteza no acon-
tecimento, ou alguma variação essencial na sua época.
Annos de \'ÚV\ e 14112
O Infante D. Henrique mandou no anno de 1431, que
o Comraendador de Almourol na Ordem de Christo, Fr.
Gonçalo Velho Cabral fosse correr os mares a oeste, em
demanda de novas terras. O navegante encontrou os bai-
xos das Formigas, situados entre as ilhas de Santa Maria,
59
e S. Miguel, mas não deo fé de nenhuma delias, e voltou
a Portugal a informar o Infante do que tinha observado.
Foi outra vez mandado no anno seguinte de 1432 a ex-
plorar os mares, em que existião aquelles baixos, e então
com melhor fortuna descobrio a ilha de Santa Maria,
primeira descoberta no archipelago dos Açores alo de
Agosto, e pela circumstancia da festividade do dia lhe deo
aquelle nome.
O Infante fez a' Gonçalo Velho Capitão donatário da ilha,
e elle a começou logo a povoar, e cultivar com grande pro-
veito e interesse.
Annos de 1434 e 1435
O mesmo Gil Eannes, que dobrara o cabo Bojador, vol-
tou em 1434 áquellas paragens com Affonso Gonsalves
Baldaya, Copeiro do Infante. Passarão obra de 30 léguas
adiante do cabo, e descobrirão huma angra, ou bahia, a
que poserão nome Angra de Ruivos, por acharem ali
muitos dos peixes, a que os Portuguezes chamão ruivos.
No anno seguinte ou estavão ainda nas mesmas para-
gens, ou a ellas voltarão. Adiantarão mais 12 léguas pela
costa, e sahindo em terra Heitor Homem, e Diogo Lopes
de Almeida, encontrarão alguns bárbaros, que á vista dos
nossos se poseião em fugida.
Passarão ainda depois hum pouco mais adiante, e che-
garão á foz de hum rio, aonde matarão muitos lobos ma-
rinhos (espécie de p/iocas, segundo parece), cujas pelles
trouxerão a Portugal.
Este lugar he o que nas antigas Relações se ficou deno-
minando o posto dos lobos marinhos; e o lio tomou logo
depois o nome de Rio do Ouro, pelo resgate que ahi se
fez deste metal.
Sobre o Rio do Ouro, segundo a observação de hum
antigo piloto Porluguez, corre a linlta do trópico de Can-
cro, pelo (jue se vê ijue denotava o rio a 23° e 30' septem-
60
trionaes, que era a posição que algumas antigas cartas
davão á linha do trópico.
Annos de 1437 e 1438
Em 4437 foi a infeliz expedição de Tangere, em que es-
teve o Infante D. Henrique. E como além do desgosto que
ella causou no reino, se seguisse logo em 4438 o falleci-
mento do sábio, e virtuoso Rei D. Duarte, e após elie so-
breviessem as perturbações publicas, occasionadas da tu-
toria da Rainha D. Leonor; não parece verosimil que se
tentasse nestes annos cousa alguma importante para adian-
tar os descobrimentos. Comtudo o Infante nunca deixava
de mandar os seus navios á costa de Africa.
Ao mesmo anno de 1438 attribuem alguns a vinda de
Mestre Jacome de Maiorca para Portugal, chamado pelo
Infante para dar regularidade e direcção á sua Escola de
Sagres. Delle diz hum douto geógrafo moderno, que era
versadissimo na navegação, e na arte de fabricar instru-
mentos, e de projectar Cartas náuticas, e que o immortal
Infante o posera á frente da Academia, que havia fun-
dado, com o jim de propagar tão úteis conhecimentos.
Anno de 1 i39 on 1440
Diniz Fernandes, Escudeiro do Infante D. João, chegou
em algum destes annos a hum grande rio, que os naluraes
da costa chamavão Quedec (2), e a que os nossos derão o
(2) Damião de Gties na Clironica do Príncipe D. João, edição
de 1724, em lugar de Quedec, escreve Sonedech. Manoel Corrêa, nos
Commentarios a Camões, escreve Quedec, e diz que he o nome que
os Mouros dão ao rio na entrada do mar. E Barros, liv. 1.°, 13. diz
que o verdadeiro nome do rio. ali na sua foz, he Oucdech, segundo
a lingua dos negros que habitão o paiz : e que subindo por elle acima
toma differontes nomes.
61
nome de Sanagá, do nome de hum senhor da terra, com
quem falarão, arrumando a sua foz a 10° de latitude se-
ptentrional (3).
Cadamosto, que fez a sua primeira viagem em 1445,
diz expressamente, que o Senegal tinha sido descoberto
cmco annos antes.
(Navegações de Cadamosto, 1.^ Relação.)
Addos de 1440 e 1441
Nuno Tristão, e Antão Gonsalves, Criados do Infante
D. Henrique, hindo ao posto dos lobos marinhos, toma-
rão alguns bárbaros.
Antão Gonsalves, que ainda era mancebo, foi ali ar-
mado Cavalleiro, e por esta circumstancia se deo áquelle
lugar o nome de Porto do Cavalleiro, que parece ser o
mesmo que Ortelio em suas Taboas designa: «P. de ca-
vallin ; alterando o nome, como faz outras muitas vezes,
ou por ignorância do idioma Portuguez, ou por se ter já
perdido de vista o facto, que motivara a denominação.
O Gonsalves voltou a Portugal, e Nuno Tristão, prose-
guindo, chegou ao Caho Branco, que os nossos arrumavão
a 20° septemtrionaes, e lhe deo o nome.
Anno de 1442
Antão Gonsalves depois de armado Cavalleiro no posto
dos lobos marinhos, voltando a Portugal, como dissemos,
trouxe alguns bárbaros que ali captivára, dos quaes o In-
fante não cessava de tirar novas informações sobre as
costas, terras, e gentes que por ali habitavão.
(.{) Ewieraldo, foi. 46, v., no principio, altribue o descobrimento
do Setiegitl ;i Diniz Dias, Cavalleiro, e criado de ol-Rei D. João, pai
do Iníaiite D. Henrique, e a Lançarote de Freitas, seus Cavalleiros
e («ipitães, &c.
62
Como estes Mouros promettessem dar alguns negros de
■ Guiné em seu resgate., cousa que o Infante muito dese-
java, pelo que o vulgo fabulava ãaquellas terras, voltou
o Gonsalves com elles a Africa neste anno de J442.
Os Mouros cumprirão a promessa, e derão em preço
da sua liberdade algum ouro, e dez negros de differe?ites
terras.
Este (dizem os nossos escriptores) foi o primeiro ouro
que veio daquellas partes, assim como os negros forão os
primeiros escravos, que da costa occidental de Africa vie-
rão a Portugal.
Addo de 1443
Nuno Tristão, a quem ha pouco deixámos no Cabo Bran-
co, proseguindo as suas explorações, descobrio a ilha de
Adeger, e a das Garças (no golfo de Arguimjj á segunda
das quaes deo o nome das muitas aves assim chamadas,
que ali achou.
Depois voltou a Portugal, trazendo mais de quarenta
negros captivos, que cá se estimarão muito (diz hum an-
tigo escriptor Portuguez) por sua estranha figura.
Aimo de 1443 ou 1444
Diniz Fernandes (de quem falíamos ao anno de 1439)
descobrio o cabo, que forma o ponto mais occidental de
Africa, denominado pelos antigos geógrafos Gregos hes-
perion keras (occidentole cornu), e arrumado pelos anti-
gos navegadores Portuguezes em pouco mais de 14° se-
ptemtrionaes (hoje em 14°, 48').
A este cabo derão o nome de Cabo Verde, pelo aspecto
que mostrava, todo coberto de verdura; e parece que era
ornado, na sua maior elevação, da grande arvore baobab,
a que alguns naturalistas chamão colosso do reino vegetal;
a qual estendendo ao largo seus grandes ramos, desce
63
com as folhas até á superfície da terra, e a cobre de ver-
dura mui agradável. O seu tronco cavernoso serve talvez
de sala de assembléa n huma povoação inteira.
Os nossos escriptores ^arião sobre a época deste des-
cobrimento entre os annos 4440 e 1446. Nós adoptamos
os annos de 1443 ou 1444, porque Cadamoslo diz que o
cabo fora descoberto por Portuguezes hum anno antes da
sua primeira viagem, e como esta foi em 1445, vem o
descobrimento de Cabo Verde a cahir em algum dos ditos
dous annos, conforme o maior, ou menor rigor em que
tomarmos as palavras de Cadamosto.
(Cordeiro, na Historia Insulana assigna o anno de
1443. Vej. o Uv. 2.°, cap. 8.°, pag. 57; e liv. G.",
cap. 1.°, pag. 241, aonde diz que as ilhas de Cabo
Verde forão descobertas em 1443, e muito mais
em 1445.)
Anuo de 1444
No anno de ,1 444 se organisou, e estabeleceo com au-
ctoridade e aprazimento do Infante a Companhia de La-
gos, destinada a' continuar os descobrimentos, e o com-
mercio de Africa, debaixo da direcção do illustre Príncipe,
e com certas condições, que elle lhe prescreveo.
Esta Companhia aprestou logo algumas caravelas, em
que sahírão ao mar Lançarote, Gil Eannes, Estevão
Affonso, Rodrigo Alvares, João Dias, Martim Vicente,
João Vasques. &c., os quaes descobrirão a ilha de Nar,
a de Tider, e outias.
(Barros: Faria e Souza: Vida do Infante D. Henri-
que, á-c.)
Açores
Parece que neste mesmo anno o Commendador Gon-
çalo Velho Cabral, mandado pelo Infante continuai' os des-
cobrimentos nos mares de oeste, descobrio a segunda ilha
64
do archipelago dos Açoies, a que poz o uome de S. Mi-
guei, pela ter tocado a 8 de Maio, dia da apparição do
Santo Arclianjo. E como obtivesse do Infante a capitania
desta nova ilha, assim como já tinha a de Santa Maria,
passou no anno seguinte de 1445 a povoal-a, e cultival-a,
como já tinha feito á primeira.
Anuo de 1445
Em 1445 a 2á de Março sahio de Portugal ao descobri-
mento de novas terras em Africa huma caravela do In-
fante D. Henrique, de que era Patrão Vicente Dias de La-
gos, 6 nella, com licença e aprazimento do Infante, se
embarcou o Veneziano Luiz de Cadamoslo, (jue para isso
se offerecêra.
Abordou á ilha de Porto Santo, que diz ter sido desco-
berta haveria vinte e sete arinos.
Passou á ilha da Madeira, da qual diz que o Infante a
fizera povoar ha vinte e quatro annos para cá.
D'ahi foi ás Canárias, e destas ilhas passou ao Cabo
Branco, já descoberto pelos Portuguezes.
Entrou no golfo de Arguim, aonde diz elle que erão já
conhecidas quatro ilhas; a saber: a primeira chamada de
Arguim, (jue deo nome ao golfo; a segunda que os Por-
tuguezes tinhão denominado Ilha Branca, por ser toda
arenosa; a terceira das Garças; e a quarta, que elle diz
ter sido denominada dos Corações, todas pequenas, are-
nosas, deshabitadas, e sem agua doce. excepto a pri-
meira.
Continuando a navegar chegou ao Senegal, que se-
gundo elle diz, tinha sido descoberto cinco annos an-
tes por três caravelas do Infante, que entrarão por elle
acima.
D'ahi passou á terra de Budomel, também já conhecida
dos Portuguezes, aonde esteve em terra muitos dias. tra-
65
lando, e cummerciaiiclo com os senhores do lugar, e com
os negros que ali concorrião.
Estando para partir d'aqui, e navegar avante, teve o
encontro de duas caravelas, em que liião António de N<>la,
grande navegador e gentil liumem Genovez, e alguns Por-
tuguezes criados do Infante; e accordando-se todos, re-
solverão hir em conserva adiantar os descobrimentos.
Chegarão ao Cabo Verde, que Cadamosto diz haver sido
descoberto pelos Portuguezes hum anno antas, que elle
fosse áquellas partes.
Correndo pela costa para o sul, descobrirão a boca de
hum rio, a que derão o nome de rio Barbacim, a 60 mi-
lhas do Cabo Verde; e este foi o primeiro descobrimento
novo, que fizerão as três caravelas.
Passando ainda adiante, avistarão outro rio, que lhes
pareceo não menor que o Senegal; mas não sendo bem
recebidos dos negros, navegarão mais ao sul, e desco-
brirão o paiz de Gambia, e o rio do mesmo nome, pelo
qual entrarão algum espaço. Este era o paiz, que deter-
minadamente buscarão por expressa ordem do Infante,
que delle tinha informações pelos negros que já havia em
Portugal.
Os navegantes quizerão entrar mais acima pelo rio ; ma.s
como a gente do mar repugnasse a este intento, resolve-
rão voltar ao reino.
(í." Relação de Cadamosto.)
Neste mesmo anno hum criatlo do Infante, poi' nome
Gonçalo de Cintra, descobrio adiante do rio do Ouro a
angra, (jue do seu nome se ficou chamando Angra de Gon-
çalo de Cintra, notada nas laboas de Orlelio com as pa-
lavras: «G. de Goncintra »; querendo dizer, segundo pa-
rece, golfo de Gonçah) de Cintra.
Este infeliz navegante, entrando |)or hum esteiro na
TOMO V :í
66
ilha de Aryuim, e ficando em sêcco á vasante da maré,
foi acommettido pelos bárbaros, e morlo com alguns seus
companheiros.
Aiiiu» de 1446
Neste anno fez Luiz de Cadamosto a sua segunda via-
gem em huma caravela, acompanhado de outra em que
hia António de Nola, e de oulia do Infante D. Henrique,
tudo com licença e aprazimento deste Príncipe. Sahírão
de Lagos no principio de Maio.
Na altura de Cabo Verde descobrirão quatro das ilhas,
que do mesmo cabo se denominão, e diz Cadamosto, que
outros, que depois ali forão, as reconhecerão,, e acharão
serem dez, entre grandes e pequenas, e todas deshahi-
tadas.
Das quatio que agora se descobrirão, derão â primeira
o nome da Boa Vista, por ler sido a [)i'imeira que na-
(juelles mares avistarão; a outra {que lhes pareceo a me-
lhor das quatro), chamarão de Santiago. As outras duas,
a que Cadamosto aqui não dá nume, serião provavelmente
a de S. Filippe, e de S. Clnislovão, que também se cha-
mou do Sal. Parece que todas forão descobeitas no dia
2,H de Julho.
Deixadas estas ilhas, vierão em demanda do (Mio Verde.
Tocarão o lugai- das Duas Palmas (entre o Senegal e o
cabo), assim chamado das que ali collocou ou designou
Diniz Fernandes, como marco para denotar o sitio em
que os povos Azenegues se apartão dos negros idolatras.
Forão ao Gambia, e entrarão por elle mais de 60 milhas,
até o senhorio de Batiimanza, aonde estiverão onze dias,
permutando as fazendas, que levavão, por ouro e es-
cravos.
Do Gambia, navegando ao sul, descobrirão o rio que
chamarão de Cazamanza, do nome do senhor que ali
governava, o qual ficava 25 léguas ou 100 milhas além
67
do Gambia. O seu nome, segundo Damião de Góes,
era Rha.
D'aqui, correndo sempre a costa no rumo do sul, des-
cobrirão, a cousa de 20 milhas de distancia, hum cabo a
que derão o nome de Cabo Vermelho^ pela apparencia da
côr da terra (ou Cabo Roxo).
Pouco adiante chegarão a hum rio, que denominarão
de SanCAnna.
D'aqui navegando descobrirão outro rio, a que derão
o nome de S. Domingos, e por estimativa julgtárão distar
do Cabo Vermelho obra de 55 a CO milhas.
Continuando a navegar mais \\wm^ jornada pela costa,
descobrirão outro lio grandissimo, que tinha na boca
mais de 20 milhas de largura. Este se ficou chamando o
Rio Grande. Defronte delle avistarão ao mar algumas ilhas,
que estarião a cousa de 30 milhas de distancia da terra.
Desta paragem voltando ao reino, fizerão caminho por
aquellas ilhas, e observarão que duas delias erão grandes,
e habitadas de negros, e as outras duas mais pequenas;
mas não se podendg entender com os habitantes, conti-
nuarão viagem para Portugal.
Vè-sepois, que nas duas viagens, emqiiefoiCadamosto,
se descobrio a costa desde o no Barbacim, 60 milhas ao
sul de Cabo Verde, até o Rio Grande; e no mar as quatro
ilhas de Cabo Verde, e as outras quatro, de que acabámos
de falar, e que são sem duvida as que formão o archipe-
lago dos Bissangos.
Os nossos navegadores denotavão a embocadura do Rio
Grande em IT de latitude septemlrional, e parece que o
remontarão por espaço de algumas 90 léguas até chega-
rem a huma calaracta, que os não deixou hir avante. Pelo
tempo adiante se fundarão nas suas margens alguns esta-
belecimentos Porluguezes.
f2." Relação das navegações de Cadamosto. — Cor-
deiro, Historia Insulana, ác.)
68
Aimos de 14'iG e 1447
No anno de 1446 achámos mencionada a expedição de
três navios, em que forão Antão Gonsalves, Diogo AíTonso,
e Gomes Peres, encari-egados de propor aos habitantes do
Hiu do Ouro a sua conversão ao christianismo, e alhança
de commercio com os Porluguezes.
Nesta occasião veio hum daquelles habitantes, por sua
própria vontade, a Portugal; e lá quiz íicar, também es-
pontaneamente, hum Poituguez, por nome João Fernan-
des, que aprendeo a hngua do paiz, observou os costu-
mes dos povos, e veio depois informar de tudo o Infante
D. Henriíjue, com inexplicável gosto e satisfação deste
grande Principe.
Em 1447. entrandft Nuno Tristão pelo Rio Grande, e
sendo acommettido de grande numero de bárbaros, foi
morto no conflicto.
Álvaro Fernandes, que tinha descoberto o Cabo dos
Mastos, passou adiante do Uio Grande, e descobrio o rio
de Tabitc.
Já a navegação dos Portuguezes para aquellas partes
era tão hequenle, que por estes annos chegáião a achar-
se lá reunidos alguns vinte e sete navios, sabidos de Por-
tugal, e da ilha da Madeira.
No mesmo anno em que Nuno Tristão foi morto no
Rio Grande, ou no antecedente de 1446, descobrio elle o
rio que se ticou chamando Rio de Xuno, a poucas léguas
do Rio Grande ao sueste.
AuDO de 14 Í8
Neste anno foi mandado Fernando Affonso como Em-
baixador a hum Hei chamado Farim, na costa, ao sul de
Cabo Verde, convidando-o a abraçar a religião christãa,
e assentar commercio com os Portuguezes.
69
Notão os antigos escriploies, que d'aqui vierão a Por-
tugal os primeiros dentes de elefante, trazidos daquellas
regiões.
Notâo também, que Diogo Gil Homem, encarregado de
estabelecer commercio com os Mouros, passando além do
cabo dl' Gi(i'\ ti"0uxei'a a Lisboa o primeiro Irãit que veio
de Africa.
Anno de liií)
Soeiro Mendes foi neste anuo de 1 i49 lançar os funda-
mentos ao castello de Arguim, de que ficou sendo Capi-
tão ou Governador. Foi o primeiro castello, que levantá-
mos naquellas conquistas, para segurança do commercio
e da navegação.
Açores
A este anno se attribue com grande probabilidade o
descobrimento da ilha Terceira, que no anno seguinte de
1450 se dizia ter sido descoberta pouco tempo antes.
O nome que se lhe deo ao principio foi o de ilha de Jesu
Christo; mas pelo tempo adiante tomou, e hoje conserva
o de Terceira, que parece allusivo á ordem do descobri-
mento.
A capitania desta ilha foi dada pelo Infante em 1450 a
.lacome de Bruges, Cavalleiro Flamengo, que tendo vindo
para Portugal, entrou no serviço do Infante, e cazou com
huma dama da Infanta D. Brites. Elle a povoou com al-
guns cazaes que levou do reino, e da Madeira, e assim
começou a sua cultura.
A este.íacome de Bruges, e a este mesmo anno de 1449,
se attribue também o descobrimento da ilha de S. Jorge,
que se julga ser a quarta que se descobi'io no archipelago
dos Açores, postoque aiginis dão a |)reíerencia do desco-
brimento á Graciosa.
A do Corvo, he íóra de (luvida que estava descoberta
70
em 1453; porque nesse anno a doou el-Rei D. AÍTonso V
ao Duque de Bragança por Carta de 20 de Janeiro, dada
em Évora. E parece verosímil, que ao mesmo tempo
se descobrio a das Flores, situada a tão pequena dis-
tancia.
Das duas que restão, e pertencem a este archipelago.
chamadas do Faynl, e do Pico, nlio temos noticia exacta
de quando fossem descobertas; mas parece provável que
o serião dentro do periodo em que forão achadas todas
as mais.
Neste próprio anno em que estamos, de 1449, siicce-
deo a fatal catástrofe de Alfarrobeira, em que perdeo a
vida o illustre e infeliz Infante D. Pedro, Duque de Coim-
bra, irmão do nosso Infante D. Henrique. He natural que
os desgostos, de que foi acompanhado e seguido este in-
fausto successo, causassem alguma interrupção no pro-
gresso dos descobrimentos, maiormente atlendendo-se á
idade já adiantada do Infante, aos seus assíduos e inces-
santes trabalhos, e aos muitos e variados objectos que
dividião, e demandarão a sua attenção, já para os estabe-
lecimentos do commercio, já para a colonisação, povoa-
ção e cultura das ilhas novamente descobertas, já para o
seu bom governo e administração, de.
Anno de 1458
Em 1458 conquistou el-Rei D. AíTonso V a praça de
Alcácer- Cegiter, na Mauritânia Tingitana, levando a esta
facção huma armada de mais de duzentos baixeis de to-
dos os portes.
Em consequência desta conquista tomou logo o dictado
de (íRei de Portugal e do Algarve, Senhor de Ccpta, e de
Alcácer em Africa. »
(Dissertações Chronologicas e Criticas, tom. â.",
pag. 207.)
71
Anno de liGO
Neste anno, a 13 de Novembro, falleceo o Ínclito, im-
mortal Infante D, Henrique, aiictor destes descobrimen-
tos, na sua villa (ViUa Nova rio Infante), por eile mesmo
fundada no promontório de Sagres, aonde fizera sua or-
dinária habitação.
Alguns escriptores, e entre elles .Toão de Barros, alar-
garão a vida deste grande Príncipe até o anno de 1463,
mas com manifesta equi vocação, como se poderia provar
(se necessário fosse) por documentos aulhenticos. Bas-
tará porém lembrar aqui somente a doação que el-Rei
D. Affonso V fez a seu irmão o Infante D. Fernando de
varias ilhas, que tinhão sido de D. Henrique, a qual doa-
ção o suppõe já fallecido, e he datada de 3 de Dezembro
de 1460, como adiante notaremos.
Além dos grandes serviços que o Infante D. Henrique
fez á Coroa de Portugal, principalmente na expugnação
de Ceuta^ e nas guerras de Africa, trabalhou incessante-
mente, e com admirável perseverança, por mais de qua-
renta annos contínuos, na gi^ande e gloriosa empreza dos
descobrimentos marítimos, deixando descoberta em seu
tempo toda a costa occidental de Africa desde o cabo Bo-
jador em 26" e 23', quasi até Serra Leoa em 8- septem-
Irionaes, e além disso as muitas ilhas, que deixamos refe-
ridas, cuja povoação, cultura, e commercio fundou e pro-
moveo com grande intelligencia, e com incríveis despezas
da sua fazenda.
Fundou também a Escola mathematica, cosmografica,
e náutica de Sagres, aonde se fazião as observações astro-
nómicas úteis e applicaveis á navegação; se projectavão
Cartas hydrograficas; se fabrica vão instrumentos pró-
prios para observar o sol e os astros; se trabalhava em
aperfeiçoar a construcção navnl, cVc. : e d'onde s^aliírão os
72
hábeis navegadores Portuguezes, que neste e no seguinte
século admirarão a Europa, e levarão o nome Portuguez
até ás mais remotas extremidades do mundo.
He muito para sentir que os nossos antigos nos não con-
servassem escripto algum deste grande Príncipe, nem os
commentarios, que necessariamente havia de fazer acerca
do resultado de seus utilíssimos trabalhos^ e sabias fa-
digas.
O elegante clironista dominicano Fr. Luiz de Souza diz
que vira em Valença de Aragão hum livro dos descobri-
mentos do Infante D. Henrique que parecia ser obra sua,
mandado pelo Infante a hum Rei de Nápoles, d'onde pas-
sara ao poder do Duque de Calábria, ultimo descendente
da linha masculina daquelles Príncipes, e vice-Reí de Va-
lença de Aragão. Na portada (continua ainda o chronista)
se vião debuxadas hiimas pjjramides, e a conhecida letra
do Infante ataletií de hien faire», letra que este heróico
Príncipe tão completamente desempenhou. Esta preciosa
obra perdeo-se como muitas outras, que servirião para
illustrar as épocas de nossos primeiros descobrimentos,
firmar, e augmentar a gloria da nação, e arguir o affectado
e ingrato silencio dos estrangeiros.
Apezar disso não se poderá jamais negar que todas as
viagens procedidas do descobrimento de huma boa parte
de Africa, e das índias oriental e occidenlal, e todas as
que delias se derivarem até ao fim dos séculos, bem como
os progressos da geografia, das sciencias, e das artes, e
em fim o estado actual da civilisação Europêa se deve em
grande parte ao génio deste Príncipe, e á sua infatigável
diligencia, e constância.
PERÍODO 2."
DESDE O ANNO DE 1460 ATÉ AO DE 1495
r.OMPREHE.NDE O RESTO DO REINADO DE EI.-REI II. AFFOXSO V
DESDE O FALLECIMENTO DO INFANTE D. IIENRIQITE,
E TOnO O REINADO DE EL-REÍ 11. .II)\(J 11
RFIWnO Í)E RlrHEI n. AFFONSO V ATR AO ANNO IIK l«l
Anno de iifiO
No anno de 14G0, a 3 dè Dezembro, estando el-Rei
D. Affonso V em Évora, fez doação a seu irmão o Infante
D. Fernando, para elle, e para o seu fdho maior varão,
de varias ilhas para as possuir (diz el-Rei) do mesmo
modo, corno as de nós havia o Infante D. Henrique meu
Tio, que Deos haja.
Fazemos aqai lembrança deste documento, para noti-
cia das ilhas, que nelle vem expressamente nomeadas, e
são pela ordem do texto, as seguintes:
1.^ Madeira
10.''
Graciosa
±^ Porto Santo
11.^
S. Miguel
3.^ Dezerta
1^2.=^
Santa Maria
4.^ S. Luiz
la.'^
S. Jacobe
5.=» S. Diniz
14.^
S. FUippe
6.* S. Jorge
15.^
De las Mayaes
1.^ S. Thotnaz
40/^
S. Christomo
8.^ Santa Eyrêa
\1.'
Ilha Lana
9.^ Jesu-Christo
Aqui achamos as três ilhas piimeii'0 descobertas, Ma-
deira, Porto Santo, e Dezerta,
74
'Aqui achámos cinco das do archipelago dos Açores,
S. Jorge, Jesii-Chrisío, Graciosa, S. Miguel, e Sa7iln
Maria.
Aqui achamos quatro das de Cabo Verde, a saber: S. Ja-
cobe, S. Filippe, das Mayaes, (de Maio), e S. Christovão
(ou do Snl).
E achamos finalmente algumas outras, cuja situação
não temos podido averiguar, como slio: S. Luiz (que
pôde ser a do Senegal/, S. Diniz, S. Thomaz, Santa Ey-
rêa, e ilha Lana.
(Vej. o documento que citámos no tom. 1.° dasPro-
vas da Historia Genealógica da Caza Real Por-
tugueza.)
Anuo de JiGO ou 1461
Depois da morte do Infante D. Henrique, despachou
el-Rei D, Affonso Va Pedro de Cinlra, dando-lhe por re-
gimento correr a costa dos negros, e descobrir novas
terras.
O primeiro descobrimento deste navegador foi o rio de
Bessegue, a 40 milhas do Rio Grande por costa.
D"ahi a mais 140 milhas descobrio o cabo, que se cha-
mou da Verga.
D'ahi a 80 milhas descobrio outro cabo muito alto, e
coberto de arvores viçosas, a que deo o nome de Cabo
de Sagres de Guiné.
Defronte deste cabo, ao mar, (\es.cohr\o duasilhas, des-
habitadas, e sem nome.
Do mesmo cabo a 40 milhas descobrio o rio, que se
chamou de S. Vicente: e mais adiante 5 milhas o rio que
se denominou Rio Verde.
A 24 milhas do Rio Verde achou o cabo, a que deo o
nome de Cabo Ledo, por ser mui viçoso.
Por esta costa se estende em longura de mais de 50
milhas huma altissima montanha cheia de verde, e co-
75
pado arvoredo, a que se deo o nome de Serra Leda, pelo
grande rugido, que continuamente fazem as trovoadas,
de que está cercado o seu cume.
Defronte da extremidade meridional desta serra esta-
vão Ires ilhotas, que os navegantes denominarão Selva-
gens.
A 30 milhas adiante da ponta da montanha descobrirão
u Rio Vermelho (ou Roxo), a que derão este nome, por-
que a sua agua, correndo por terreno avermelhado, mos-
trava a mesma côr.
Além deste rio está hum caho, que também denomi-
narão Vermelho; e defronte delle, ao mar, huma ilhota
deshabitada, que igualmente ficou com o nome de ilha
Vermelha.
Passado o cabo Vermelho descobrirão hum rio grande,
que chamarão de Santa Maria das Neves, pelo avistarem
a 5 de Agosto.
Além deste rio está huma ponta, e defronte delia a ilha
que chamarão dos Bancos, pelos muitos que ali faz a
arêa.
Além desta ilha descobrirão hum cabo grande, que cha-
marão caho de Santa Anua, pelo avistarem a 30 de Julho.
Do caho de Santa Anna a (50 milhas, descobrirão hum
rio, a que derão o nome das Palmas, por haver ali muitas.
Navegando ainda outras GO milhas, acharão o rio, a que
pozerão o nome dos Fumos, por verem muitos na costa
quando ali passarão.
Mais adiante 24 milhas descobrirão o cabo do Monte,
assim denominado porque o cabo entrando muito ao mar
mostra hum elevado monte.
D'ahi a (30 milhas acharão outro cabo, e outro ntonte
mais pequeno, a ijue por isso chamarão Caho Mesurado.
Navegando ainda mais IG milhas, notarão hum bosque
grande com arvores mui verdes, que vinhão até ao mar,
e lhe chamarão o Bosque de Santa Maria.
76
D'aqui voltou Pedro de Cintra ao reino, trazendo da
ultima terra hum negro, conforme a ordem de el-Rei, que
depois o mandou restituir ao seu paiz.
A Relação desta viagem foi escripta por Cadaraosto, e
delia se vê :
l.° Que Pedro de Cintra, passando além dos últimos
descobrimentos, explorou mais de 6i9 milhas de costa
para o sul.
2." Que a sua viagem foi executada logo depois da
morte do Infante D. Henrique, e provavelmente no anno
de 4461, ou quando mais tarde em 14G2, porque Cada-
mosto, concluindo a narração, diz: <.(E deste ultimo lugar
(que era o Bosque ou Mata de Santa Maria) não tinha
passado navio algum até d min/ia partida de Hespanha,
que foi no primeiro dia do mez de Fevereiro de 1463 » .
(Vej. Navegação do Capitão Pedro de Cintra, es-
cripta por Cadamosto, impressa na Collecção de
JSoticias para a historia e geografia das nações ul-
tramarinas, da Academia Real das Sciencias de
Lisboa, tom. ^.°, n.° 1).
Adiio (Ic li6í)
Neste anno de 1469 mandou el-Rei arrendar o com-
mercio da costa de Africa a Fernam Gomes por cinco
annos, e por 500 cruzados em cada anno, ficando reser-
vado para a Coroa o marfim, e impondo-se ao arrenda-
tário a obrigação de descobrir cada anno cem léguas de
costa.
Fernam Gomes encarregou o descobrimento a João de
Santarém, e Pedro de Escobar, criados de el-Rei, os quaes
partirão em dous navios, levando hum delles por piloto
Marlim Fernandes de Lisboa, e o outro Álvaro Esteves
de Lagos, hum dos homens mais entendidos e acreditados
em sua arte por ai/uelles tempos.
77
Estes navegantes descobrirão o resgate do ouro, a que
chamarão a Mina, e dizem alguns escriptores, que che-
garão ao cabo de Santa Calliarina, que os nossos antigos
punhão a 2° de latitude austral. Outros porém dizem, que
o cabo fôra descoberto por hum N. Sequeira, hum pouco
mais tarde em 1471 (4).
Fernam Gomes, por conta do qual se faziam estes des-
cobrimentos, teve depois o appellido da Mina, e por ar-
mas hum escudo em campo de prata, com três meios cor-
pos de Ethiopes, ornados de collares de ouro ao pescoço,
e arrecadas nas orelhas, e narizes. Estimavão então os
Portuguezes este género de prémios, com que os Prínci-
pes honravão e perpetuavão o seu nome, e a memoria de
seus serviços, e por isso erão tão frequentes entre elles
as acções generosas, grandes, e úteis.
Adiios de líGO e 1471
Parece, que a algum destes annos, com pouca diôe-
rença, se deve. referir o descobrimento do cabo, que do
nome do seu descobridor se chamou de Lopo Gonsaives,
o qual fica ao norte do de Santa Catharina, a pouco me-
nos de 1° austral, á boca do rio Gabam.
Também alguns põem no anno de 1469, e outros em
1471 o descobrimento da ilha, que se chamou Formosa,
no golfo de Guiné, e que depois tomou o nome de ilha
de Fernando Pó, que foi o seu descobridor.
Finalmente as outras ilhas do Corisco, Anno Bom,
S. Thomé, e Príncipe, i»arece natural terem sido desco-
bertas pelos mesmos tempos, visto serem situadas na-
quelles mares, tão frequentados então dos navegantes
(4) O cahu de Sanla Cathariíui íui do^coberlo pur Uiij th' Sc-
iiueira. Cavallciro, criado de el-Rei D. AlVonso V, que o doscobrio
em dia de Santa Calliarina. (hJsiiirnihJn d<' Duarte Pacheco, foi. 79.)
78
Portugutízes. He certo porém, que todas forão achadas
em tempo de D. Aííbnso V (5).
N. B. As duas ilhas úe Fernando Pó, e Anno Bom foi'ão
cedidas a CasteHa pelo artigo 13." da Convenção ou Tra-
ctado de 1 1 de Março de 1778, e parece que o Gabinete
de Madrid tinha em vista, por este meio, livrar-se da de-
pendência dos estrangeiros, que, por os Castelhanos não
terem possessão alguma na costa de Alrica, erão os que
fornecião de negros as colónias Hespanholas da America,
.\nno de Ii71
Neste anno conquistou el-Rei D. Aííonso V Arzilla, e
Tangere na Mauritânia, levando a esta expedição mais de
300 vasos de todos os portes, e cousa de 30:000 homens
de guerra, e marinhagem.
Depois destas conquistas alterou elKei o seu dictado,
e se intitulou: « Rei de Portugal e dos Algarves., draguem
e d'ah'm mar em A/rica » (G).
Este Príncipe entretido nas conquistas da Mauritânia,
e embaraçado depois com a mal fadada guerra de Cas-
tella, e com os outros pouco felizes successos que delia
(ò) Cabo Formoso, serra a ilha descobertas por bVrnanclo Pó, Ca
valleiro, criado de AUbnsoV, foi. 76, v. (e ella tomou o nome do
descobridor).
Rio do Giiahinii, ibl. 77, v.. e illia do Corisco.
Cabo de Lopo Gonmhes, tomou o nome do Capitão que o desco-
brio, e está pontualmente debaixo da linha, foi. 1^.
Ilhas de S. Thomé, e do Príncipe, descobertas por D. .loão II, e
povoadas, foi. 79.
O cabo de Santa Calharina, descoberto por Kuy de Sequeira em
tempo de D. AÍTonso V, foi. 79.
(6) Yej. as Dissertações Chronologicas e Criticas do Sr. João Pe-
dro Ribeiro, aonde trata dos Tittilos ou Diclados dos Soberanos de
Portugal, tom. 2.°, pag. 207; e Ruy de Pina, ahi citado, Chronica
de el-Rci D. Affonso V, cap. 167."
79
se originarão, não adiantou mais os descobrimentos. Os
nossos escriplores dizem uniformemente, que no seu
tempo se não passou do cabo de Santa Catharina.
El-Rei lalieceo em 1481, e em seu lugar subio ao tlirono
seu fllho D. João II, cujo reinado se pôde reputar como
huma das épocas mais gloriosas dos nossos descobrimen-
tos, e sem duvida a mais gloriosa deste periodo.
KEINADO DE EL-RKI D. JOÃO II, IlESDE liSl ATÉ OOTIIBRO DE 149S
Aiiuos de 1481 e 1 í82
El-Rei D. João II (denominado com razão pelos Portu-
guezes o Príncipe Perfeito) concebeo toda a extensão, e
grandeza das idéas, e projectos de seu tio, o immortal
Infante D. Henrique, e conheceo a fundo as grandes van-
tagens, que Portugal, e o mundo inteiro havia de tirar da
sua execução. Assim, foi este hum dos principaes cuida-
dos, e empenhos do seu saudoso, postoque infelizmente
pouco dilatado governo.
Logo no anno de 1481, ein que subio ao Ihrono, mandou
acosta de AfricaDiogo de Azambuja, Commendador de Cas-
tello de Vide na Ordem de Aviz ; o qual sahindo de Portugal
em lá de Dezembro com 10 caravelas e 1 urcas. aportou
em Guiné a 19 de Janeiro do anno seguinte de 148:2.
Sahio em terra a "ÍQ, e começou logo a levantar o cas-
teilo, que el-Rei quiz se denominasse de S. Jorge da Mina,
cujos materiaes hião appai'e!hados de Portugal.
Em roda deste castello se ajuntou logo huma povuação
notável, a que el-Rei deo o nome, e foro de cidade, por
Carta de 15 de Março de 148G.
O Azambuja assentou jjaz e commercio com Cazaman-
za, Rei daquella costa, e tentou (postoque sem effeito)
persuadil-o a abraçar o chrislianismu.
(Garcia de Resende, Chronica de el-liei D. João II.j
80
Anno de liSo
Neste anno despachou el-Rei a Diogo Cam aos desco-
brimentos da costa de Africa, aonde já tinha hido outra
vez de seu mandado, no anno anterior de 1484, ou pouco
antes.
O illustre navegador chegou na primeira viagem aos
13" latitude austral: descobrio o grande rio Zaire, e o
reino de Congo, e collocou nessa paragem hum dos pa-
diões, que para isso levava preparados.
Na segunda viagem adiantou até os 22° auslraes, e col-
locou segundo padrão não longe do Cabo Negro.
Os padrões erão delineados por el-Rei. Constava cada
hum de huma columna de pedra com 14 ou 15 palmos
de altura, e em cima delia huma cruz: tinha esculpidas
as armas de Portugal, e dous letreiros, hum em lingua
Portugueza, e outro em Latim, nos quaes se declarava o
nome de el-Uei, a data do descobrimento, e o Capitão que
o fizei"a, e ali collocára aquelle padrão.
Diogo Cam, e os Portuguezes que o acompanhavão, e
com elle sahírão em teria no Congo, houverão-se de tal
modo com o Rei que governava aquellas terras, que elle
não só ficou inclinado a favorecer a rehgião christãa, mas
também quiz que logo viessem a Portugal alguns dos
seus para se instruírem, e doutrinarem na lingua, nos
costumes, e nas artes dos Portuguezes; e pedia a el-Rei,
que lhe mandasse ministros da religião, officiaes de al-
gumas artes mecânicas, lavradores que lá ensinassem a
amansar os bois, e a cultivar, e aproveitar as terras, mu-
lheres que ensinassem a arte de amassar, e fabricar o
pão, ác.
Os moços Conguezes, que o Rei mandou, chegarão a
Portugal,, e estiverão a aprender as primeiras letras na
Caza de Santo Eloy até Dezembro de 1490, em que vol-
tarão ao Congo, hindo juntamente alguns religiosos, va-
81
nus oíiiciaes para a coiisti'ucção de huma igreja, e i)aia
os exercícios de algumas artes, muitos ornamentos, e va-
sos sagrados, livros, de.
Esta missão chegou ao Congo a 29 de Março de 1491.
O Hei, a Rainha, e muitos dos grandes, e povo receberão
o baptismo. Lançárão-se os fundamentos ;i igreja a 6 de
Maio de 1491. Hum dos negros, (jue tinha vindo a Por-
tugal começou logo a ensinar a ler, e escrever, ác. Final-
mente a armada Porlugueza voltou ao reino em 1492,
ficando lá muitos Portuguezes, huns para o tracto do com-
mercio, e para a defensão da fortaleza, que se levantara
no paiz, e outros destinados particularmente por el-Rei
para descobrirem o interior das terras; passarem, se pos-
sível fosse, até o Preste João (de que aqui parecia te-
rem-se achado novos indícios); indagarem os caminhos
daquelle império, de.
Por estes tempos, ou pouco depois, acrescentou el-Rei
ao seu dictado o de Senhor de Guiné, intílulando-se: aRei
de Portugal, e dos Algarves, d' aquém, e d' alem mar em
Africa, Senhor de Guiné.
(Vej. a respeito deste Titulo, ou Diclado, o que diz
o Sr. João Pedro Ribeiro nas Dissertações Chro-
nologicas e Criticas, tom. 2.°, pag. 207.)
Auno de líSC)
No anno de 1486 descobrio João Affonso de Aveiro o
leino, e terras de Benin, subindo pelo lío Formoso. D'ahi
veio a \)r\me'\idi pimenta de Guiné, que sendo levada pelos
Portuguezes a Flandres, foi muito bem acolhida, e esti-
mada no commercio.
Os Governadores, e habitantes de Azamor na Mauritâ-
nia, se mand.iião suhmeller ;'i obediência de el-Rei de Por-
tugal, obrigando-se a hum tributo annual.
TOMO V 6
Anuo de liSH
Neste mesmo anno de 1486 sahio do Tejo a fausta, e
íeliz expedição mandada ao descobrimento do grande
caboj, que termina a Africa ao sul, arrumado por alguns
dos nossos antigos em 35", e por outros em 34" e 30' de
latitude austral. Da qual expedição diz hum moderno
geógrafo esti^angeiro, que foi « a mais delicada, e a mais
dilficil que se tem tentado nos tempos modernos».
Encarregou o grande Rei D. João II esta tão importante,
como arriscada empreza a Bailholomeu Dias, em cuja com-
panhia forão seu irmão Pedro Dias, e Lopo Infante (que
alguns chamão João Infante), cada hum em seu navio.
Correrão os illustres, e ousados navegadoi"es a costa
Occidental desde o Cabo Negro, aonde tinha chegado
Diogo Cam (como ha pouco dissemos), para ò sul.
Aos 24" assentarão o padrão Santiago no lugaj' cha-
mado Serra Parda.
A 29° descobrirão â Angra das Voltas (7), assim de-
nominada das muitas voltas que os navegantes andarão
dando nessa paragem por espaço de cinco dias.
Apaitados deste lugar navegarão ao sul treze dias; e
como começassem a sentir grandes frios, e tivessem já
corrido por tanto tempo naquelle rumo, mandou Bartho-
iomeu Dias demandar a terra pelo rumo de leste, cui-
dando que a costa ainda ali correria norte-sul.
Passados dias, e não se encontrando terra, mandou ve-
lejar ao norte, e nesta direcção foi ter á Angra dos Va-
queiros, a que deo este nome pelos que ahi vii-ão pasto-
reando seus gados. Já os navegantes estavão além do
grande cabo, que hião Ijuscando, e que muito por largo
tinhão i'odeado sem o avistarem.
(7) E csla Angni das Voltas descobrioBarllioloiuea Dias por man-
dado de el-Rei D. João, que Deos tem. Está (segundo este esciiptor)
em 29° e 20'. (Esmeraldo, foi. 87.)
83
CoiTcndo ainda avante pela costa na mesma direcção,
ciiegárão a hum illiéo, que denominarão da Cruz, pelo
padião que nelle collocárão a 33° e 45' austraes (8).
Barlholomeu Dias mandou ainda navegar avante, obra
de 25 Ipguas, e chegarão com eíieito ao Rio do Infante,
a que derão este nome do appellido de hum dos navega-
dores. Os nossos antigos marinheiros arrumavão este rio
em 32° e 20' austraes.
Nesta paragem foi Bartliolonieu Dias obrigado (com
grande magoa sua) a retroceder, por a isso o forçarem os
clamores da gente dos navios.
Retrocedeo com efleito, avistou o grande cabo, a que
chamou das Tormentas^, pelas que nelle experimentara,
e ahi collocou o padrão S. Filippe.
Entrou linalmente em Portugal em Dezembro de 1487,
havendo dezeseis irtezes e dezesete dias que tinha sabido.
Dando conta da sua viagem a el-Rei, este grande Prín-
cipe, com admirável penetração de espirito, quasi presa-
giando o futuro, quiz que o cabo se chamasse da Boa Es-
perança, nome qi,ie conserva até ao dia de hoje, e que
será em todas as idades, paia o Monarca Portuguez, e
para toda a nação, hum titulo incontestável de gloria, su-
perior ao despeito, ao baixo ciúme, e á inveja dos es-
trangeiros.
Aiiiio de 1487
Quando el-Hei D. João II mandava por mar descobrir
o cabo da Boa Esperança, despachava também por teria,
(8) O padrão (iiif iJarlliolomeu Dias collocou no illico da Cruz
era de pedra, pouco ntais alto que hum lioiueiii, com liuma cruz em
cima, e esle padrão lem três leheiros, hum em Lalim, e oulro em
Arahiíjo, e o outro em nossa lin(jua(jem Portmjueza, e todos três di-
zem huma cousa: « 1 como el-Rei Dom João no anuo N. S. Jesu Ch\
de mil e cccc. e oitenta e oito annos, e em tantos annos da criação do
mundo, mandou descobrir esta costa per Bcrllioldiiicn Dias capitão
84
e por dilfereiíles vias, vários descobridores, que tentas-
sem chegar â índia, penetrar até os estados do Preste
João, indagar a possibilidade de navegar para aquellas
partes, examinar os caminhos por onde vinhão as espe-
ciarias, e drogas orientaes, informar-se de alguma passa-
gem pelo interior de Africa para a costa oriental, ác.
Entre estes viajantes descobridores são dignos de es-
pecial memoria os dous João Peres da Covilhãa, e Affonso
de Paiva.
Pelo mesmo tempo, e annos seguintes entretinha el-Rei
correspondência com alguns Príncipes e Senhores de Afri-
ca, e mandava estabelecer feitoria Portugueza em Huadem.
Ent!-e os descobridores, que forão ao interior, e virão
reinos e gentes até então desconhecidas, ficarão em lem-
brança da historia os nomes de Pedro de Évora, e Gon-
çalo Annes mandados a Tucurol, e Tombiicutu; Rodrigo
Rebello, Pedro Reynel, e João Collaço a Maudimanza, a
Tamala dos Fulos, ao Rei de Songo, e dos Moses, á-c.
Em huma nota particular ajuntaremos as noticias, que
se conservão nos escriptores, acerca destas viagens.
Aunos de 1Í.S7 e 1488
No mesmo anno de 1487, estando alguns Portuguezes
na foz do Sanagd (Senegal), por elles mandou Bemohi,
Rei negro de Gelofo, embaixada a el-Rei, com hum rico
presente, de que fazião parte cem escravos negros.
No anno seguinte de 1 488 veio o mesmo Príncipe em
pessoa a Portugal, implorar o auxilio de el-Rei D. João II
contra alguns seus vassallos rebeldes. Em Lisboa recebeo
o baptismo elle e outros senhores, que o acompanhavão;
e quando quiz voltar a Africa, mandou el-Rei huma frota,
de setts navios », c esto padroin parece do mar, quando homem está
perto deste ilhéo, &c. (Duarte Pacheco. — Esmeraldo, de sitii orbis.)
85
que o escoltasse, auxiliasse, e restituísse aos seus esta-
dos, e nella ecclesiasticos, que ensinassem e pregassem
o Evangellio, e a doutrina cliristrui; obreiros, que edifi-
cassem lium templo, de. E ordenou ao mesmo tempo,
que na foz do Sauagd se levantasse liuma fortaleza, por
ser informado, que este rio passava por Tomhucutu, e
Mnmbarco, que erão as maiores feiras do interioi-, de que
toda a Berbéria de levante e poente se provia, e abastecia.
Como el-Hei tinha em diversas partes do levante pes-
soas encarregadas de o infoi-marem, e avisarem de tudo
quanto podesse sei- conducente á execução das suas vas-
tas idéas, o Santo Padre Innocencio VIII lhe enviou por
estes annos hum Sacerdote Ethiope, recém- chegado da
Ethiopia, e residente no Collegio de Santo Estevão dos In-
dianos em Roma, para dar informação a el-Rei das cousas
do Preste João, de que tanto desejava noticias. Este Sa-
cerdote se chamava Lucas Marcos, e tinha vindo a Roma
de mandado do Imperador da Ethiopia sobre o Egypto,
isto he, do próprio Príncipe a quem se applicava o nome
de Preste João. El-Rei o recebeo, e acolheo com grande
prazer, e depois de haver delle muitas importantes noti-
cias, o despedio contente, e lhe deo cartas suas para o
Imperador.
Anno de U90
Em 1490 chegou .Toão Peres da Covilhãa (vid. anno de
1487) á corte da Abyssinia, sendo Imperadoí' Escander
(Alexandre), a quem entregou as cartas de el-Rei de Por-
tugal.
El-Rei, logo que teve noticias certas daquellas partes,
começou a preparar huma armada para hir ao descobri-
mento da índia; ordenou o Regimento prtr que ella havia
de governar-se; e designou piir;i (;a[)itã()-.Mór da expedi-
ção o grande Vasco da Gama. como refere o seu chro-
njsta Garcia de Rezende. A moilc pi-eveiiio este Príncipe
86
no meio de seus gloriosos traballios, e o descobrimento
ficou reservado para o seu successor.
No mesmo anno forão expugnadas na Mauritânia as viiias
de Targa, e Camice.
Anno de 1Í94
A este anno, e aos nove seguintes até o de 1500, se
devem referir as grandes viagens do Dr. Martim Lopes,
Jurisconsulto, Filosofo, e Medico, pelas terras do norte
da Europa, até aos confins desta parte do mundo, aonde
confronta com a Ásia. Destas viagens dá elle mesmo suc-
cinta noticia a el-Rei D. Manoel em carta que llie escreveo
de Roma no 1.° de Fevereiro de 1500, e que existe ori-
ginal no Archivo da Torre do Tombo, Corpo Chronolo-
gico, part. 1.% maç. 3.^, doe. 5.**
Anno de im
Neste anno aportou a Lisboa Christovão Colombo, já
de volta do seu primeiro descobrimento, a que fora de-
baixo dos auspicios dos Reis Catholicos.
Foi opinião mui corrente entre os nossos antigos, e re-
ferida por muitos escriptores nacionaes e estrangeiros,
que o primeiro descobrimento do Novo Mundo fora feito
por hum piloto Portuguez, arrojado pelo temporal até ás
terras occidentaes, o qual communicára a Colombo as
suas cartas, notas, e derrota.
Pareceo-nos pois que esta memoria se devia aqui con-
servar tal como a recebemos dos antigos, sem comludo
ser nosso animo roubar ao navegador Genovez a sua glo-
ria, ou diminuir bum só ponto da honrosa fama, e nome
illustre, que tão justamente adquirio, e a historia lhe con-
serva.
87
No mesmo anno de \ 493 mandou el-Rei povoar a ilha
de S. Thomé, dando a capitania delia de juro e herdade
a Álvaro de Caminha, Gavalleiro da sua Gaza, por Carta
de 11 de Dezembro.
Anno de 1 Wi
A i de Junho deste anno se assignou o celebre Tractado
de Toriesilhas entre el-Rei de Portugal, e os Reis Catho-
licos, pelo qual se ajustou, que contando 370 léguas desde
as ilhas íe Cabo Verde para o occidente, e tirando por
esse ponto huma linha imaginaria, que passasse pelos
pólos da te-ra, e dividisse o globo em dois hemisférios,
ficasse o occidental pertencendo aos Reis Catholicos. e o
oriental aos Portuguez»s, para nelles continuarem livre-
mente os seus (>scobrimentos.
Anno de liOii
A 25 de Outubrc deste anno de 1495 falleceo el-Rei
D. João II, com o que terminámos o 2." período do ín-
dice dos nossos descolrimentos.
Não he aqui lugar proorio para fazer o elogio deste So-
berano, a quem os Portiiguezes, mui avisadamente, de-
nominarão o Grande, e derão a qualificação de Prwcipe
Perfeito. Lembraremos tão somente pelo que toca ao
nosso assumpto:
Que em seu tempo se descobrio toda a costa Occiden-
tal de Africa desde o cabo de Savta Catharina para o sul :
se dobrou o grande cabo da Boa Esperança, e se passou
ainda além delle até o rio do Infapte:
Que no seu reinado se fundou o casíeilo e cidade de
íi. Jorçie da Mina. e se lançarão os prineiros fundamentos
aos estabelecimentos do Congo. pIantan<lo-se ali a religião
catholica, que depois foi em lanio cresLimento, e intro-
duzindo- se naquelles bárbaros paizes as aites, os olFícios,
e huma parte da civilisação eiu^^ipea:
Que este grande Rei não poupou diligencias algumas,
nem despezas para obter por meio de viagens terrestres
o conliecimento dos paizes orientaes, e das terras do in-
terior da Africa, deixando por este modo ao seu successor
as informações, e planos que tão úteis lhe forão para o
progresso de nossas emprezas :
Que no tempo deste Príncipe, por sua ordem, t com
auxilio de suas próprias luzes, e instrucção, os dous As-
trónomos Portuguezes Mestre Rodrigo, e Mestre iosé He-
breo, e o outro lambem hábil Astrónomo Martiíi Behaim
conseguirão melhorar o instrumento náutico, de que usão
os navegantes para tomar a altura do sol, zom o que se
facilitou muito a navegação pelo alto mar, e poderão os
navios desviar-se das costas, que até entío seguião com
grandes delongas, e inconvenientes:
Que elle mesmo, com a grande inteligência que tinha
em, todos os officios, e em particular nas artelherias (como
se explica Rezende), achou, e invent/)u o modo de trazer
mui grossas bombardas em pequenas caravelas, cousa até
então desconhecida, conseguindo com isto defender as
costas, 6 a navegação dos seus ;iavios com menos des-
peza, e mais segurança:
Que foi elle o primeiro, qub poz no mar huma não de
1:000 toneladas, a maior, reais forte, e mais bem aca-
bada, que até áquelle tempcse havia construído, armada
de grossas bombardas, e oJlras artelherias, e de tão forte,
e basta liança, e tão grcsso taboado, que a artelheria a
não podia passar (Rezeíide).
Também não parecerá impróprio deste lugar, referir
como este illustre Príncipe, já pelos annos de 1483, orde-
nara que seu prime D. Manoel, ainda então muito moço,
e apenas com direito muito eventual ao throno Portuguez,
a que depois sub/o, tomasse por diviza a esfera do mundo,
que com effeitp começou logo a usar, e conservou ainda
depois de Re»'. O que nos parece ser grande prova da
89
perspicácia, e penetração de el-Rei, tias suas vastas idéas.
e esperanças, e do presenlimento que linha dos futuros
gloriosos feitos dos Portuguezes.
Este Príncipe, diz hum geógrafo estrangeiro moderno,
fixou a soberania de l*ortugal em Guini', região fecunda
em ouro, marfim, e outras ricas producções; e legou á
sua nação huma grande herança de gloria, abrindo cami-
nho ás acções heróicas, que depois delle se praticarão na
conquista marítima das índias orientaes.
Finalmente ao tempo do seu fallecimenlo deixou quasi
prompta a armada, que havia de hir ao descobrimento da
índia (como já dissemos), e muitas importantes memo-
rias para ulterior execução de seus vastos projectos.
período ^:
DESDE O ANNO DE 1495 ATÉ AO DE 1578
coMpnFiiniNnE os reinados de EL-ni;i d. manoel, de el-iíei n. ,ioão iij,
E DE EL-REr D. SEBASTrÁO
REINADO DE El-REI D. MANOEL. U9r)-|!5'>l
Anno de I i!)7
El-Rei D. Manoel, achando quasi prompta a armada,
que seu antecessor apparelhára para o descobrimento da
índia, cuidou lopro em expedil-a, tendo em pouco os obs-
táculos, que a ignorância, e o timido receio lhe quizerão
ainda oppor.
Constava a armada de três ncáos, a saber:
i.* A náo S. Gabriel, capitania, em que foi Vasco da
Gama, Capitão-Mór da expedição: Piloto, Pedro de Alem-
qner, o mesmo que tinha hido com Bartholomeu Dias ao
descobrimento do cabo da Boa Esperança.
i2.* A náo S. Rafael, Capitão, Paulo da Gama, irmão de
Vasco da Gama: Piloto, João de Coimbra.
'^.^ A náo Berrin, Capitão, Nicoláo Coelho: Piloto. Pe-
dro de Escobar.
Hia mais huma barca com mantimentos: Capitão. Gon-
çalo Nunes.
Todos estes vasos levavão não mais que 160, ou 170
homens, tanto de armas, como de marinhagem, entre os
quaes se nomêão Fernam Martins, e Martim AíTonso. lín-
guas, e também pilotos.
91_
Esta pouco numerosa, mas ousada e feliz companha,
saliio do Tejo em hum sabbado 8 de Julho de 14Í)7.
Ao quinto mez de sua navegação, a 4 de Novembro,
também dia de sabbado, descobrirão huma bahia, que de-
nominarão Angra de Santa Helena, situada ainda na costa
Occidental, pouco antes de se chegar ao rosto do cabo.
Aqui se demorarão doze dias, e na quinta-feira 16 de No-
vembro continuarão viagem.
A 22 de Novembro dobrarão o cabo da Boa Esperança.
A 25, dia de Santa Catharina, cliegárão ao lugar, a que
se deo o nome de Âgoada de S. Braz, d'onde partirão a
8 de Dezembro.
A 23 de Dezembro avistarão a terra, a que se deo o
nome de terra de Natal, com respeito á festividade do
nascimento de .Tesu-Christo. As antigas cartas Portugue-
zas punhão o principio desta terra de Natal em 32 Va"
austraes.
A 40 de Janeiro de 1498 descobrirão o Bio dos Beis, a
que derão este nome, por ser então o oitavario da festa
da Epiphania. Este rio se chamou também Bio do Cobre, e
â terra se deo o nome de terra da boa gente. Os antigos
a denotavão a 25". O Gama deixou neste lugar dous de-
gradados dos que levava para exploradores das terras
barbaras, e continuou viagem a 15 de Janeiro.
A pouca distancia do Bio dos Beis denotarão a Agnada
da boa paz em 24 7-2° austraes.
A 25 de Janeiro descobrirão hum rio grande, que de-
nominarão dos bons signaes, pelos bons auspícios, que o
Gama tirou de algumas circumstancias favoráveis á sua
empreza. Aqui se deo pendor aos navios, e se collocou
o padrão S. Bnfacl, e teve o Gama o desgosto de lhe
morrer alguma gente por efrciío de huma terrível, e as-
corosa doença. Passados trinta e dois dias, e deixando em
terra outros dous degradados, continuarão a navegar a
24 de Fevereiro.
92
No \ .° de Março descobrirão quatro ilhas, e tomarão terra
na de Moçambique, aonde collocárão o padrão S. Jorge.
Levantarão ferro a 13 de IMarço, terça-feira.
No l.° de Abril, hindo em demanda de Qnilôa, a não
poderão tomar, pelo que navegando avante, chegarão a
Mombaça a 7 de Abril, véspera de Ramos, e lançarão ferro
á sua entrada. D'aqui sahirão a 13.
No dia 15 de Abril, que foi nesse anno dia de Páscoa,
fundearão em Melinde, aonde assentarão o padrão Sa?2to
Espirito. Está esta cidade em 3" austraes.
De Melinde, tomando piloto da terra, navegarão a 24 de
Abril no rumo de nordeste, atravessando aquelle grande
golfo.
A 20 de Maio de 1498 surgirão a duas léguas da cidade
de Calecut, termo de sua navegação, e logo depois pas-
sarão ao próprio surgidouro da cidade, aonde collocárão
o padrão S. Gabriel.
A 29 de Maio se avistou o grande Gama com o Çamori,
entregou as cartas de el-Rei, e deo a sua embaixada.
Á volta de Calecut descobrirão ainda a ilha de Anclie-
diva, e os ilhéos de Santa Maria, assim denominados do
padrão, que ahi se collocou.
A 5 de Outubro de 1 498 sahirão de Anchediva para Me-
linde; mas experimentando grandes calmarias, somente
chegarão a Magadoxo a 2 de Fevereiro, e a 7 surgirão
em Melinde, anno de 1499.
A 20 de Março de 1 499 dobrarão o cabo da Boa Es-
perança.
A 29 de Julho (alguns dizem de Agosto) entrou Vasco
da Gama no Tejo, aonde já o esperava Nicoláo Coelho,
que tinha chegado a 10 de Julho. Paulo da Gama ficou
sepultado na ilha Terceira.
Foi o tempo da viagem e ausência desta companhia de
heroes dous annos e vinte e hum dias; e somente che-
garão vivos 55 homens.
93
O graiidiuso templo e mosteiro de Belém, erigido por
el-Rei D. Manoel em acção de graças ao Céo pela felici-
dade do descobrimento da índia, lie hum monumento im-
mortal da piedade do Monarca, e da gloria da nação Por-
tugueza. Foi levantado no próprio lugar, em que o Ínclito
Infante D. Henrique havia fundado huma ermida para
d'ahi se administraiem os Sacramentos aos mareantes, e
hum hospital para o tratamento dos enfermos. Ainda hoje
se vê a estatua do illustre Infante sobre a porta principal,
e as de el-Rei D. Manoel e da Rainha D. Maria em lugares
mais secundários.
El-Rei, logo que o Gama entrou em Lisboa, accrescen-
tou o seu dictado, e denominou-se: iRei de Portugal e
dos Algarves, d'aqiiem e d'além mar em Africa, Senhor
de Guine, e da Conquista, Navegação, e Commercio da
Ethiopia, Arábia, Pérsia, e Índia y>, de. Titulo tão hon-
roso (diz Damião de Góes), quanto o he a mesma con-
quista! Com elle se achão lavrados documentos poste-
riores a Agosto de 1499. E nesse mesmo anno mandou
el-Rei lavrar os portuguezes de ouro com a legenda :
«Emanuel fíe.r Portugaliae, Algarbioriim citra et ul-
tra in Africa, et Dominus Guinae.y>
E ao redor das armas :
« Conquista, Navegaçam, Commercio, Aethiopiae,
Arabiae, Persiae, Indiae. »
Anno de loOO
Pedro AlvaresCabral, mandado á índia com huma grande
armada de treze náos, sahio de Lisboa a 9 de Março deste
anno ; e engolfando-se mnilo com o fim (ao que parece)
de se desviar da costa de Africa, e evitar as calmarias
de Guiné, foi arrojado a huma costa desconhecida ao su-
doeste, a qual avistou a 2t2 de Abril, quarla-feira da oi-
tava da Páscoa, e nesse dia surgio a cousa de G léguas da
94
terra. Ahi deo o uome de Monte Pascoal a hum alto monte
fjiie se avistava, e á terra chamou a terra da Vera Cruz.
A 23 navegou para a terra, e lançou ancora em frente
de hum pequeno rio, que Nicoláo Coelho foi examinar,
achando gente mansa, e tratavel.
A 24 correrão a costa para o norte em busca de alguma
boa abrigada, e achando lugar seguro para as nãos, ahi
lançarão ancora. Este he o que depois se chamou Porto
Seguro, arrumado pelos nossos navegadores em 16'' e 30'
austraes, ou em 16° e 40'.
A 26 de Abril, domingo, oitava da Páscoa, fez Cabral
que houvesse missa, e pregação em terra, a que elle as-
sistio com a gente da armada, e muitos dos naturaes, que
íizerão grandes festas, e folias ao seu modo; e para esta
solemnidade mandou levantar na praia huma grande cruz
de madeira.
Estando aqui alguns dias, em que a armada se proveo
de agoa e lenha, despachou Cabral hum dos seus navios,
Capitão Gaspar de Lemos, para vir trazer a el-Hei a noti-
cia daquelle novo descobrimento, e pondo em terra dous
homens, que no reino tinhão sido condemnados á morte,
e que levava para exploradores, seguio viagem paia a Ín-
dia a 2 de Maio.
No cabo da Boa Esperança soffreo a armada súbita, e
horrível tempestade, perdendo-se logo quatro nãos, huma
das quaes era commandada pelo illustre Bartholomeu
Dias, que descobrira, e dobi'ára o mesmo cabo, e na-
quelles mares ficou sepultado, verificando-se á risca a
profética ameaça do fero Adamastor, quando disse:
Aqui espero luuiar. su não uie engano.
De quem me descobiio summa vingança.-
Na costa oriental de africa, esteve a armada em Mo-
rambique, Quilóa, e Meliride; e na costa da Arábia, e Pér-
sia observou Magadaxo, Socotora, Julfar^ Ormuz, d-c.
95
Chegado a Índia saliio em Anchediva, passou a Calecut,
entrou em Cochim, e Cananor, e voltando a Portugal
em 1501, trouxe Embaixadores destes dous últimos
reinos.
Á volta lançou em Melinde dous Portuguezes, que tra-
balhassem por peneti'ar até á Abyssinia, e encarregou a
Sancho de Toar de reconhecer Çofala, e infoimar-se do
resgate do ouro, que ali se íiizia.
Em Besenegue, junto a Cabo Verde, encontrou a expe-
dição de três navios, em que Américo Vespucio fazia a sua
primeira viagem á Terra de Santa Cruz por ordem de
el-i\ei D. Manoel.
A Relação desta viagem de Cabral, escripta por hum
piloto Portuguez, que nella hia, foi traduzida em latim
poi' Ai'changeIo JMadi'ignano, e inserida no Novm orbis .
regionnm ac insidarum, de Grineo, tendo já sido vertida
em Italiano, e meltida na collecção de Ramusio com o ti-
tulo: (í Navegação do Capitão Pedro Alvares Cabral, es-
cripta por hum piloto Portuguez. »
(Vej. esta Relação na Collecção de Noticias para a
historia e geografia das nações ultramarinas da
Academia Real das Sciencias de Lisboa, tom -i.",
num. 3; e a Carta de Pedro Vaz Caminha a el-
Rei D. Manoel, na mesma Collecção, tom. 4.",
num. 3.)
-Neste mesmo anuo de 1500, Gaspar Corte Real,' nobre
Portuguez, tentou investigar o ultimo termo da America
septenitrional, e descobrir caminho para a índia pelo pólo
árctico.
Sahio do Tejo, na primavera, com dous navios, e che-
gou em sua navegação ainda além dos GO" de latitude
noite. Descobrio, e correo toda a terra de Labrador, que
também se licou chamando terra de Corte Real, e acima
delia a costa, que corre até o Rio das Malvas: descobrio
96
também a que chamou terra, ou ilha dos Bacalhaus, e
algumas outras a ella próximas, que os antigos denomi-
narão Cortes Reaes, e mui provavelmente a pequena ilha
á entrada do estreito de Hadson, que se chamou de Ca-
ramilo, corrompido este nome do Portuguez caramelo
(neve congelada).
O illustre navegante, voltando ao reino, repetio a mesma
viagem a lo de Maio de 1501, e como não houvesse noti-
cia delle, foi no anno seguinte de 1502 seu iimão Miguel
de Corte Real em busca delle, mas aconteceo-lhe a mesma
má fortuna.
Em 1503 despachou el-Rei D. Manoel duas náos em
busca de ambos, as quaes voltarão sem resultado algum.
Preparava-se ainda para repetir a mesma diligencia ou-
tro irmão mais velho, que os dous, por nome Vasco Ean-
nes Corte Real, do Conselho de el-Rei, Alcaide-Môr de
Tavira, e Governador das ilhas de S. Jorge e Terceira;
mas el-Rei não consentio que elle cumprisse o seu pio, e
fraternal propósito.
Vasco Eannes, comtudo, teve o senhorio da Terra Nova,
ou o titulo de Capitão Donatário da Terra Nova de Cortes
Reaes, o qual passou a D Margarida Corte Real, herdeira
da caza, e por ella a seu marido D. Christovão de Moura,
Conde, e depois Marquez de Castello Rodrigo, que lam-
bem se chamou, e seus descendentes, Senhor da Terra
Nova.
As cartas geográficas modernas não têem querido con-
servar a memoria do illustre Portuguez no nome de Corte
Real, dado ás terras por elle descobertas: mas Pinkerton,
no seu Compendio de Geografia moderna, edição de 1811,
não só diz, que no anno de 1500, Corte Real, Capitão Por-
tuguez, buscou huma passagem, ao norte, é descobrio o
Labrador; mas acrescenta em outro lugar, que <í a vasta
extensão das costas, comprchendidas entre os 57 e 77" de
longitude oeste de Paris, e entre os 52 e 62" de latitude
97
septemtrional, foi chamada terra do Labrador por Corte
Real, navegador Porttigiiez, que a descobria em lõOOt.
E iMalte Briin. Histaire de la Géografie, liv. 32.", não du-
vida dizer, que a. idéa de hum estreito ao norte da Ame-
rica, parece ter tido origem nas Relações, ainda mal co-
nhecidas, de Gaspar Corte Real, navegador Portuguez.
Anuo de loOl
Neste anno, João da Nova, mandado á índia por Capi-
tão de quatro nãos, c [)artindo de Lisboa a o de Março,
descoljrio a ilha da Ascensão a 20 V-2° austraes, e a cousa
de 120 léguas da costa do Brazil, e a outra, que se ficou
chamando ilha de João da Nova, ao oriente da Africa.
Barros, dec. 1.% hv. 5.°, cap. 10.", ediç. de 1628, diz que
João da Nova, passados 8° além da linha para o sul, achara
huma ilha, a que poserão nome de Concepção.
Voltando a Portugal, já no anno seguinte de 1502, des-
cobrio a ílha de Santa Helena (tão famosa nos nossos dias)
a 16^ ou 10 -/a" de latitude austral, a 4oO léguas do Cabo
Negro em Africa, e a 750 do cabo de Santo Agostinho,
ponto mais oriental do Brazil, segundo Malte Brun.
Os Portiiguezes nunca povoarão esta ilha; mas hum
Portuguez, por nome Fernam Lopes, que por especial
graça obteve viver ali em desterro, a povoou de vários
animaes domésticos, como [)orcos, cabras, coelhos, per-
dizes, Ac.;^ e fez algumas i)lantações. Acerca deste Fer-
nam Lopes, e suas circumstancias, pode ver-se Casta-
nheda, na Historia da índia, liv. 3.", cap. 69." e 94."
Ncst(! mcsnu) anno de iridl joi ;i |)ri!i)eira \iag(,'m, que
Américo Ves[iucio, Fldrciilino, fez (lor mandado dccl-Bei
de Portugal.
TOMO V 7
98
Sahio de Lisboa a 10 de Maio; correo a costa de Africa
até Cabo Verde, e passando d'ahi a reconhecer as costas
da Terra de Santa Cruz, que era o seu particular des-
tino, navegou por ellas até ao Rio da Prata, cliegando
ainda á terra, que depois se chamou dos Patagões, d'onde
voltou a Lisboa em Setembro de 1502.
(V^ej. a 1." Carla de Américo Vespucio na Collecção
de Noticias para a historia e geografia das nações
ultramarinas da Academia Real das Sciencias de
Lisboa, tom. 2.°, num. 4.)
Aniio de 4502
O grande D.Vasco da Gama voltou segunda vez á índia
com huma armada constante de vinte Ucâos em três divi-
sões, parte das quaes havião de lá ficar em guarda dos
mares.
Na sua passagem pela costa oriental de Africa fez tri-
butário o Rei de Qiiilôa, primeiro Príncipe daquellas re-
giões, que pagou páreas a el-Rei de Portugal.
Na índia assentou tratos de commercio com os Reis de
Cochim, e Cananor, aonde já havia feitorias Portuguezas:
e em Cochim recebeo embaixada dos Chiistãos de Man-
galor, e de muitos outros lugares, que espontaneamente
quizerão render vassallagem a el-Rei de Portugal, e se
poserão debaixo da sua protecção, dizendo que haveria
em todos os ditos lugares 30:000 Christãos, regidos por
hum senhor.
Castigou severamente a perfídia, e trato doble do Im-
perador de Calecut, e voltando ao reino em 1503, apre-
sentou a el-Rei, em acto solemne, o ouro do tributo de
Qiiilôa, que o pio Monarca dedicou a Nossa Senhora de
Belém n'huma rica Custodia.
Hum Portuguez, por nomeThomé Lopes, que Barbosa
diz ser natural da cidade do Porto, escreveo esta viagem
99
com o titulo: « Navegação ás índias Orientaesr), de que
foi parte e testemunha ocular.
(Vej. as Noticias para a historia e geografia das na-
ções ultramarinas da Academia Real das Scien-
cias de Lisboa^, tom. 2.°, num. o.)
Anuo de 1o03
António de Saldanha, hindo neste anno para a índia,
deixou o seu nome á Agnada do Saldanha, próxima ao
cabo da Boa Esperança, tendo ahi pelejado com os bár-
baros. Neste mesmo lugar foi depois morto por elles o
illustre Almeida, primeiro Vice-Rei da índia, como em
seu lugar notaremos (anno de 1510).
No mesmo anno navegarão para a índia duas armadas,
commandadas pelos dous Albuquerques, Francisco, e
Affonso.
Na primeira hia Antão Lopes, mandado por el-Rei com
embaixada ao Rei, ou Imperador dos Abexins; mas per-
dendo-se a náo, em que hia, ficou a embaixada sem
eíTeito.
Francisco de Albuquerque restituio el-Rei de Cochim
aos seus estados, de que havia sido expulso pelas armas
de Calecut: fundou fortaleza em Cochim, e foi a primeira
que levantámos na índia; e quando d'ali se retirou, dei-
xou em defeza daquelle reino o invicto heroe Duarte Pa-
checo Pereira, cujas espantosas façanhas são bem conhe-
cidas na historia,
A segunda armada, commandada por Affonso de Albu-
querque, teve hum successo semelhante ao de Pedro Al-
vares Cabi"al; porque de Cabo Verde, engolfando-se ao
mar, avistou a ilha da Ascensão, e tocou a costa da Terra
de Santa Cruz.
100
Chegado á índia, entrou em Coulam, rJdade ainda não
conhecida dos Portuguezes, assentou paz, e amizade com
o Rei, eslabeleceo feitoria, e trato de commercio, o fez
alguns ajustes em beneficio, e para protecção dos nume-
rosos christãos que ali habitavão.
Neste mesmo anno despachou ainda el-Rei D. Manoel
outra armada de seis náos, e nella fez sua segunda via-
gem Américo Vespucio.
As náos navegarão a Cabo Verde, e logo depois fazen-
do-se ao largo, pelo rumo de sudoeste, aos 3° da equi-
noccial para o sul, avistarão huma ilha, á qual foi man-
dada a não, em que hia Américo, com o fim de examinar,
se nella haveria porto, em que a armada ancorasse, e
neste meio tempo soçobrou a não capitania, salvando-se
a gente.
A armada dividio-se nesta paragem, e Américo, que se
mostra na sua Relação mui descontente do Capitão Por-
tuguez, acaso porque este se não sujeitava á sua orgu-
lhosa presumpção, nada mais diz do resto das náos. Elle
porém na sua, com outra de conserva, navegou em de-
manda da Terra de Santa Cruz.
No fim de dezesete dias descobrio hum porto, a que
púz o nome de Bahia de todos os Santos, aonde sahio em
terra, e esteve sessenta e quatro dias.
D'aqui resolverão estas duas náos correr a costa, e che-
garão a hum porto em 18" austraes.
Neste lugar estiverão cinco mezes, fundarão huma forta-
leza, e a deixarão guarnecida com 24 homens, armas, 12
bombardas, e mantimento para seis mezes. E diz Amé-
rico, que neste lugar, e acompanhado de 30 homens, en-
trara pelo sertão a distancia de 40 léguas da costa.
D'aqui voltou a Lisboa, e entrou no Tejo em Junho
de 1504.
101
N. B. Sobro esta, e a precedente viagem de Américo
Vespucio, que notamos ao anno de 1501, devem ver-se
as « Recherches hisloriqacs, critiques et hibliographiques
stir Améric Vespuceyy, pelo Sr. Visconde de Santarém.
Paris, 18'i2, 8."
Aníio de 450i
Ruy Loarenço Ravasco, que fora na armada do Salda-
nha, fez tributários a Portugal os Reis de Zanzibar, e de
Mombaça.
Diogo Fernandes Peteira (ou Pereira), que da mesma
armada se desgarrou, foi invernar a Çocíjío/y/, aonde ainda
não tinhão hido os Portuguezes.
El-Rei D. Manoel mandou ao Congo homens letrados,
mestres de ler, e escrever, músicos, livros de doutrina
christãa, paramentos sagrados, e outras cousas necessá-
rias para se continuar a instrucção religiosa, e a civilisa-
ção daquelles povos. De lá vierão também muitos moços
nobres a Lisboa para estudarem a religião, as letras, e os
costumes Portuguezes.
(Osório, MaíTei, á-c.)
Por estes tempos o Soldão do Egypto cemeçou a pu-
blicar, que havia de destruir a Casa Santa de Jerusalém,
o Sepulchro de Jesu-Christo, e o Mosteiro do Monte Sinay,
e obrigar os Christãos dos seus estados a se fazerem Ma-
humetanos, se os Portuguezes não desistissem de suas
emprezas na índia. Estas ameaças vierão a ter o resul-
tado, que se verá no anno de 1513.
Anno de loOli
El-Rei D. Manoel, informado das maquinações occultas,
e })õm'n leacs da Republica de Veneza, e da manifesta
102
opposição do Snlclão do Egypto, ligado com os Reis de
Calecut^ e de Camhaija, lesolveo mandar á índia lium
grande Capitão, que com o titulo de Vice- Rei, dirigisse,
promovesse, e defendesse os negócios da navegação, e
commercio daquellas partes. E escolheo para este impor-
tante cargo o illustre D. Francisco de Almeida, o qual,
acompanhado de liuma poderosa armada de vinte e duas
velas, sahio do Tejo em Março deste anno.
Na sua passagem pela costa oriental de Africa expugnou
Qiúlôa; dethronisou o Rei que recusava pagar as páreas
estipuladas, e se mostrava inimigo dosPortuguezes; deo
á cidade novo Rei, que elle mesmo coroou com grande
solemnidade; e fundou a fortaleza, a que deo o nome
de Santiago. El-Rei D. Manoel mandou depois debuxar
o acto da coroação em ricas tapeçarias, que por muito
lempo se conservarão.
Chegado á índia fundou as fortalezas de Ánchediva, e
Cananor. Coroou solemnemente o Rei de Cochim, a quem
el-Rei D. Manoel mandava huma rica coroa de ouro. Re-
cebeo Embaixadores do Rei de Narsinga, e de outros
Príncipes, e assentou com elles paz, amizade, e alliança.
Seu valeroso filho D. Lourenço de Almeida descobrio
Ceilão (que Góes escreve Zeilnnd), de que osPortuguezes
já tinhão noticia. Entrou no porto de Gale, e prometteo
ao Rei defensão e protecção, com elle se obrigar ao tri-
buto annual de 400 babares de canella para el-Rei de Por-
tugal.
Pedro de Anhaya fez vassallo, e tributário de Portugal
o Rei de Çofala, e lançou ahi os fundamentos de huma
fortaleza aos 21 de Setembro deste anno.
(Castanheda, liv. 2.'\ cap. 11. °)
No mesmo anno se lançarão os fundamentos ao castello
de Santa Cruz. no cabo de Aguer, na Mauritânia, aonde
103
logo se formou liuma notável villa, que se denominou
Villa de Saitla Cruz no cubo da Aguer.
Anno (Ic liiOfi
João Homem, Capitão de huma caravela, pertencente
á armada do Vice-Rei D. Francisco de Almeida, descobrio,
antes de chegar ao Cabo da Boa Esperança, três ilhas, a
dez léguas hnmas das outras, a que pôz nomes Santa
Maria da Graça, S. Jorge, e S. João.
(Damião de Góes, Chronica de el-Rei D. Manoel,
part. ±\ cap. 3.°)
Tristão da Cunha, hindo para a índia, e tomando muito
ao sul para dobrar o cabo da Boa Esperança, descobrio
humas ilhas despovoadas, que do seu nome se ficarão
chamando as ilhas de Tristão da Cunha.
Ruy Pereira Coutinho descobrio pela parte de dentro
(occidental) a grande ilha de Madagáscar, e pôz o nome
de Bahia Formosa, á bahia em que primeiro entrou.
Dando parte do descobrimento a Tristão da Cunha, par-
tio este a reconhecer a terra. Tocou vários pontos da
costa occidental, e chegando ao cabo da ilha em dia de
ISatal, lhe deo esse nome. A não de João Gomes de Abreu
dobrou este cabo, e correndo pela costa oriental foi dar
na boca de hum rio, na província de Matatana, aonde
descendo em terra, e sendo necessário apartar-se a não,
ficarão alguns Portuguezes em terra.
(Castanheda, llv. ±°, cap. 30.° e 31.°)
Ao mesmo tempo que as nãos do commando de Tristão
da Cunha descobiião Madagáscar pela banda occidental,
outras nãos, que vinhão em frota i)ara o reino, Capitão
Fernam Soares, a descobiião pela píule oriental, avis-
tando-a no 1.° de Fevei'eiro. Correrão á vista delia deze-
sete dias, e tendo feito agoada e lenha, a passarão a 18
do mesmo mez. A esta ilha derão o nome de S. Lourenço^
104
por ser achada a 10 de Agosto pelos descobridores da
parte occidental.
A 6 de Fevereiro de \ 507 escrevia Affonso de Albu-
querque a el-Rei D. Manoel com data de Moçambique, e
já lhe falava do descobrimento da ilha de S. Lourenço.
(Real Archivo, Corpo Chronologico, part.l.^, maç.6.°,
num. 8.)
Affonso de Albuquerque voltou neste anno á índia, en-
carregado de tomar o cargo de Governador, logo que
D. Francisco de Almeida acabasse o tempo do seu vice-
reinado. Na passagem para a índia embocou o Estreito
do golfo Arábico.
No mesmo anno sahio da índia para Portugal o pri-
meiro elefante, que de há veio, mandado a el-Rei pelo il-
lustre Almeida.
No mesmo anno finalmente fundou Diogo de Azambuja,
por ordem de el-Rei, o Castello Real (Mazagão) na Mau-
ritânia.
Anno de lo07
Neste anno descobrio D. Lourenço de Almeida as ilhas
Maldivas.
Tristão da Cunha poz em Melinde hum Portuguez, por
nome Fernam Gomes o Sardo (Castanheda diz João Go-
mea ho jardo), hum Mourisco Christão, chamado João
Sanches, e hum Mouro de Tunes, por nome Cide Maha-
mede, mandados por el-Rei D. Manoel com cartas suas ao
Imperador Abexi. O bom Rei de Melinde encarregou-se
de lhes dar aviamento para a viagem; mas como o não
podesse fazer com a segurança, que desejava, ficou a via-
gem sem effeito por aquelle caminho.
105
Tristão da Cunha, correndo a costa de Aja??, expugnou,
e destruio Oja e Brava, e fez tributaria Lamo. Em Brava
foi armado Cavalleiro pelo grande Albuquerque, que o
acompanhava nestas expedições. D'ahi passou a Çoco-
torrí, cuja fortaleza tomou, e reformou, dando-lhe o
nome de S. Miguel, e deixando-a guarnecida de Portu-
guezes, e tendo ordenado o governo da ilha, partio para
a índia.
(Castanheda, liv. 2.", cap. 36.° e 38.°; Góes, Chro-
nica de el-Rei D. Manoel.)
Duarte de Mello fundou a fortaleza de Moçambique, e
nella huma igreja, e hum hospital.
Affonso de Albuquerque correo a costa da Arábia, e
Pérsia: assentou paz com Calaiate; expugnou Curiale
e Mascate; fez tributaria Soar; mandou saquear Orfa
çam, que achou despejada de habitantes; e entrando em
Ormuz fez o seu Rei vassallo, e tributário de Portugal, e
começou a 24 de Outubro a levantar ali a fortaleza, a que
pôz o nome Nossa Senhora da Victoria.
(Castanheda, liv. 2.°, cap. 53.° e seguintes; Góes,
Chronica de el-Rei D. Manoel.)
No mesmo anno de io07 os Porluguezes, commanda-
dos por Diogo de Azambuja, entrarão na cidade de Azaafi
(que nós chamámos Çafim), na Mauritânia Tingitana, da
qual se assenhorearão completamente no anno seguinte
de 1508.
Guerra que o Rei de Cananor faz aos nossos. Cerco da
106
nossa fortaleza, defendida valerosamente pelos Portiigue-
zes, Capitão Lourenço de Brito.
(Castanheda, liv. 2.°, cap. 45.° e 52.°)
Annos de io08 c 1509
No anno de 1508 foi Diogo Lopes de Sequeira mandado
por el-Rei a reconhecer a ilha de Madagáscar, e a des-
cobrir Malaca.
Chegou á ilha a 4 de Agosto. A 10 avistou na parte
oriental hum cabo, a que pòz nome de S. Lourenço. To-
cou algumas ilhas, aonde achou Portuguezes, que ali tl-
nhão naufragado. Entrou no porto de Toramhaia, aonde
se vio com o senhor da terra, e achou outro Portuguez.
D'aqui navegou a outras ilhas, que denominou de Santa
Clara, e nellas fez provisões. Passou ao reino de Mata-
tana, aonde sahio em terra, e chegando ao rio que tem,
o mesmo nome, também ahi achou Portuguezes. Correo
ainda ao longo da costa, por onde vio muitas povoaçijes,
até chegar a huma grande bahia, que denominou de S. Se-
bastião, pola ter descoberto a 20 de Janeiro de 1509.
D'aqui partio para a índia, e chegou a Coe/rim a 21 de
Abril de 1509.
Em Agosto do mesmo anno de 1509 navegou ao des-
cobrimento de Malaca, conforme as ordens que tinha de
cl-Rei D. Manoel. Passadas as ilhas de Niçuar, foi ter a
Pedir, e a Pacêm, na ilha de Çamatra, e em ambas ci-
dades levantou padrões, depois de ter assentado capitu-
lações de paz com os seus Reis. D'ahi navegando foi sur-
gir a 1 1 de Setembro em Malaca, cidade principal da
peninsula do mesmo nome, e grande empório de todo o
oriente, ari'umada pelos escriptores Portuguezes em 2 '2°
latitude septemtrional. Em Malaca assentou artigos de
paz e commercio com o Rei, e estabeleceo feitoria. Nesta
expedição hia Fernam de Magalhães,
107
Os três mensageiros de el-Rei, que Tristão da Cunha
pôz em Mel ilide para passarem á Abijssmia, c que por
ali não poderão penetrar (vej. anno de 1507), forão em
1 508 ter com Alíjuquerque, que andava no cabo de Guar-
da fai. EUe os pôz em hum kigar a três léguas do cabo,
d'onde, levando também carias de Albuquerque, pene-
trarão com effeito até á corte do Abexi, aonde i-einava
David, e por sua menoridade governava sua avó Helena.
Desde então resolverão estes Principes mandar hum em-
baixador a Portugal, e derão este cargo ao Arménio Mat-
theus, de que a seu tempo se dirá (anno de 1514).
(Castanheda, liv. ±^, cap. 85.°)
Em dia de S. Braz, 3 de Fevereiro de 1 509, foi a grande
batalha naval, em que o insigne Vice-Rei D. Francisco de
Almeida venceo a armada do Soldão do Egypto, combi-
nada com a de Calecut, e de Camhaya, e afugentou da
índia os Rumes destroçados. xVssentou então pazes com
Melique-As, senhor ás Diu: confirmou as que tínhamos
com o Rei de Chaul, de quem recebeo as páreas, dando-
Ihe carta de vassallagem : avistou-se com o Rei de Onòr,
e augmentou o tributo, que já pagava a Portugal : fez vas-
sallo de Poi'tugal o Rei de fiaficnla, e lhe inipoz também
tributo. Finalmente recolheo-se a Cochim, e pouco depois
entregou o governo da índia a Affonso de Albuquerque,
que para elle fora nomeado, como já indicámos ao anno
de 150(5.
De volta para Portugal, já no anno de 1510, e no 1.''
de Março, foi este insigne Capitão morto cruelmente pelos
bai'baros na Agoadn do Saldaufia, aonde sahíra em (erra:
verilicando-se nellc também aquella terrível ameaça do
implacável Adamastor:
E do primeiro illiislrc, que a ventura
Com fama alta fizer locar os ceos
vSerei eterna, e nova sepultura.
108
Additamento
Em 1308 partio Tristão da Cunha de Moçambique, de
volta para Portugal, a 17 de Janeir-o, e de caminho desco-
hrio a ilha da Ascensão, diz Castanheda, liv. 2.^ cap. 84,"
N. B. Duas ilhas tèem o mesmo nome da Ascensão,
huma em 20 72'' sul, a 120 léguas da costa do Brazil,
descoberta por João da Nova em 1501, de que falámos
a esse anno; outra no mar da Elhiopia a 8** sul, e a 6°, 48'
longitude da ilha do Ferro, que deve ser esta de que fala
Castanheda.
(Pimentel, Arte de navegar.)
Anno de 1510
Mandou el-Rei três armadas ao oriente, constantes todas
três de quatorze náos.
Huma destas armadas, de que era Capitão João Serrão,
hia encarregada de assentar paz, e amizade com os Reis
de Matatana, e Toriimbaia na illia de S. Lourenço (Ma-
dagáscar), e fazer ajustes de commercio.
João Serrão entrou no porto de Antepara, no reino de
Toriimhaia; foi aos ilhéos de Santa Clara, entrou no rio
de Monaiho, e tomou outros portos da ilha; mas não
achando as especiarias que buscava (diz Góes), partia
para a Índia.
Neste anno, a 25 de Novembro, dia de Santa Catharina,
expugnou, e conquistou AlTonso de Albuquerque a cidade
de Gôa, na costa occidental da índia áquem do Ganges,
reino do Dekham.
(Castanheda, Barros, Góes, ác.)
Ahi levantou logo fortaleza: bateo moeda de ouro,
prata, e cobre: cazou muitos Portuguezes com moças na-
turaes da terra, fazendo a todos mercês, e distribuindo-
109
lhes l6ri'as, e pnlinares: orgaiiisou o governo municipal,
e deo sabias providencias para conservação, augmento,
l)ovoação, e policia de hiima cidade, que no seu pensa-
mento era já destinada para assento do governo Portu-
guez, e capital do império lusitano oriental.
Os Reis de Baticala, de Chaid, de Narsinga, o Çamori
de Calecut, o Rei de Cambaija, e outros Príncipes lhe
mandarão por seus embaixadores os emboras da victoria.
No muro da nova fortaleza mandava o Ínclito Capitão
metter huma lapida, em que fizera gravar os nomes dos
Capitães, que foifio com elle na empreza d"aquella con-
quista. Como porém os próprios Capitães entrassem em
discórdias, e ciúmes sobi'e as preferencias dos nomes,
Albuquerque mandou voltar a face da pedra para o inte-
rior da muralha, e ordenou, que na face exterior se gra-
vassem aquellas palavras:
LAPIDEM QUEM RÉPROBA VERUNT EDIFICANTES.
PEDRA REPROVADA PELOS EDIFICADORES.
Anuo (Ic 1511
No mez de Agosto deste anno expugnou, e conquistou
Aflbnso de Albuquerque a grande cidade de Malaca, cujo
Rei havia intentado perfidamente dar a morte a Diogo Lo-
pes de Sequeira, depois de ter assentado com elle paz, e
commercio, como dissemos ao anno de 1509.
Levantou logo fortaleza; bateo moeda de ouro, prata,
e estanho; e ordenou as cousas do governo, e adminis-
tração publica com singular prudência, e discrição.
Immediatamente despachou embaixadores, c descobri-
dores para differentes partes daquelle remoto oriente,
para Sião, Malaco, Pcgú, Jaliua, e China.
I." Para assentar o trato de Maliicn mandou Ires nãos,
e hum junco. Nas nãos hião António de Abreu, Caiiitão-
iMór da armada, e Francisco Serrão, e Simão Aííbnso: no
110
junco hia por Capitão hum Mouro, que costumava nave-
gar para Maluco, e era vassallo de Portugal. Huma das
náos se perdeo através de Jao. As mais forão ter á ilha
de Banda, onde estiverão quatro mezes, voltando a Ma-
laca, sem hirem ao seu destino, tanto pela demora da
monção, como porque ali mesmo receberão de Maluco
cravo, com que se carregarão as náos, e ali mesmo to-
marão maça, e noz. Abreu porém enviou ao Rei de Ma-
luco as cartas de Albuquerque.
Nesta viagem, e já no anno de 1512, descobrio António
de Abreu a ilha de Amboino, e Francisco Serrão passou a
Ternate, huma das Molucas.
2.° Ao Rei de Siom mandou Albuquerque cartas, e re-
cados seus por Duarte Fernandes; e como o Rei rece-
besse bem o cumprimento, e mandasse embaixada a Al-
buquerque com ricos presentes, e com carta para el-Rei
de Portugal, Albuquerque lhe correspondeo, enviando a
Hodiá, corte de Siam, por embaixadores António de Mi-
randa de Azevedo, e Duarte Coelho.
3." Ao Pcgú foi mandado Ruy da Cunha (que outros
chamão Gomes da Cunha), o qual assentou ajustes de
paz com o Rei, ác.
Pelo mesmo tempo recebia Albuquerque em Malaca
embaixadores de hum Rei da Jahua, do Rei de Campar,
de hum dos Reis da ilha de Çamatra, e de outros Reis, e
senhores do sertão, e das ilhas vizinhas, parte dos quaes
se íizerão vassallos, e parte amigos, e confederados de
el-Rei de Portugal.
(Castanheda, liv. 3.° da Historia da Índia: e Goes^
na Chronica de cl-Iiei D. Manoel.)
Ao tempo, que Albuquerque sahio de Malaca para a
Índia, encommendou muito ao Capitão que ali deixou, e
depois ao seu successor, qne não partisse navio de mer-
cadores daquella cidade, onde não fosse lunn Porlnguez,
homem de bom espirito, e discrição, para trazer infor-
Hl
viação do que visse, e ouvisse daquellas regiões, e tantas
mil ilhas como aquelle mar oriental tem.
(Barros, dec. 3.% liv. 2.°, cap. 6.°, de.)
Annos de 1512 e Ial3
Albuquerque voltando á índia, recebeo embaixadores
do Rei de Visapor (ou Vigapor), do Çabaimdolkan, do
Rei de Cambaya, de.
Recebeo também o Arménio Maltheus, embaixador do
Ahexi, que vinha para passar a Portugal com cartas, e re-
cados daquelle Príncipe; e outro embaixador do Réi de
Ormuz, que vinha com o mesmo destino.
Nos fins de lolá, e principies de 1513, ajustou capi-
tulações de paz com o Çamori de Calecut, o qual con-
sentio que ali fundássemos logo fortaleza, e despachou
dous embaixadores seus a Lisboa.
Restituio o Rei das Maldivas á posse de algumas ilhas,
que lhe andavão usurpadas, e o Rei se fez vassailo, e tri-
butário de Portugal.
Navegou depois para o golfo Arábico, e entrou as suas
portas pela parte da Arábia: tomou a ilha de Camaram:
collocou hum padrão na ilha de Mehum, ás portas do Es-
treito, com a denominação de Vera-Cruz; e mandou Ruy
Galvam, e João Gomes a descobrir Zeila.
No mesmo anuo de 1513 foi enviado ao Albuquerque
hum Judeo Portuguez do Cairo, morador em Jernsalvm,
mandado pelo Guardião do convento de S. Francisco da
Santa Cidade, para o avisar das ameaças que fazia o Sol-
dão do Egypto, das quaes já falámos no anno de 1504.
Albu(juerque dirigio este mensageiro a Portugal, aonde
el-Rei recebeo, ou tinha recebido outros semelhantes
avisos por via de Roma, e por cartas do Santo Padre, que
parecia mui assustado daipiellas ameaças. El-Rei D. Ma-
noel respondeo com a dignidade que devia, desprezando
H2
OS feros, e ameaças do Soldão. Dizia ao Papa, que sentia
muito não ter dado ao Soldão mais, e maiores motivos
de seu desgosto, e queixumes, á-c. E foi continuando em
seu plano.
(Góes, Chronica de d-Rei D. Manoel, part. 1/'',
cap. 93.°, Ac.)
A este anno de 1513 reduzimos o descobrimento da
ilha de Mascarenhas, a este de Madagáscar ; porque con-
stando que ella fora descoberta por Pedro de Mascare-
nhas, de cujo appellido tomou o nome, não sabemos que
este fidalgo passasse á índia senão em 15 U, chegando a
Moçambique em 1512; pelo que ou nesse mesmo anno,
ou no de 1513 a descobiiiia, segundo nossa conjectura.
Comtudo alguns geógrafos estrangeiros a suppõem des-
coberta em 1505, e Malte Brun assigna ao descobrimento
o anno de 1545, no que parece haver manifesto engano.
Esta ilha he a mesma, que os Francezes chamarão de
Bourbon, quando delia se apossarão; mudança de nome,
que somente pôde servir para escurecer a memoria do
descobridor; mas não nos admiremos. Esta mesma ilha,
a que os Francezes tirarão o nome de Mascarenhas, e
derão o de Bourbon, foi por elles mesmos, e no espaço
de poucos annos, chamada ilha da Reunião; logo depois
ilha Bonaparte; mais depois outra vez ilha de Bourbon;
e ao presente deverá admirar, que se Ihenão teiiha dado
o nome de ilha de Orleans! Os Portuguezes a povoarão
de animaes domésticos, e muitas vezes hião ali as nãos
prover-se de refresco.
Aimo de 1513
Os Portuguezes commandados pelo Duque de Bragança
D. Jayme, conquistarão neste anno Azamor, Tite, e Alme-
dina, na Mauritânia Tinçiitmia, sobre a costa do Atlântico.
Diz Damião de Góes, que a armada constava de mais de
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qiialroceritas véins do lodos os porles, o (jiio liião ludla
18:000 iiilaiites, e t2:500cavallos, alóni da gente da iiiario-
bra e serviço do mar. Esta grande armada apromptoií-se
em quatro mezes e meio. .
Anuo de lol4
Mandou el-Rei ao oriente duas náos, Capitães Luiz Fi-
gueira, e Pedro Yanes Francês, com o determinado in-
tento de concertarem ajustes de commercio com os habi-
tantes da ilha de S. Lourenço, e levantarem fortaleza em
Matata/ia. Os dous Capitães estiverão cousa de seis me-
zes neste porto; mas relirai'ão-se sem outro eííeito.
Em Fevereiro deste anno recebeo el-Uei em Lisboa o
Arménio Mattheus, embaixador de David, Rei da Ethiopia
sobre o Egijpto, com cartas deste Príncipe, e de sua avó
Helena. Mattheus, tinha precedentemente chegado a Gôa
para d'ali vir a Portugal, e dava noticia de Ires Portu-
guezes, que esta vão na Ethiopia, hum, por nome João,
que havia muito tempo tinha sido maruiado por hum Rei
de Portugal, e os outros dous, que de pouco tempo ti-
nhão lá chegado,
Recebeo também el-Hei o embaixadoí' do Rei de Ormuz.
Veio a Lisboa hum Naire mandado a el-Rei [lelo Ça-
mori de Calecut para aprender a lingua Porlugueza, e
andar na còrle, e ver os costumes Porluguezes. Este Naire
recebeo o baptismo, e tomou o nome de D. João.
Neste mesmo anno, em hum domingo, \^1 de Março,
Jbi apresentado ao l'apa Leão X, em nome de el-Rei de
Portugal, hum ri(|uis.sinií) presente (iusoiiia ac prorsus
iiuigiri/ica niunera), em (|U(í liirio iniiiliis cousas i'icas e
preciosas da Azia, e algumas cniiosidades daijucllas ter-
TuMO V «
H4
ras, como era, por exemplo, hum elefante governado por
hum índio, e hum cavallo Pérsio com sua onça de caça,
dadiva do Rei de Ormuz, &c. Foi embaixador de el-Rei a
Roma Tristão da Cunha, assistido dos Doutores Diogo Pa-
checo, e João de Faria, e levando por Secretario da em-
baixada Garcia de Rezende.
\iiii() (Ic Kilo
Neste anno o grande Albuquerque pôz definitivamente
á obediência de el-Rei de Portugal a importante cidade
de Ormuz: recebeo nella com grande solemnidade o em-
baixador do Scbach Ismael, Rei da Pérsia; e mandou com
o mesmo caracter á corte de Ispalian Fernam Gomes de
Lemos, senhor da Trofa.
Fernam Gomes já estava de volta na índia em 1517, e
de Cnchim mandou a el-Rei hum livro em que dava conta
da sua embaixada, e do caminho que fízera.
Neste mesmo anno, o grande Affonso de Albuquerque,
este não menos homem de estado, que insigne Capitão,
vindo de Ormuz para Góa, faileceo no mar á vista de
Gôa, em domingo 16 de Dezembro, aos sessenta e três
annos de sua idade.
Nos seis annos do seu governo fundou, e íirmou o im-
pério Portuguez do oriente pela conquista dos três im-
portantes pontos de Gôa, Malaca, e Ormuz, que na sua
vasta idéa abrangião todo o commercio do oriente, e fa-
zião os Portuguezes senhores de seus mares, e de suas
ricas, e variadas producções.
Malaca era o empório geral a que concorria o cravo
das Molucas, a ?wz de Banda, o sândalo de Timor, a cân-
fora de Borneo, o ouro de Çamalra, e do Leguio, e as
il5
g( munas, aioinas, c mais mercadoiias preciosas da Chtna,
do Japão, de Siam, de Pegú, ác.
Gôa reunia ao que liie vinha de Malaca os estofos de
Bengala, as pérolas de Knlckar, os diamantes de Nar-
singa, a canella, e rubis de Ceilão, a pimenta, gengibre,
e outras especiarias do Malabar, que até então enrique-
cião Calecut, Cambaya, e Ormuz.
Ormuz finalmente era como entreposto, aonde se de-
positavão todas as producções da índia, e mais paizes
orientaes para d'ahi passarem pelo golfo Pérsico a Bas-
sora, e logo em caravanas á Arménia, Trebisonda, Alepo,
Damasco, de.
Já dissemos muito em summa, como este grande ho-
mem, estendeo, e ampliou em lodo o oriente o nome
Portuguez, mandando embaixadores, e descobridores aos
paizes mais remotos, ajustando pazes, e commercio com
muitos Príncipes, e recebendo de todos elles testemunhos
de respeito. Muitos delles derão mostras de grande sen-
timento pela sua morte, e alguns tom;irão luclo por ella. . .
Nunca a inveja, e 9 ingratidão sacrificarão mais illustre
victima !
Albuquerque era mui douto nos estudos astronómicos,
cosmograficos, e náuticos, como educado, que fora na
escola Portugueza daquelles felices, e saudosos tempos;
e frequentes vezes propunha difficeis problemas nestas
sciencias ao grande geometra Portuguez Pedro Nunes.
Alguns escriptores estrangeiros lhe attribuem o pensa-
mento, e projecto de derivar o Nilo para o golfo Arábico,
com o lim de dar hum grande golpe no poder do Soldão
do Egi/pto.
Hum filho deste illustre Capitão, por nome Braz de Albu-
(|uerque, a quem el-Uei D. Manoel mandou tomar o nome
de Álfotiao em memoria de seu pai, escreveo: « Comnien-
tarios de Afjonso de Albuquerque », que se imprimirão em
Lisboa em líJTO, em Ibl.
116
Aiiiio de liiKi
O primeiro Portuguez (diz iium escriptor antigo), que
descobrio o reino da Canc/unchina foi Duarte Coelho, aos
dezoito annos da nossa entrada na índia, deixando em me-
moria disso liuni padrão com o seu nome, e tempo do
descobrimento. Este íidalgo teve depois em remuneração
dos seus serviços da índia as terras da capitania de Per-
nambuco no Brazil, tjue começou a povoar, quando se re-
solveo a colonisação daquelle grande continente, como em
seu lugar tocaremos.
Neste anno de 151(1 acabou de escrever o seu liiro
Duai'le Barbosa, descrevendo nelle a maior parte de nossos
descobrimentos, e os lugares, e portos desde o cabo de
S. Sebastião até aos Lcqnios, á-c.
(Vej. a edição da Academia Heal das Sciencias, que
o imprimio em 1813.)
Não se nos estranhará, que façamos aqui menção de
Ires nobres Sarmatns, que movidos da grande fama, que
corria do nome de el-Ilei D. Manoel entre aquelles povos,
vierão a Lisboa com o único intento de verem hum tão
grande Principe, e de receberem delle a Ordem da Caval-
laria. El-Rei os armou Cavalleiros neste anno de 1310, e
com generosas dadivas os despedio contentes. Isto prova
(a nosso parecer) o brado, que davão pela Europa os
nossos descobrimentos, e navegações, que os esciiptores
estrangeiros tratão hoje com tanto desdém, e qnasi des-
prezo.
(Góes, C/n (miai de el-Hei I). Manoel.)
117
Aiiiu» de 1ÍÍI7
Fernam Peres de Andrade, mandado á China, tocou
Pacrm na ilha de Çainatra, onde os Porliigiiezes já linhão
commercio: assentou pazes c(»m o Hei de Palane, e neste
anno de 1517 passou ;i China, a])orlando primeiro á iltia de
Tamcu, a pouca distancia do continente daquelle grande
imperid. Ciiegando ao continente fez ajustes de paz, e
commercio com os Governadores de Cantam, e lançou
em terra o embaixador, que levava com esse destino, i)or
nome Tliomé Pires, o qual depois de quatro mezes de ca-
minlio entrou na corte úe Nanquim. Fernam Mendes Pinto
ainda encontrou na China huma filha deste embaixador,
e hum Vasco Calvo, que o tinha acompanhado na sua in-
feliz missão.
(Vej. as Peregrinações de Fernam Mendes Pinto,
£ap. 91.'^elI6.°)
Fernam Peres de Andrade voltou da China com Si-
mão de Alcáçova, e Jorge Mascarenhas, e chegou á índia
em loI9.
(Vej. Castanheda, liv. 4.°. cap. 27. ° e seguintes, e
hv. r}.". cap. 80.". de.)
Neste mesmo anno foi expugnada, e destruída a cidade
de Zeila ás portas do esti'('ito do ç/olfo Arábico, da parte
de Africa.
(Livro de Duarte Barbosa, art. Zeila.)
O Schá da Pérsia mandou embaixador a Portugal pe-
dindo a el-Uei a sua amizade, e annunciando as disposi-
ções, em que estava, de ligar-se com Sua Alteza contra
os Turcos inimigos de ambos. Pelo mesmo tempo chega-
vão avisos dos Cavalleiros de IíIkxIps. prevenindo a el-Hei
Ii8
da armada, que se aprestava no Egijptu contra os Porlu-
guezes da índia.
No mesmo anno falleceo na ilha de Gamaram., dentro
do golfo Arábico, Duarte Galvão, mandado por el-Rei
D. Manoel como seu embaixador á Ahysswia, onde não
chegou a entrar.
Depois de Fernam Peres estar em Cantam, foi .lorge
Mascarenhas, de seu mandado, descobrir /í?<ma terra mui
grande ao sueste, que se chamava Lequia.
(Castanheda, Historia da Índia, liv. 4.", cap. 40.° —
Vej. adiante anno de 1544.)
Anil» dl' 15 IS
Duarte Coelho de Albuquerque (de quem já falámos
aos annos de \d\\ e 1516) assentou paz, e commercio
com o Rei de Siam, e levantou na côrle de Hodiú hum
padrão com as quinas Porluguezas.
(Barros, dec. 3.^ liv. 2.°, cap. 1.")
Passou depois ao reino de Pam, cujo Rei se fez tribu-
tário a Portugal, como d'antes o era ao Rei de Malaca.
(Ibidem.)
Fundou-se em Columbo fortaleza.
(Castanheda, liv. 4.", cap. 42.° e 43.^')
O Papa Leão X concedeo por hum seu Breve, que se
podessem ordenar de Sacerdotes os Ethiopes, e índios,
que concorrião em Lisboa, a fim de serem úteis á leli-
gião, quando voltassem a suas pátrias.
Em Dezembro deste anno de 1518 foi despachado
D. Tristão de Menezes a Maluco com cartas, e presentes
de el-Rei de Portugal para os Reis daquellas ilhas, e para
assentar com elles o trato do cravo.
^Castanheda, liv. 4.°, cap, 47.°)
119
Anuo de lol9
António Corrêa ajiistfni [)az. c amizade conn o Rei de
Peçiá.
(Breve discurso em que se conta a conquista de Pegn
pelos Portuguezes, edição de 1829, 12.) .
AIO de Agosto deste anno começou a sua famosa via-
gem o illustre Cavalleiro PorluguezFernam de Magalhães,
que por desgosto se desnaturalisou de Portugal, e foi
offerecer seus serviços a Gastei la.
A derrota, e os vários successos da armada podem
ver-se no Roteiro, ha pouco impresso na Collecção de
noticias para a historia, e geografia das nações ultrama-
rinas, da Academia Real das Sciencias de Lisboa, vol. 4.°,
num. 2, que nos dispensa de aqui repetirmos a sua des-
cripção.
Das cinco náo:í, de que constava a armada, huma só
voltou á Europa, e a Sevilha, a náo Victoria, a primeira
que fez hum giro inteiro á roda do globo da terra. O in-
signe, e intrépido Capitão foi morto em huma das Filippi-
nas, sem ter o gosto de ver o fim á sua arrojada empreza.
Duarte Resende, que então servia de Feitor de Portu-
gal em Ternate, e que teve em sua mão os papeis, e ro-
teiros da viagem, esci'eveo hum Tratado da navegarão
de Fernam de Magalhães, que oifereceo a João de Barros.
\iiiio (Ic 11)20
O Governador da índia, hindo w golfo Arábico, sondou,
e médio o porto, e ilha de Macuá, aonde el-Rei mandava
levantar fortaleza. Ajustou paz, e amizade com o liarn/i-
120
gaes, que pelo Abexi govei'nava aquella província, e en-
tregou o embaixador de Ethiopia Mattheus, que em 151 5
tinha saliido de Lisboa em companhia de Duarte Galvão,
e que só agora pôde ser restituído á Ahyssinia no porto
de Arquico.
Ahi mesmo sahío em terra D. Rodrigo de Lima, man-
dado embaixador de el-Rei á Abf/ssínia, por ter fallecído
Duarte Galvão, como notámos ao anno de 1517.
Com D. Rodrigo foi, entre outros Portuguezes, o Padre
Francisco Alvares, que havia sahido de Portugal com Gal-
vão, como Capellão da embaixada, e depois escreveo:
« Verdadeira informação das terras do Preste João das
índias r>j obra que se imprimio em Lisboa em 1540, e se
traduzio em varias linguas.
Anno de 1521
Neste anno despachou el-Rei tresnáos. Capitão Môr Se-
bastião de Sousa de Elvas, com ordem de hir á ilha de
S. Lourenço, e levantar fortaleza no porto de Matatana.
Este projecto não teve execução, por se haver desgarrado
o navio, que levava os materiaes da obra.
O Rei de Pacêm, restituído pelas armas Portuguezes
aos seus estados, que lhe andavão usurpados, fez-se tri-
butário a Portugal, e consentio que os Portuguezes le-
vantassem fortaleza no seu porto. Foi Capitão desta ex-
pedição Jorge de Albuquerque.
António Corrêa, com alguns Portuguezes, restiluio a
ilha de Baharem, no golfo Pérsico, â vassallagem do Rei
de Ormuz, matando em guerra o Rei usurpador. Por esta
expedição teve António Corrêa o appellido de Babarem,
e no seu escudo de armas huma cabeça de Mouro co-
roada, cortada em vermelho, com coroa de ouro.
(Castanheda, liv. 5.", cap. 59.°; Góes, ác.)
Fundon-se a fortaleza de ChauJ.
121
Neste mesmo anno de |y21, querendo el-Rei D. Manoel
executar hum projecto, que muito d'antes tinha meiHtado,
mandou ao Congo Gregório de Quadra com ordem de in-
vestigar o caminliode Congo pai-a Abi/ssima, atravessando
a Africa. O Quadra achou no Coítgo embaraços ordidos
pehi inveja, e malevolencia, e como voltasse a Portugal
para os remover, soube que el-HtM linha fallecido, e o
projecto desvaneceo-se.
(Góes, Clironica de el-Iiei D. Manoel, part. 4.%
cap. o4.°)
Neste anno de 1521, a 13 de Dezembro, falleceo el-Rei
D. Manoel, appellidado entre nós o Venturoso. Delle di-
zem alguns escriptores, que deixara de sua própria com-
posição : « Commentarios dos successos da índia » . Succe-
deo-lhe no throno el-Rei D. João III, seu filho.
Ao tempo do faílecimento deste feliz Monarca, erão tri-
butários á Coroa de Portugal muitos Reis, e Príncipes do
oriente, e tínhamos fundado na índia muitas fortalezas
em differentes portos.
Em Africa na Mauritânia, ás cidades, e fortalezas ga-
nhadas por seus antecessores, acrescentou Çafim, Aza-
mor, e outras, e fez tributarias algumas províncias até
além de Marrocos.
N. B. Nas primeiras ordens de el-Rei D. João III. que
chegarão á índia, mandava elle, qnc nenliinna fortaleza,
das que el-Rei seu pai mandava fazer de novo, se fizesse,
porém que as que estivessem começadas se acabassem.
(Castanheda, Historia da índia, liv, Ij.", cap. 79.")
REINADO DE EL-REI D. JOÃO III, r.21-i:M7
Anuo <!)' 11)22
Neste anno lançarão os Portuguezes os primeií-os fun-
damentos ;i cidade de S. T/nnní-, a pnuca dislaiicia da aii-
122
tiga Meliapôr, na costa de Coromandel, aonde já tinlião
algum commercio desde o anno de 1514.
António de Brito fundou a fortaleza de Ternate nas Mo-
hicas, e ajustou artigos de paz, e commercio com a Rai-
nha, que por seu íilho menor governava a ilha. Come-
çou-se a fortaleza a á4 de Junho de 1522.
(Castanheda, liv. 6.°. cap. 12.°)
N. B. Antes deste anno, e depois delle, já os Portugue-
zes tinhão descoberto, e continuarão a descobrir muitas
das illias daquelle vastissimo archipelago, postoque igno-
rámos as datas precisas de muitos dos descobrimentos.
Estes porém forão em tanto numero, que já hum antigo
escriptor Portuguez queria que se lhes desse o nome de
Ásia Insular, e que se distribuíssem em cinco províncias,
a saber: província de Maluco, de Amboino, do Moro, dos
Papitds, e das Cclehes, ou Macassar. Pelo que não parece
de todo original a lembrança dos modernos geógrafos,
que tem feito de todas aquellas terras, e mares huma
quinta parte do mundo, a que dão o nome de Oceania,
dividindo-a em Auslralasia, Polinésia, e Ásia Insular.
A este mesmo anno se deve referir o principio das 17a-
f/ens de António Tenreiro. Sahio este Poituguez de Or-
muz em companhia de Balthazar Pessoa, que de mandado
do Governador da índia D. Duarte de Menezes hia por em-
baixador á Pérsia. Esteve na Pérsia, passou á Arménia,
veio á Syrittj, ao Cairo, a Alexandria, á ilha de Chipre.
De Chipre voltou ao continente, e logo a Ormuz por terra,
e ficando ahi cinco, ou seis annos (como elle mesmo diz),
tornou a sahir para vir por terra a Portugal, com recados
a el-Rei, sobre a armada do Turco, sendo Governador da
índia Lopo Vaz de Sampaio, e Capitão de Ormuz Christo-
123
vão de Mendonça, Sahio de Ormuz nos fins de Setembro
de 1528, e chegou a Portugal no anno seguinte, com al-
guns mezes de viagem. Elle mesmo escreveo o seu Iiine-
rario, que se imprimio em Coimbra em 1560, e depois
de outras reimpressões, sahio novamente á luz em Lis-
boa, em 1829.
Anno de 1323
Fez el-Rei D. João lII doação do reino de Ormuz a
MahumfiJe Xaa, tilho mais velho de el-Rei Çafadím Aba-
nader, em 19 de Agosto deste anno de 1523, e na carta
de doação usa do dictado: <íRei de Portugal e dos AUjar-
ves d' aquém e d^além mar em Africa, Senhor de Guiné, e
da Conquista, Navegação e Commercio da Ethiopia, Ará-
bia, Pérsia, e Índia, c Senhor do reino e senhorio de Ma-
laca, e do reino e senhorio de Gôa, e do reino e senhorio
de Ormuz ^í, d-c.
(Dissertações Chronologicas e Criticas, tom. 3.",
part. 2.% pag. 203.)
Expughárão os Portuguezes a cidade de Xael.
Anno de 1521
Foi terceira vez á índia com o titulo de Vice-Rei o Al-
mirante D.Vasco da Gama, já então Conde da Vidigueira;
porém aos três mezes, e vinte dias da sua estada na ín-
dia, falleceo em Cochim, a 25 de Dezembro deste anno.
Os seus ossos vierão para Portugal, e forão sepultados no
convento cai-melitano da Vidigueira, na igreja, ao lado do
Evangelho.
lleiloi' da Silvcjjra ajustou pazes com o Rei de Adem,
que se fez tributário a Portugal. Estas pazes não durarão
muito.
124
Aiino lie IÍÍ25
António de Brito, Capitão de Ternale, arntiou iiuma
fusta cora 2o Portuguezes, piloto Gomes de Seijueira, e
a mandou c<jm fazendas ás illias Celebes, aonde se dizia
que havia muito ouro. Os Porluguezes forão ao principio
liem recebidos dos insulares ; mas sendo depois obrigados
a sahir d'ali, e navegando com grandes tormentas, foi a
fusta arrojada a lium mar largo, e desconhecido, e ha-
vendo corrido obra de trezentas léguas a leste, achou-se
em frente de huma grande, e formosa ilha, que do nome
do piloto (diz a Relaí^fio que seguimos) se ficou chamando
ilha de Gomes de Sequeira, e aonde os Portuguezes acha-
rão bom acolhimento.
Aqui (diz a mesma Relação) acharão homens mais al-
vos, que morenos, cabellos corredios, barbas estendidas,
presença agradarei, corpos enxutos, e grande candura,
e simplicidade no trnto, de maneira, que a ilha se poderia
bem chamar nilha da simplicidade», pela mansidão, e
bondade de seus habilanles. Veslião humas túnicas inte-
riores de esteira mui fina, e outras sobre-rest^s tecidas
em tranças mais grossas, sem talho algum, e cobrindo
tão somente da cintura até aos pés. Sustentavão-se de
inhames, legumes, cocos, bananas, de.
Os Portuguezes demorárão-se quatro mezes nesta bella
ilha, 6 o piloto a demarcou na sua carta; mas logo que
tiverão monção, sahírão delia (a 20 de .laneiro de 1520),
e voltarão a Ternate.
Parece-nos haver alguma analogia entre o caracter, cos-
tumes, e usos destes insulares, e os da ilha, que os Cas-
telhanos depois denominarão «/Mo da bella naçãoy>, si-
tuada a 13° austraes, e descripta na Relação de Fernando
de Queiroz, citada por BulTon. na Histoire naturelle de
thomme.
íVej. Andi'adt\ Chronica do el-fíei D. João J1J,
125
pari. \:\ cíip. 9i."; e o Oriente CniKjaiíitado, do
P. Sousa; e veja-se tambiiii Castanheda, liv. G.",
cap. 127.°)
Alguns escriptoies estrangeiros dizem, que nesie anuo,
uít ainda antes, fora descoberta pelos Portuguezes a
grande, terra, que depois se chamou Nova Ilollanda; a
qual licando por então em esquecimento, fora depois re-
conhecida pelos Hollandezes desde 1G16 em diante por
varias vezes. Pôde ver-se o que diz a este respeito o il-
lustre geogralo Malte Brun no Hv. 23.° da Historia da
Geografia, pag. 630, aonde não duvida affirmar, que os
direitos dos Portuguezes á honra deste descobrimento vem
de receber nova luz por duas antigas cartas, que se achão
no Museu Britanwico (9), d-c.
Aimo de 1o2()
Neste anno hindi > D. Jorge de Menezes para Maluco,
foi mandado tomar o caminho de fíorneo, e descobrir
esta navegação, como mais commoda, que a que se cos-
tumava fazer por Banda.
Com este desígnio foi dar através das ilhas do Moro, e
em hunia noute, que o vento foi calma, escorreo tanto
com as grandes correntes que ha por entre aquellas illias,
que foi pai^ar ao grande golfo do estreito de Magalltães,
aonde com rijo lem[)oral ibi arrojado ;i terra dos Popuás.
Aqui, lbi\'ado dos ventos de oeste, invernou, e deniorou-
se tanto tempo, que só pôde chegar a Maluco em Maio
de 'lo27.
(Andrade, C/ironica de D. João II í, pnit. 2.'',
cap. 19.°~ Vej. Barros, dec. i.", liv. 1 .". cap. 16.")
(9) Yej. a Memoria suhre a prioviúndc dos descohi-imciilos Por-
tuguezes lui resta de Africa orcidental, pelo Sr. Viscmide de Saiita-
mii, I8il, pag. 80.
126
Neste mesmo anno entrou effectivamente em Borneo
Vasco Lourenço, achando já nesta ilha outro Capitão Por-
tuguez.
No golfo x\rabico se fizerão tributarias a Portugal as
ilhas de Macuá, e de Dalaca.
Sahio da Ethiopia D. Rodrigo de Lima (veja-se anno
de 1520), e o Imperador David enviou a el-Rei por seu
emhmxu\ov Zagaia- Ah, sacerdote, e bispo (que os nossos
escriptores commummente chamão Zagazabo), com cartas
para el-Rei D, João III, e para o Papa Clemente VII, da-
tadas do anno de 1524. Com este embaixador voltou ao
reino o Padre Francisco Alvares; de quem fizemos menção
ao referido anno de 1520.
'(Neste atino despachou el-hei a primeira armada, que
foi em seu tempo ao Brazil; Capitão Môr Christovão Ja-
cqties. Foy correr aquella costa, alimpal-a de corsários,
que com teima a continuamo, pollo proveito que Unhão
do pão Brazil. E erão os mais dos portos de França do
mar oceano. »
(Annays de D. João III, pag. 178.)
Anno de io27
Neste anno Diogo Garcia, Portuguez, que andava no
serviço de (>astella, navegando para o sul, aportou hum
pouco afastado da boca do Uruguaij; e achando ali os na-
vios de Sebastião Caboto, e sabendo que este linha subido
pelo Paraguaij, subio também com as suas lanchas até
muito acima da coníluencia do Parannd, aonde o encon-
trou acabando de construir o Fortim de Santa Anna, e
ahi derão ambos ao Paraguay o nome de Rio da Prata,
i27
por verem alguns pedaços deste metal nas mãos dos in-
dígenas.
(Gaetb, Heirera, ác.)
Henrique Gomes Leme eulrou na ilha da Smulaj cujo
Rei offereceo lugar para huma fortaleza, e dar de tributo
350 quintaes de pimenta em cada anno. Este ajuste po-
rém não teve effeito.
O Rei de Bintão restituído pelas armas Portuguezas
aos seus estados, fez-se tributário a Portugal.
Nuno da Cunha fez tributário o Rei de Mombaça.
(Barros, dec. 4.^ liv. 3.", cap. o.")
Belchior de Sousa Tavares foi em auxiho do Rei de Bá-
cora contra o de Gizaira, e foi o primeiro Portuguez,
que entrou pelos rios Tigre, e Eufrates.
Aono de 1529
Neste anno, a ^2 de Abril, foi celebrada a capitulação
de Saragoça entre Portugal e Hespanha, pela qual o Im-
perador Carlos V, Rei de Castella, vendeo a el-Rei de Por-
tugal o domínio, propriedade, posse, ou quasi posse das
Molucas por 350:000 ducados de ouro, com condição,
(lue pagando el-Reí de Castella integralmente esta quan-
tia, ficarião as partes contratantes cada huma com o di-
reito e acção, que ao tempo do contrato linha, ou pre-
tendia ter naquellas ilhas. Vem este notável conti'ato por
integra na Collecção das Viagens e Descobrimentos dos lles-
panlioes, por D. M. F. de Navarrele, tom. 4.°, pag. 389.
Anno de 15)30
A 20 de Novembro deste anno são datadas as carias
regias, pelas quaes el-Rei mandou, (|ue Martim Alfonso
1-28
de Sousa sahisse com huma armada a investigar as costas,
e terras do Biazil, auctorisando-o para repartir terrenos
áquelles que nellas quizessem habitar.
(Vej. o Diário desta navegação, ha pouco publicado
pelo Sr. Francisco Adolfo de Varnhagen com mui
eruditas, e interessantes notas.)
Aqui se deve fixar (a nosso parecer) a época da colo-
nisação do Brazil, que logo depois se continuou com re-
gularidade.
iMartim Aílbnso reconheceo nesta viagem o liio de Ja-
neiro, chegou ao liio da Prata, descobrio a .'30" austraes
o rio que do seu nome se ficou chamando liio de Marlim
Affonso; e a 22 de Janeiro de 1532, dia de S.Vicente,
surgio no porto de S. Vicente, aonde lançou os funda-
mentos á primeira colónia Portugueza do Brazil.
Aiino de 1533
Nos princípios deste anno foi Nuno da (^unha com huma
armada de cousa de oitenta velas sobre Baçaim, e alcan-
çando gloriosa victoi'ia, tomou, e destruio a fortaleza que
ali tinha levantado o Bei de Cambaya.
(Castanheda, liv. 8.°, cap. o9.<' e 62.'')
Aiinos (Ic 153 i c lo3a
O Bei de Cambaya, implorando o auxilio das armas Por-
tuguezas contra os Magores, cedeo a Portugal Baraim
com todas as suas terras, e portos marítimos.
Permittio também que os Portuguezes fundassem em
í)iii a fortaleza, que tanto desejavão, e que dejjois lhes
foi tão pertinazmente disputada. Fundou-a o Governador
da índia Nuno da Cunha. E como lodos sabião quanto el-
Bei de Portugal era empenhado em ter ali fortaleza, hum
Diogo Botelho, querendo adian(ar-se a lhe trazer tão grata
1129
noticia, veio, quasi furtivamenlo, da índia a Lisboa em
huma fusta de \S pés de comprido, 6 de largo, e 4 de
alto, trazendo a el-Rei a planta de Diu, e os artigos da
capitulação: viagem que maravillioii a todos, c que cer-
tamente merece esta memoria.
(Annaes da Marinha Portugueza, ao anno de '1535.)
Em 1534 navegou para a Indta Garcia de Horta, Por-
tuguez, que lá escreveo, e imprimio em Gôa em 1563 o
CoUoquio sobre as drogas e simplices do oriente, obra que
deve ser conhecida dos naturalistas.
No mesmo anno de 1534 chegou á índia Martim Aflonso
de Sousa com o cargo de Capitão Mór do mar da índia,
levando armada em que também hia Diogo Lopes de
Sousa seu irmão.
(Barros, dec. 4.'\ liv. 4.', cap. 21.°)
Mandou arrazar, a fortaleza de Damam, c correo a costa
até Diu, fazendo grande guerra a Camhaya.
Addo (Ic lo36
Francisco de Castro, mandado pelo illustre Capitão das
Mohicas António Galvão a Macassar, foi levado pelos
ventos 100 léguas ao norte das Molacas, e aportou á illia
Santigano, donde passou ás outras ilhas Soligano, Min-
danáo, Buticano, Vimilarano, e Camizino.
Desta viagem resultou fazerem-se muitos Christãos por
aquellas ilhas: e como concorressem a Térmite em grande
numero, pedindo o baptismo, fundou o insigne, e vir-
tuoso Galvão ahi hum seminário, cm que se recolhessem,
e instruíssem os meninos, que daquellas diversas gentes
viessem a doutrinar-se na religião christãa. Fundação me-
TOMO V '.1
i3a
moravel f que foi a primeira de nossas conquistas, e hon-
rará em todo o tempo a memoria do fundador.
Anno de 1537
Começou o celebre Fernam Mendes Pinto as suas ex-
tensas peregrinações, em que gastou desde a saiiida até
á volta de Portugal vinte e hum annos, recolhendo-se ao
reino em 1559. Imprimirão-se estas Peregrinações em
Lisboa em 16 1 4, e depois de varias reimpressões, sahírão
novamente á luz em Lisboa, 1829, 4 vol. 12.
Fernam Mendes, sendo mandado a Çamatra, pelos an-
nos de 1540, ou 1541, e voltando a Malaca, informou o
Capitão Portuguez de tudo que lhe succedêra na viagem,
tratando miudamente do descobrimento dos rios, portos,
e angras, que novamente achara na ilha Çamatra, assim
da parte do mar mediterrâneo, como do oceano, e do
trato da gente que habitava aquellas terras. E arrumou
por suas alturas toda aquella costa, com seus portos, e
rios, ác.
(Vej. Peregrinações, cap. 20.°)
Anno de 1538
Por este tempo vierão a Lisboa quatro principaes Ma-
labares, ou Paravas da costa da Pescaria com o fim de
aprenderem a lingua Portugueza, e poderem ser melhor
instruídos na doutrina da religião. El-rei os mandou re-
colher na Gaza de Santo Eloy, com os Ethiopes nobres
do Congo, que nella também estudavão. Para elles com-
pòz João de Barros a sua Grammatica da Lingua Portu-
gueza, que se imprimio em 1539.
No mesmo anno de 1538 foi o primeiro cerco da for-
taleza de Diu, defendida heroicamente por António da Sil-
131
veira contra as forças reunidas dos Guzarates, e Turcos.
Quando o illustre Capitão chegou a Lisboa recebeu o pa-
rabém de alguns Soberanos da Europa por seus embai-
xadores, e refere a historia, que el-Rei de França Fran-
cisco I mandou tirar o retrato do heroe, e o fez collocar
era huma sala do seu palácio entre outros de famosos
varões, que tinhão merecido a mesma honra. Lopo de
Sousa Coutinho escreveo a historia deste cerco, que se
imprimio em Coimbra, em 1556, e he obra rara.
Anno de 4540
A este anno referem Diogo de Couto, e Lucena o des-
cobrimento das ilhas Celebes pelos Portuguezes: o que
se deve entender de hum mais largo conhecimento, ou
trato daquellas ilhas, porque os Portuguezes já as tinhão
achado, e tocado em 1525, como dissemos a esse anno.
O Rei de Cota em Ceilão, não tendo filho que lhe suc-
cedesse, mandou embaixadores a el-Rei D. João III ro-
gando-lhe houvesse por bem, que a successão passasse
ao neto. Os embaixadores trazião a estatua deste futuro
successor, de ouro; e el-Rei o coroou solemnemente em
Lisboa, impondo huma preciosa coroa sobre a cabeça da
estatua.
Fundou Fr. Vicente de Lagos, frade menor de S. Fran-
cisco, o collegio de Santiago de Cranganor, para nelle
serem educados oitenta mancebos, filhos de gentios con-
vertidos. Este collegio foi depois dotado por el-Rei de
Portugal.
Anno de 154i
Foi neste anno a expedição, em que o Covernador da
índia D. Estevão da Gama navegou com huma grande ar-
132
mada todo o golfo Arábico até Sues, com o intento de des-
truir a armada dos Turcos, que ali estava ancorada.
Em frente do monte Sinai sahio em terra, e armou al-
guns cavalleiros, entre elles D. Álvaro de Castro, filho de
D. João de Castro, e D. Luiz de Athaide, que depois foi
Vice-Rei da índia. A isto alludia o letreiro, que se escre-
veo sobre a sepultura de D. Estevão da Gama :
o QUE AKMOU CAVALLEIROS
NO MONTE DE SINAI
VEIO ACABAR AQUI.
O grande D. João de Castro, que hia na expedição por
Capitão de hum dos navios da armada, sondou, exami-
nou, e arrumou os portos, enseadas, rios, costas, e lu-
gares daquelie mar, e escreveo o Roteiro do mar verme-
llio, com huma exacção, miudeza, e verdade, que não tem
sido excedida dos modernos. Este Roteiro imprimio-se em
Paris no anno de 1833, 8."
No mesmo anno foi a outra expedição de D. Christovão
da Gama com 500 Portuguezes em auxilio do Abexi, os
quaes D. Estevão da Gama lançou em terra no porto de
Maçuá. Miguel de Castanhoso, que hia nesta expedição,
escreveo os successos delia, dos quaes também tratou
D. João Bermudes, Patriarcha da Ethiopia, na sua Rela-
ção oílerecida a el-Rei de Portugal D. Sebastião.
Fundou-se neste mesmo anno o Seminário de Santa Fé
de Gôa, para nelle serem educados, e instruídos os neó-
fitos gentios, e os meninos Christãos, filhos de gentios
convertidos dos vários reinos daquelie oriente. Nos pa-
peis primitivos da fundação se nomeavão os meninos dos
Canarins, Decanis do norte. Malabares, Chingalas, Ben-
galas, Pegús, Malaios, Jáos, Chinas, e Ábexis, por onde
133
se vê quantas, e quão vastas regiões, e povos tinhão já
então trato com os Portuguezes.
Anno de i542
António da Motta, Francisco Zeimoto, e António Peixo-
to, navegando para a China, forão arrojados pelo tempo-
ral ás costas do Japão, onde tomarão porto. Pelo mesmo
tempo aportarão também a Japão Fernam Mendes Pinto,
Christovão Borralho, e Diogo Zeimoto.
Neste mesmo anno entrou na índia o Santo Xavier,
appellidado o novo Apostolo do oriente.
El-Uei D. João III mandava ao descobrimento da ilha
do Ouro, que se dizia estar no oceano oriental a 5° lati-
tude austraes, e ;1 150 léguas de Çamatrq. Esta expedi-
ção não chegou a eífeituar-se.
Por este tempo tinhão já os Portuguezes hum conside-
rável estabelecimento, a que davão o nome de cidade,
em Liampó (ou Limpo), ou antes Ním-pó), na costa orien-
tal da China a 30" septemtrionaes. I)'aqui passarão a fazer
outro estabelecimento em Chinchéo pelos annos 1549, e
ultimamente vierão a fundar o de Macáo, na ponta do sul
da ilha de Gaoxam (ou Yanxam) em 1557, de que adiante
se falará (10).
(10) Vej. as Carias escriplaa da Índia r da Cliiiia, por José Igna-
cio de Aiidrado. Lisboa, 1843, lom. 1.". caria xxx c seguintes.
134
Anno de 1544
António de Paiva entrou na ilha de Macassá, e passou
á de Sian (ou Siang), aonde se fizerão muitas conversões
ao Gtiristianismo.
Fernam Mendes Pinto, e outros Portuguezes aportarão
ás ilhas Léquias (de Lieu-Kieu), ao nordeste da ilha For-
mosa, e ao oriente da costa da China. Delias fala o mesmo
Fernam Mendes em suas Percfjrinações, cap. 138.°e 143.°
O Rei de Ternate Tabarija (que depois do baptismo se
chamou D. Manoel), fallecendo em Malaca, deixou os
seus estados a el-Rei de Portugal.
Martim Affonso de Sousa fez tributários a Portugal os
Reis de Jafanapatam, e de Travancor.
Anuo de 154o
Passando neste anno o illustiv D. João de Castro a go-
vernar a índia, escreveo de Moçambique a el-Rei, e lhe
annunciava o recente descobrimento da bahia, e rios, que
do seu descobridor se íicárão chamando de Lourenço Mar-
ques. O principal rio linha a sua entrada no mar, segundo
as cartas Portuguezas, a 25'- e 15' latitude sul. As cartas
modernas demarcão a bahia a 26" na costa oriental de
Africa.
El-Rei, respondendo a D. João de Castro no anno se-
guinte de 1546, recommendava a continuação do mesmo
descobrimento.
(Collecção de Cartas urigitiaes.)
135
Addo de 1546
A 13 e 15 de Março deste anno são datadas duas cartas
de el-Rei D. João III, huma para o Rei dos Ahexis, e ou-
tra para os Portuguezes, que ainda lá estavão, e tinhão
íicado da expedição de D. Cliristovão da Gama. Nellas re-
commendava el-Rei com muito encarecimento, que por
pessoas para isso idóneas se mandasse indagar, e desco-
brir hum caminho, que da Abyssinia viesse ter á costa
de Melinde, ou a alguma outra parte daquella banda:
e porque pôde ser (diz el-Rei) que a terra do Abexi venha
tanto para oeste^ eado Manicongo vá tanto para o leste,
que não seja grande distancia de huma torra a outra:
queria que também se tentasse este caminho do Abexi
para Manicongo, ou para qualquer outro rio, do cabo da
Boa Esperança para cá, de.
(Carta original, na minha collecção.)
Neste anno de 1546 foi o segundo cerco de Diu, de-
fendido heroicamente por D. João Mascarenhas, e ultima-
mente rematado com huma assignaladavictoria por D. João
de Castro.
Este grande homem falleceo em Gôa em 1548, tendo
recebido pouco antes a mercê do titulo de Vice-Rei da
índia para com elle continuar a governal-a. Delle diz
hum escriptor, que era no mar soldado, piloto, e geó-
grafo, como mostrão seus escriptos. Nós somente acres-
centaremos, que foi no mar, c na terra hum exemplar
das grandes virtudes, e eminentes qualidades, que con-
stituem o verdadeiro heroísmo, e fazem o homem digno
da immortalidade.
(Vej. as Historias do cerco, (3 a Vida de Castro.)
Anno de VòV)
Thomé de Sousa lançou os fundamentos ;i cidade de
S. Salvador da Bahia, na Terra de Santa Cruz (Brazil),
136
a qual cidade mandava el-Rei fundar para capital de todo
aquelle estado. Ordenou o governo da justiça, e fazenda,
fundou igreja, fortificou o lugar, d-c.
Neste anno navegou o Santo Xavier para Japão, aonde
já as náos Porluguezas hião coramerciar. Eritrou em Can-
fjoxima, Exiando, Firando, Amanguchi, Meaco, e Figcm,
demorando-se nesta sua apostólica expedição dous annos,
e quatro mezes. Em 15o'2 falleceo na ilha de Sanchoan,
ás portas da China, aonde se dirigia.
Anuo de 155-i
Tomarão os Portuguezes a cidade de Geilôlo, capital
da ilha do mesmo nome no archipelago das Molucas.
O Rei ficou continuando o governo com o titulo de San-
gage (Governador), sujeito, e tributário a Portugal.
(Historia da índia no tempo em que a governou o
Viso-Rei D. Luiz de Athaide, por António Pinto
Pereira, liv. i.*", cap. IM.°)
Adiios de K>o2 a looO
Em 1552 no galeão, cm que naufragou Sepúlveda, vi-
nhão a el-Rei de Portugal cartas de Nautaquim, Príncipe
de Tanixumaa, ilha do Japão, pedindo o auxilio de 500
Portuguezes para conquistar a ilha Lequia (de Lieu-Kieu),
e offerecendo em reconhecimento o tributo annual de
5:000 quintaes de cobre, e 1:000 de latão.
Em 1554 teve o Vice-Rei da Índia cartas dos Reis Ja-
ponezes de Firando, Amanguchi, e Biingo.
137
Em 1536 fundarão os Portuguezes em Funay, capital
do Dungo no Japão, hum hospital para os leprosos, que
aquella gente costumava abandonar como feridos do Ceo,
e para meninos, que muitos pais engeitavão, e talvez ma-
tavão por pobreza, ou por outros semelhantes motivos.
O Rei de Bimgo commovido desta humanidade dos Por-
tuguezes, favoreceo o estabelecimento, e prohibio que
d'ahi em diante os pais matassem, ou expozessem os
filhos. O estabelecimento teve consideráveis progressos,
e el-Rei D. Sebastião mandava concorrer para as suas des-
pezas.
Neste mesmo anno de 1556 pregava a fé Christãa na
China o dominicano Fr. Gaspar da Cruz, que tinha pas-
sado á índia em 1548, e que depois escreveo: « Tratado
das cousas da China com suas particularidades, e assi
do reino de Ormuz», d-c, que se imprimio em Évora
em 4570, e ha pouco se reimprirnio em Lisboa em 1829.
Aiino de lo57
Por este tempo alcançarão os Portuguezes, que os Man-
darins de Cantão lhe concedessem o porto da peninsula
de Macáo, para nelle viverem, e commerciarem. (Vej. o
anno de 1542). Ahi fundarão huma colónia independente,
que por tempo cresceo, e chegou a constar de algumas
setecentas famílias Portuguezas, quasi todas ricas com o
trato da China, Japão, Manilha, e outros reinos, e terras
orientaes. Pelos annos de 1022, começando a ser inquie-
tados pelas esquadras hoHandezas, pedirão soccorro, e
defeza ao Vice-Rei da Índia, e então se sujeitarão ás leis
de Portugal, tiverão Governador Porluguez, e a colónia
teve o nome de cidade, que se chamou do Nome de Deos
de Macáo.
138
Falleceo el-Rei I). João III a H de Junho de 1557, e
succedeo-lhe no throno seu neto el-Rei D. Sebastião ainda
muito menino.
REINADO DE EL-REI D. SEBASTIÃO, 18S7-1S78
Addos de 4559 e 1560
O Vice-Rei D. Constantino de Bragança tomou em 1559
a cidade de Damam, e em 1 560 a ilha de Manar, principal
pescaria das pérolas de Ceilão, aonde levantou fortaleza.
Em 1560 navegando a não S. Paulo (que depois veio
a naufragar em Çamatra) pelos mares do sul, em que
chegou aos 42° austraes, avistou em 37° e 45' huma for-
mosa ilha, que os mareantes desenharão, encantados da
sua bella apparencia. O [»iloto lhe quiz dar o seu nome,
chamando-lhe ilha de Amónio Dias; mas hoje a achamos
denotada nas cartas com o nome de ilha de S. Paulo.
E diz a Relação do naufrágio, que estava norte-sul com
a dos Romeiros, e as Sete Irmãos.
No mesmo anno foi a missão do Padre Gonçalo da Sil-
veira á Cafraría. Entrou por Inhamhane até á corte de
Otongue: veio aos rios de Cuama, entrou pelo Quilimane
até Giloa, á boca do Zambeze, a Inhamoi, á corte de Sim-
baoe, ócc. No anno seguinte de 1561 foi morto pelos bár-
baros.
Duarte de Albuquerque Coelho donatário da capitania
de Pernambuco no Brazil, com .Torge de Albuquerque
Coelho seu irmão, andando na conquista, e defeza das
terras da capitania, descobrirão o rio de S. Francisco.
Aiinos de 1562 a 1566
Em 156á tomando o Cardeal Infante D. Henrique a tu-
toria de el-Rei D. Sebastião, ainda menor, lhe apresentou
139
Lourenço Pires de Távora huns apontamentos sobre vá-
rios objectos do governo. Em hum delles recommendava
o descobrimento de Tomhuctu, no interior de Africa, e a
escolha de pessoas aptas para esta empreza.
Entrarão os Portuguezes nas ilhas de Goto, as mais occi-
dentaes do Japão, em 1 566 : e el-Rei de Portugal mandou
hum rico presente a D. Bartholomeu, Rei de Omurá no
mesmo Japão.
Achámos escripto, que a celebre mina de mercúrio de
Guanca-Velica , a 30 léguas ao norte de Guamanga no
Peni, fora descoberta pelo Portuguez Henrique Garcez,
ao qual se attribue também o descobrimento de outra
mina do mesmo metal em Paraz em 1564.
Anno de lo66
Quando Gonçalo Pereira hia á conquista de Âmboino
em 1566, sabendo da estada dos Castelhanos era Cebii,
e determinando hir em busca delles, como os seus pilotos
não tinhão muita noticia daquellas partes, não passou da
ponta de huma ilha, que chamão Terra dos Negros, 25
léguas atraz de Cebu, aonde ficou bordejando em 9" da
banda do norte, mandando d' ali navios a descobrir por
todas as partes, de.
(Historia da índia no tempo em que a governou o
Viso-fíei D. Luiz de Athaide, por António Pinto
Pereira, liv. í.°, cap. 29.*^)
AuDO de 1567
Mem de Sá, Governador Geral do Brazil, lançou os fun-
damentos á cidade do Rio de Janeiro, da qual foi primeiro
140
Capitão Salvador Correia de Sá. Deo-lhe o nome de cidade
de S. Sebasiião em memoria de el-Rei.
Addo de 1569
Tendo el-Rei D. Sebastião dividido o império Lusitano-
oriental em três governos, o 1.° desde o cabo das Cor-
rentes até o de Giiardafui; o 2.° desde Guardafui até
Ceilão; e o 3.*^ desde Ceilão até á China: deo o governo
da primeira divisão a Francisco Barreto, que neste anno
partio para a costa oriental de Africa. D'ahi capitaneou a
expedição ao Monomolapa, e minas de Çofala: ajustou
pazes com os Reis de Chicanga, e Quiteve: passou a Sene^
capital das possessões Portuguezas na Cafraria: e man-
dando Embaixadores a Simhaoe, obteve do Imperador as
minas de prata de Chicova, de Rutroque, e de Mocarás.
Foi a Chicova, e vindo a Tete, estabelecimento Portuguez,
ahi falleceo em 1573. O seu successur Vasco Fernandes
Homem ainda continuou a commandar a expedição, e pe-
netrou até ás minas de Chicanga, de Manhico, Ac.
No Malabar rendérão-se ás armas Portuguezas Ouôr,
6 Barçalor: e Gonçalo Pereira Marramaque fundou forta-
leza emAmboino, e descobrio naquellc mar algumas ilhas,
ainda não conbecidas dos Portuguezes.
(Historia da índia no tempo em que a governo/t o
Viso-Rei D. Luiz de Athaide, por António Pinto
Pereira, liv. {.\ cap. 30.'')
Parece-nos digno de louvada memoria o honrado des-
interesse do insigne Capitão D. Luiz de Athaide, o qual
sahindo da índia para o reino a 6 de Janeiro de 1572,
quiz trazer quatro vazilhas com agoa dos rios Indo, Gan-
ges, Tigre, e Eufrates, as quaes depositou, e se conser-
varão por muito tempo no seu castello de Peniche, como
141
testemunho das únicas riquezas, que trouxera daquelies
estados.
António Pinto Pereira escreveo a Historia da índia no
tempo em que a governou D. Luiz de Alhaide, offere-
cida a el-Rei D. Sebastião, e impressa em Coimbra em
1610, foi.
Addo de 1570
No mez de Setembro começou a desenvolver-se a grande
liga dos Reis da índia contra os Portuguezes, favorecida
pelo Turco, e Persa. Notável defeza de Chaul, e de Gôa,
e outras fortalezas do Malabar' contra o Nizamaluco,
Hidalkan, e outros Reis e Príncipes coUigados.
Addos de 1574 e 1575
Ilavendo-se já. em 1559 e 1560 feito as primeiras ten-
tativas para a fundação do estabelecimento Portuguez em
Anf/ola, mandou el-Rei D. Sebastião renoval-as neste anno
de 1574. Foi o Capitão da empreza, e fundador, conquis-
tador, e Governador daquelle nascente reino Paulo Dias
de Novaes, neto, e digno descendente de Rartholomeu
Dias, descobridor do cabo da Boa Esperança. Sahio de
Lisboa em 1574, e chegou a Africa em 1575. Construio
logo o forte de S. Miguel, fundou a primeira povoação,
e igreja, ordenou as cousas do governo civil, e intitula-
va-se a Capitão, e Governador do novo reino de Sebaste,
na conquista da Ethiopiaf>, dando-lhe o nome de Sebaste
em memoria de el-Rei de Portugal. Este nome foi logo
esquecido, como era de presumir, e o reino tomou o
nome de Angola, que era o de hum Rei do paiz, a cujas
instancias se linha emprendido ao principio aquelle esta-
belecimento.
Pelos annos adiante, e por differentes circumstancias
142
se forão os Portuguezes alargando pela costa, e pelo ser-
tão; e em 1784 erão pertenças do reino de Angola:
O presidio de Massangano, fundado em 1583
O presidio de Muxima ?
O presidio de Cambambe 1603
O presidio de Ambaca 1614
O presidio de Benguella 1617
O presidio das Pedras de Pungo Andondo 1671
O presidio de Caconda 1682
O presidio de Novo Redondo ?
O presidio de Encoge 1 759
Annos de 1578 e 1579
Em 1578 concorrião á pescaria dos mares da Terra
Nora, pelo menos, cincoenta navios Portuguezes, que im-
portavão cousa de 3:000 toneladas. Os navios Hespanhoes
que ahi concorrião ao mesmo tempo erão cem ; os Fran-
cezes cento e cincoenta ; os Inglezes trinta I
Em 1579 se entregou ao Capitão Portuguez de Amboino
a ilha do Bouro Grande, no archipelago das Molucas.
PEEIODO 4."
DESDE O ANNO DE 1578 ATÉ AO PRESENTE
Aedos de iim a 4399
Em 1 580 o Rei de Ceilão Preá Pandar fez doação de
seus estados a el-Rei de Portugal D. Henrique por não
ter filhos que lhe succedessem.
Era 1582 se submetteo aos Portuguezes, acceitando a
rehgião Christãa, a ilha de Labtca, situada no archipelago
das Malucas a pouca distancia de Ternate.
Em 1583 o Rei de Chalé, se fez tributário, e os Portu-
guezes levantarão ali fortaleza.
Em 1587 ou 1588 levantarão os Portuguezes fortaleza
em Mascate. D. Paulo de Lima expugnou a cidade de Jor,
e entrou triunfante em Malaca.
144
Em 1590 foi tomada pelos Portuguezes Cândia, capital
do reino do mesmo nome em Ceilão.
Em 159o levantarão os Portuguezes fortaleza em Soloi'
(vej. anno de 1509).
Em 1597, por fallecimento do Rei de Columbo, sem
successão, foi acclamado Rei o de Portugal, a quem elle
doara os seus estados.
Em 1599, D. Fr. Aleixo de Menezes, Arcebispo de Gôa,
visitou a Christandade das Serras do Malabar, e celebrou
Synodo. Fr. António de Gouvêa, augustiniano, escreveo
1 Jornada do Arcebispo de Gôa-», ác. Coimbra, 1606.
Anuo de 1600
O celebre Portuguez Salvador Ribeiro de Sousa fundou
neste anno huma caza forte no Pegíi, na foz de Serião, e
depois de vários casos, e extraordinárias façanhas, chegou
a ser acclamado Rei de Pegú em 1603. Acha-se a Relação
deste notável facto impressa com o Itinerário de Tenreiro
em algumas edições de Fernam Mendes Pinto, e determi-
nadamente na ultima de 1829.
Anno de 1602
Bento de Góes, Jesuita Portuguez, que tinha bom co-
nhecimento da língua Persiana, e de outras orientaes, foi
mandado ao descobrimento do Gran-Cataio. Viajou mais
de três annos pelos sertões da Ásia, caminhando sempre
pelo norte do império do Mogol, desde o paiz dos Usbegs
para o oriente até á China, tirando em resultado que o
i45
Gran-Cataio era o próprio império da China. Na China
falleceo em 1607.
No mesmo anno de IG02 passou da índia á Pérsia o
augustiniano Fr. António de Gouvêa, mandado pelo Go-
vernador da índia como Embaixador ao Schach-Abbas.
Este Príncipe o enviou em companliia de outro Embai-
xador seu a Roma, e a Hespanba. Voltou á Pérsia, e d'ahi
á Europa, atravessando os desertos da Arábia. Chegado
a Alepo, e embarcando para Marselha, foi tomado por
corsários Argelinos, e esteve captivo em Argel, á-c.
Anuo de 1606
O Governador de Angola D. Manoel Pereira Forjaz, in-
tentando a communicação com a contra-costa, nomeou
para o descobrimento deste caminho a Balthazar Rebello
(ou Pereira) de Aragão, homem capacíssimo para a em-
preza, assim pelo valor, como pelos conhecimentos que
tinha do sertão. Começou, e tinha já penetrado no inte-
rior do paiz, quando se vio obrigado a retroceder, para
acudir á fortaleza de Cambambe, sitiada por hum Sova
visinho, e pelos negros do Mosseque.
Annos de 1606 e 1607
Nicoláo d'Orta, natural de Santo António do Tojal, sa-
hio de Gôa em 1 OOG com destino de vir a Portugal por
terra. Nos princípios de Agosto estava na fortaleza de
Comorom: d'ahi \nivl\o para Lara, Xirds, liomus, Ba-
gadet, Ana. Taibe, e Alepo, aonde entrou a IO de Janeiro
de 1G07; d'ahi veio por Alexaridrela, e por lim chegou
a Marselha, e logo a Madrid, d'onde el-Rei D. Filíppe o
mandou de novo ;'i índia. Ksci'eveo o seu Itinerário, que
deo a Pedro de Mendonça Furtado, e do (|ual existe huma
TOMO V 10
146
cópia incompleta (de que fala Barbosa Machado) na Bi-
bliotheca Publica de Lisboa (B-4-8, numeração provi-
sória). Parece que segui o o mesmo caminho que trouxe
Fr. Gaspar de S. Bernardino, e he provável que o mesmo
trouxesse D. Álvaro da Costa em 1611 por ser o das ca-
ravanas, que tinhão roteiro determinado.
Anno de 1607
O Imperador Monomotapa, tendo sido auxiliado pelos
Portuguezes, fez doação a el-Rei de Portugal das minas
de ouro, prata, cobre, ác, que houvesse nos seus es-
tados. Esta doação foi acceitada, em nome de el-Rei pelo
Capitão de Tete Diogo Simões Madeira.
D. Estevão de Athaide foi no anno seguinte de 1608 ao
exame, e posse destas minas, e especialmente das de
ouro, e prata de Chicova. E escreveo a Relação do seu
trabalho, e exame.
Por occasião da exploração destas minas se fundarão
em 1614 as fortalezas de Massapa, e Chicova.
Addo de 1609
Conquistarão os Portuguezes a ilha de Sundiva, a pouca
distancia da terra firme de Bengala, e dependente do reino
de Arracan. Sebastião Gonsalves Tibao a governou com
poder independente; tomou ao Rei de Bacalá as ilhas de
Xavapiir, e Patelavanga, e a outros Príncipes varias terras
naquellas paragens.
Addos de 1610 a 1612
Em 1610 publicou Pedro Teixeira as suas « Relaciones
dei origen, descendência, y succession de los Reis de la
Pérsia^, y de Hormuz, e de ttn viage hecho des de la índia
147
Oriental hasta líaiia por terra». Ambeies, 1610. 8."
Este celebre Portuguez passou de Lisboa á hidia, veio a
Ormuz, cori'eo a Pérsia, esteve nas Filipinas, e ]^ova
Hespanha, e aportou a S. Lucar em liíOi. Voltou depois
á Índia, e de Gôa veio a Baçorá, Bagdad, Alepo, A-c.
D'ahi passou a Veneza, e de Veneza a Anvers, aonde re-
sidio, e falleceo.
Em 1612 apossarão-se os Poi'tuguezes de Bender-abasi
(Gomroun), entre Ormuz e Kismish, celebre porto no
golfo Pérsico, aonde levantarão dous fortes para defeza.
(Godinho escreve : « Bandel Abassi, e Comorom » .)
Amos de 1613 a 4620
Em 1613, e nos annos seguintes mandou o Vice-Rei da
índia algumas expedições á ilha de S. Lourenço com o
fim de (ixaminarem os seus portos, e se informarem da
gente, costumes, e producções da terra, e de indagarem
se por ali existião olguns dos Portuguezes, que por vezes
havião naufragado naquellas costas.
Em huma destas expedições tocou hum dos Pilotos a
bella ilha do Cirnc, descoberta em outro tempo pelos Por-
tuguezes. Esta ilha he a que os Hollandezes depois deno-
minarão ilha Mauricia, e os Francezes ilha de França.
Desta jornada de exploração, ordenada pelo Vice-Rei
D. Jeronymo de Azevedo, nos ficou huma Relação ma-
nuscripta por Paulo Rodrigues da Costa.
Em 1614 e 1615 Jeronymo de Albuquerque Coelho ex-
peilio do Maranhão os Francezes, que ali eslavão havia
perlo de três annos com grandes forças: e fundou a nova
colónia, que deo principio áquellc Estado. Teve grande
parte nesta honi-ada facção o Sargerito-Mór do Estado do
•148
Brazil Diogo de Campos Moreno, que escreveo a relação
do successo com o titulo « Jornada do Maranhão por or-
dem de Sua Magestade feita o anno de 1614y>.
Em 1615 e 1616 se começou a povoação do Pará,
sendo fundador da cidade, e seu primeiro Capitão-Mór
Francisco Caldeira de Castello Branco.
O Rei de Siam mandou fazer proposições de alliança
ao Vice-Rei da índia, oíTerecendo lugar para a fundação
de huma fortaleza no porto de Manavam.
O porto, e fortaleza de Soar, na costa da Arábia foi
expugnado, e tomado pelos Portuguezes.
Pelos annos de 1619 e 1620 avassallárão os Portugue-
zes o Rei de Dongo, no sertão de Angola, ficando elle tri-
butário a Portuííal com o reconhecimento de 100 escravos
cada anno.
\niift de 1622
Em 16á2 ciiegou a Gôa o Padre Jeronymo Lobo, Jesuita
Portuguez, mandado ás missões da índia. Veio a Moçam-
bique em 162i, e entrando no paiz dos Galas, passou á
Abyssinia, aonde viveo muitos annos. Depois de largos,
e perigosos successos voltou a Portugal, aonde falleceo
em 1658. Escreveo o ^pm Itinerário geralmente estimado
dos eruditos.
Aimo de mi
Estabelecimento do governo do Estado do Maranhão,
e Gran-Pard como separado do governo geral do Estado
149
(lo Brazil. He seu primeiro Governador, e Capitão General
Francisco Coelho de Carvalho, que toma posse, e realisa
a separação em Setembro de 1G26.
Addo de i624
Por estes annos sahio do Dely o Padre António de An-
drade, Jesuíta Portuguez, com o intento de descobrir a
Christandade do Tibet. Conseguio com efíeito, depois de
huma longa, e trabalhosa peregrinação, chegar á corte de
Caparanga, capital do reino. Recolhendo-se a Gôa, fez
ainda segunda viagem, levando em sua companhia o Pa-
dre Gonçalo de Sousa : e quiz fazer terceira, que os seus
superiores lhe não permittírão. De ambas ha Relações im-
pressas, que se traduzirão em varias linguas. O epitáfio
da sepultura do Padre Andrade o denomina aprimus
missioms Thibetensis explorator et funâator^K Falleceo
em 1 634.
Auiio de 10251
D. Fr. Miguel Rangel, Bispo de CocJtim, visitando a ilha
de Solor, habitada por Portnguczes, fez reparar a mura-
lha, e melhorou a povoação, deixando ahi por Governador
o valeroso Nuno Alvares Botelho.
(Memoria contemporânea.)
Anuo de l()3o
Depois da morte do Padre Andrade (vej. anno 1624),
foi mandado á missão do Tibet o Padre João Cabral, tam-
bém Jesuita, natural de Celorico da Beira, que escreveo
« Relação copiosa dos trabalhos, que padeceo na missão
do Tibet » .
(Vej. Barbosa Machado, biblioí/icca Lasilana.)
150
Annos de J637 a 1639
Pedro Teixeira, Portuguez, fez neste anuo, por ordem
do governo do Pará, a grande viagem desde o Pará até
Quito. Remontou o rio Maranham, ou das Amazonas,
até onde se lhe ajuntão as agoas do rio Napo. Entrou
pelo Napo, que mais acima tem o nome de Coca, e na-
vegou por elle até mui perto de Quito, aonde finalmente
chegou por terra.
Sahio Teixeira dos confins do Pará a i8 de Outubro
de 1637, com 47 canoas de bom porte, levando 2:000
pessoas, entre ellas 70 soldados, todos Portuguezes,
1:200 índios, e os mais mulheres, e rapazes. Comman-
dava huma vanguarda o Coronel Bento Rodrigues de Oli-
veira, nascido no Brazil. Chegou a Quito em fins de Se-
tembro de 1038. Voltou ao Pará em Dezembro de 1039.
(Vej. Nuevo descubrimionto dei gran rio de las Ama-
zonas, por el P. Christoval de Acunã. Madrid,
1641,4.")
Em 1039, o Capitão Pedro da Costa Favella, Portuguez,
he o primeiro, que entra no Rio Negro.
Anuo (Ic I(>4o a 1648
Pelos annos de 1645 e seguintes andavão na corte de
Portugal dous Príncipes orientaes, vassallos de el-Rei.
Hum era o Rei das Maldivas, (jue tinha vindo pedir au-
xilio contra hum seu irmão, que lhe usurpara o throno.
Este Príncipe sérvio na campanha de Além-Tejo. O outro
era D. Martinho, Príncipe de Arracan, que tendo sido ba-
ptizado, e creado em Gôa, e tendo servido nas armadas
Portuguezas da índia, obteve de el-Rei a capitania de Gôa
por Alvará do anno de 1040.
151
Em 1647 sahio de S. Luiz do Maranhão Bartholomeu
Barreiros de Athaide, mandado por el-Rei ao descobri-
mento das minas do rio Agnarico, ou do Ouro, e foi acom-
panhado do religioso Carmelitano Fr. José de Santa Te-
reza, que por ter sido muitos annos captivo do gentio
sabia a lingua de varias nações daquelle sertão. Desta ex-
pedição parece que não liouve resultado algum.
Em 1648 se recobrarão os Estados de Angola do poder
dos Hollandezes. Foi o illustre fidalgo Salvador Correia
de Sá e Benavides, Governador que então era do Rio de
Janeiro, o que executou esta gloriosa empreza com pou-
cos meios, mas com grande valor, industria, e ardideza.
Todas as dependências de Angola ao sul e ao norte ficarão
limpas de tão perniciosos inimigos. O Rei de Congo, que
com elles se tinha alliado, obteve a paz, cedendo á Coroa
de Portugal a ilha de Loanda.
Anuo de 1651
Princípios da povoação da ilha dos Patos (hoje ilha de
Santa Catharina) sobre a costa do Brazil, por Francisco
Dias Velho Monteiro, com a sua família, e 500 índios do-
mesticados.
(Resum.o Histórico de Santa Catharina, pelo Vis-
conde de S. Leopoldo. Paris, 1839.)
limo de 1(»0(I
A este anno se faz memoria de hum Portuguez appel-
lidado Melgueiro, que sendo mestre, e piloto de hum na-
vio Hollandez, sahio do Japão em Março; dirigio-se aos
mares do pólo árctico,, subindo até 84*^; passou entre a
152
antiga Groenlândia, e Spitzbcrg, e deixando á esquerda
a Scotia, viera a Portugal.
O escriptor, que nos subministrou esta noticia, cita
Mr. de Buaclie, no Parallélc des Flcuves, Historia da
Academia das Sciencias de Paris, anno 1753, e Memo-
riai da mesma Academia, pag. 885. E acrescenta por tes-
temunho de Mr. de Buache, que os Batavos tinhão, e
occultavão com recato o Diário desta navegação, única
até áquelle tempo.
O mesmo escriptor nos dá ainda outra noticia, que diz
ser sabida: aiSotum etiam est (diz ellej Marlinum Chack
Lusitamitn...y> ác; isto he, que hum Portuguez, por
nome Martim Chack, governando huma não em conserva
de outras duas pelo mar pacifico, íôra correndo os mares,
arrojado por huma violenta tempestade, e ventos occiden-
taes, achando-se por fim á parte meridional da Irlanda,
d'onde viera a Lisboa.
Anuo de tOfíS
O Padre Manoel Godinho, natural da villa de Montalvão,
egresso da Companhia de Jesus, Prior de S. Nicoláo de
Lisboa, e depois de Loures, estando nas missões da índia,
veio por terra a Portugal, de mandado do Yice-Rei Antó-
nio de Mello de Castro, e segundo parece com alguma se-
creta, e importante commissão. Escreveo « Relação do
novo caminho que fez por terra, e mar, vindo da índia
para Portugal no anno de 1663 y>, impressa em Lisboa,
em 1665.
Aniios de i6(»8 e Um
Sobre o descobrimento do Rio Negro na America Por-
lugueza deve vêr-se o Diário da Viagem, que fez pela ca-
pitania de S. José do Rio Negro, Francisco Xavier Ribeiro
de Sampaio, impressa pela Academia Real das Sciencias
de Lisboa em 1825.
lo3
Mandou el-Rei de Portugal Embaixador á China, o qual
foi recebido do Imperador com grandes mostras de be-
nevolência, e obteve algumas liberdades para a religião, e
para o commercio.
Annos de 1H76 a 1680
Ayres de Saldanha, que por estes annos governava An-
gola, intentou abrir communicação por terra a Benguella,
e d'ahi á contra-costa de Sena. Offereceo-se para esta em-
preza o (lapitão José da Rosa, mas sahindo de Massan-
gano, a poucas jornadas encontrou tantas difficuldades,
e tanta opposição em muitos Sovas, que lhe impedião a
passagem, que se vio forçado a retroceder.
Anno de 1682
Em 1G82, pouco mais ou menos, Bartholomeu Boeno
da Silva, natural de Pernahiba, com hum seu filho do
mesmo nome, chegarão a Goiazes. O filho foi pouco de-
pois o principal descobridor das terras daquella capitania.
(Vej. a Memoria sobre o descobrimento, gonerno, po-
pulação, e cousas mais notáveis da capitania de
Goiaz, no Jornal de Coimbra, num. 76, part. 1,*,
art. 1 .°, pelo Padre Luiz António da Silva e Sousa,
natural do Serro do Frio, capitania de Minas Ge-
raes.J
Parece que em 1726 he que se fez ali estabelecimento
de povoação Portugueza, de que foi primeiro Governador
o de S. Paulo Rodrigo Cezar de Menezes até 1728.
Anno de 1696
Por estes annos descobrirão os Portuguezes o aljôfar,
e as pérolas nos mares de Çofala, a cousa de trinta léguas
da barra de Luabo.
154
Também se descobrirão as minas de prata no reino de
Mocranga, na terra chamada Nhanace, quasi confmante
com as nossas terras de Tete, junto do Zambeze.
Anuo (Ic 1719
Notaremos aqui, que, segundo hum antigo escriptor
Portuguez, até os últimos annos de el-Rei D. Sebastião
não se tinhão descoberto no Brazil minas de ouro, nem
de prata, nem outras riquezas, e pérolas, ác.
Em 1059 achámos a i)rimeira noticia (ainda duvidosa)
de huma rica mina descoberta ha pouco tempo no Brazil.
Em tempo de el-Rei D. Pedro II se começarão a des-
cobrir as minas do ouro, sendo Governador do Rio de
Janeiro Artur de Sá. Nas exéquias que se fizerão a este
Soberano em Roma, se ha, entre outras letras, que ador-
navão o tumulo, esta:
NOVIS IN BRASÍLIA INVENTIS AURIFODIXIS
MUNIFICENTIJi PETRI H SKRVIT NATURA.
Em 1719 se descobrirão as novas minas de ouro de
Cuiabá, Goiazes, e outios disliictos, sendo a mais pre-
ciosa a do Serro do Frio, por delia sahirem também dia-
mantes.
Em 1727 e 1728 se descobrirão os diamantes no Bra-
zil, e achámos em memoria, que a ft^ota, que viera do Rio
de Janeiro em 1730, trouxera a Portugal 4146 onças.
Annos de 1722 a 172Í)
Em 1 722 vierão a Poi'tugal Embaixadores de hum Rei
poderoso da ilha de S, Lourenço, offerecendo a el-Rei os
portos do seu reino para nelles mandar levantar fortalezas.
Em 1723 foi despachado pelo governo do Pará o Ca-
pitão Francisco de Mello Palheta com huma tropa de ex-
155
pioração a correr, e examinar o rio Madeira no Brazil,
aonde já tinha hido em 1716 outra expedição Portugueza .
Em 1 725 mandou el-Rei Embaixador ;i China a cumpri-
mentar o Imperador pela sua exaltação ao throno. O Em-
baixador Alexandre Metello entrou em Pekin em 1727.
Em 1726, primeiro estabelecimento de povoação Por-
tugueza em Goiaz.
(Vej. o anno de 1682.)
Em 1729 recebeo o Vice-Rei da índia huma embaixada
do Principe de Agra, e outra do Raja de Amber, que pe-
dia que de Portugal lhe fosse enviado algum hábil ma-
thematico, com quem podesse conferir certos pontos as-
tronómicos. Este Embaixador veio a Lisboa com cartas e
presentes do mesmo Principe, e do Gran-Mogol Mahamad
Shea, que se intitulava Imperador do Indostan.
Annos de 1735 a 4737
António Ribeiro Sanches, sábio Portuguez, primeiro
medico dos exércitos da Rússia, correo nestes annos. por
ordem daquelle governo, a Vkrania, as margens do Don
até ao mar de Zabache, e os confins do Cuban até Azojf:
atravessou os desertos entre a Crimêa, e Backmtit: vi-
sitou os Calmucos desde o reino de Cazan até ás mar-
gens do Don: e os Tártaros da Crimêa, e de Nogai, e os
Tártaros de Kergisse, e Tcheremissi ao norte de Astracan
desde 50 até 68^ de latitude, d-c.
(Buffon. Histoire natiircUe de Ihomme.j
156
Nos mesmos annos foi povoado no Brazil Mato-grosso
pelos moradores de Cuiabá.
Annos de 1741 a i743
Foi neste anno a primeira exploração do rio Aporé, e
do celebre sitio do Corumbijara por alguns moradores
de Mato-grosso.
(Vej. Navegarão desde o Pará até Mato-grosso, im-
pressa pela Academia Real das Sciencias, em 1 826.)
Anno de 1719
Neste anno sahio do Gran-Pard por ordem de el-Hei
de Portugal huma escolta, que navegou pelo Amazonas
até ao Madeira, seu confluente. Começou-se a viagem a
14 de Julho, e a 25 de Setembro chegou a escolta á em-
bocadura do Madeira. Navegou por este rio até 17 de De-
zembro, em que chegou ás Cachoeiras. Vencidas dezenove
Cachoeiras, navegou pelo Aporé, que os Hespanhoes cha-
mão Ithenes, e a 14 de Abril de 1750 chegou ás minas de
Malo-grosso, que era o seu destino, com nove mezes com-
pletos de viagem. Escreveo a Relação delia José Gonsal-
ves da Fonseca, e a Academia Real das Sciencias tie Lis-
boa a imprimio em 1826.
Annos de 1768 a 1775
Entre os annos de 1768 e 1774 foi escripto o Roteiro
da viagem da cidade do Pará, até as ultimas colónias dos
dominios Portuguezes, em os rios Amazonas, e Negro,
illustrado com algumas noticias, que podem interessar a
curiosidade dos navegantes, e dar mais claro conheci-
mento das duas capitanias do Pará, e S. José do Rio Ne-
gro. Escreveo-o o Reverendo José Monteiro de Noronha.
137
Em 1774 e 1775 foi a viagem pelo Amazonas, e Rio
Negro, feita por Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio,
ouvidor da capitania de S. José do Rio Negro, impressa
pela Academia Real das Sciencias de Lisboa, em 1825.
Anno de 1783
Ordenando a Rainha D. Maria I, que se despachassem
viajantes aos sertões da America para coUegirem noticias
dos vários productos da natureza, foi hum delles o Doutor
Alexandre Rodriges Ferreira, levando por desenhadores a
Joaquim José do Gabo, e a José Joaquim Freire.
{Memorias da Academia Real das Sciencias de Lis-
boa, tom. 5.°, pag. 65.)
O gravador Manoel Marques de Aguilar, tendo hido a
Inglaterra aperfeiçoar-se na sua arte, foi depois, pelos
annos de 1794, pouco mais ou menos, encarregado de
abrir as estampas pertencentes áquellas viagens.
O naturalista Manoel Galvão da Silva foi mandado para
Moçambique em execução das mesmas ordens regias, e
para o mesmo íim, levando em sua companhia o dese-
nhador António Gomes.
(Ibidem, pag. 63.)
Auuo de 1787
O Tenente Coronel Manoel da Gama visitou neste anno
o Rio Branco por ordem da corte, e o descreveo com pro-
lixa investigíição, fazendo levantar a carta respectiva pelo
Engenheiro, Houlor em mathematica. José Simões de
Carvalho.
Annos de 17% a 1798
Vicente Fei reira Pií-es. natural da Bahia, partio desta
cidade a ^9 de Dezembro de 1796 como enviado de Sua
i58
Alteza o Príncipe Regente, em companhia de D. João Car-
los de Bragança^ Embaixador Eihiope do Rei de Dahomé.
Foi a Dahomé, e voltou á Bahia, aonde chegou a 5 de Fe-
vereiro de 1798. Escieveo, e offereceo ao Príncipe em
1800 a « Viagem de Africa em o reino de Dahomé», ma-
nuscripta, em 4.°. que está na Bibliotheca Real da Ajuda.
Em 1 797 partío o Major Francisco Nunez com huma ex-
pedição ao descíjbrinienlo da communicação do rio Capim
para o Piauhy. Voltou, e deo conta da viagem em 4798.
Anuo de 179K
Estando D. Rodrigo de Souza Coutinho (depois Conde
de Linhares) no Ministério dos Negócios da Marinha e Do-
miJiios Uhramarinos, (juiz renovar a empreza (outras ve-
zes teniada) da communicação entre as duas costas Occi-
dental e oriental de Africa por terra. Designou para isto
a Francisco José de Lacerda e Almeida, Doutor em ma-
thematica, nomeando-o, com este intento, (lovernador
dos Rios de Sena, (Vonde havia de partir a expedição.
Lacerda partio para o seu governo, munido de instru-
mentos, e meios adequados; procurou informações e no-
ticias, e poz-se a caminho para o interior. Chegando ás
terras do Rei Cazembe (que parece ser o ponto central
entre as duas costas) ahi falleceo. Os seus companheiros,
a quem elle, â hora da morte, recommendou a continua-
ção da empreza, nã(t aiinuírão a esta recommendação, e
a empreza ficou sem o seu completo eífeito.
(Vej. os extractos da obra publicada em Londres, na
lingua Ingleza, em 18^4, com o titulo « Relação
dos descobrimentos feitos pelos Portuguezes no in-
terior de Angola e Moçambique, tirada de manns-
eriptos originaes, por F. E. Bowdich ».)
159
Auno de 179Í)
Ao mesmo tempo que da parte oriental de Africa se
tentava a empreza da communicação das duas costas pelo
interior, de que falámos no artigo antecedente, tentava-se
também da parte occidental, por ordem do Capitão Ge-
neral de Angola D. Fernando de Noronha, que encarregou
deste descobrimento o Tenente Coronel, Gommandante,
e Director da Feira de Casange Francisco Honorato da
Costa.
Os exploradores chegarão ao sitio de Cazembe, aonde
tinha fallecido o Doutor Lacerda; mas ahi acharão emba-
raços, que por alguns annos os detiverão.
Em 1807, sendo Governador o Capitão General de An-
gola António de Saldanha da Gama (depois Conde de Porto
Santo, e ha pouco fallecido), renovou este a mesma ten-
tativa, mandando huma expedição á contra-costa. a qual
com effeito se executou, voltando a Loancla em 1809, e
trazendo embaixada dos Molluas, nação que já commer-
ciava com Moçambique.
Enviou ainda o mesmo Governador e Capitão General
segunda expedição com ordem expressa de hir até Mo-
çambique, a qual voltou a Loanda estando já no governo
de Angola José de Oliveira Barboza, e trazendo cartas do
Governador de Moçambique.
Auno de 1810 e 1811
Em 1810 levantou o Capitão-Tenente José Joaquim da
Silva a carta hydrograíica da costa do Pará até o Ma-
ranhão.
Em 1811 sahírão da capital do Brazil por ordem do
governo exploradoi^es da navegação do Guaporé, Mamoré,
Madeira, Arinos, Tapajóz, e Xingu, rios ([ue todos entrão
no Amazonas.
NOTAS
ACERCA DE ALGUNS DOS DESCOBRIMENTOS
APONTADOS NO ÍNDICE CHRONOLOGICO
TOMO V
NOTA SOBRE AS ILHAS CANÁRIAS
Anno de 1430?
As ilhas que se chamão Canárias forão conhecidas dos
antigos, não só por este próprio nome, mas tannbeníi pela
denominação de Afortunadas. Ptolomeu as mencionou
nas suasTaboas, e expressamente poz no numero delias
a Canária, d'onde veio a todas as outras este nome
geral. Plinio igualmente fez delias memoria, e até tomou
á sua conta indicar-nos a origem do nome de Cavarias di-
zendo que provinha da multidão de grandes cães que ali
se achavão (I). Santo Isidoro também falou delias, e quiz
explicar a razão por que se lhes altribuia a denominação
de A for Uma (ias.
Parece que no século xn se conservava ainda alguma
memoria destas ilhas e do seu nome. Em Santo Antonino
de Florença (2.'' part., Historia, lit. 12.°, cap. 8.", § 5.")
lemos estas palavras:
(t) Plinio, liv. 6.», cnp. .32.°, faz delias mpmoiia del)aixo rio ti-
tulo de ilhns Alnrliiiuidds : iioiiií^a: Oníhrion. Junonia uuiior, ,luno-
nia rniuor, Capmria, Niviiria, e Canária, (lizoiíilo dt'sta ulliiiia,
que lhe vinha o nome ; a muUiludim canum ingentis magnUudiniíi.
164
«Eo tempore, ut ait Sigebertus, in Scotia Brendanus (2)
claruit, qui Fortunatas insulas seplennali navigatione per-
quirens multa miraculo digna vidit, a quo Macbutes, qui
et Maglovius, regulariter educatus, et ipsius navigationis
socius, in Britannia sanctitate, et miraculis claruit», á-c.
O Machiites, ou Maglovius, de que fala o Santo, he o
mesmo que os Francezes chamão S, Maclou, ou S. Malô,
que floreceo no século vi, a cujo tempo se deve conse-
quentemente referir a navegação de Brendano em busca
das ilhas Afortunadas. E postoque alguns escriptores du-
vidão desta navegação, e a suppõem fabulosa, comludo
Santo Antonino referindo-se ao testemunbo de Sigeberto,
que escrevia no século xii, mostra, pelo menos, que neste
tempo se não havia ainda perdido de todo a memoria da-
quelles ilhas, nem se julgava temerária a sua indagação.
Como (juer que seja, temos por mui verosímil, que as
Caixarias fossem conhecidas dos Árabes da Mauritânia.
Estes povos erão navegadores. As suas frequentes pas-
sagens á Hespanha desde o principio do século viíi, as
suas emprezas sobre as costas da Gallia, da Itália, e Sicí-
lia, da Grécia, c fora do Estreito sobre as da Galliza, e
Astúrias, á-c, mostrão, que elles linhão huma numerosa
e exercitada marinha (3). Por outra parte as ilhas Canárias
(2) Deste Brendano conjecturámos haver-se forjado a fabula da
ilha encoberta, chamada de S. Borondon, ou Blandon (como outros
dizem), sobre a qual se pôde ver Moreri, e outros muitos escriptores
e geógrafos.
(3) Pouco depois do fallecimento de el-Rei de Castella o Leão
D. AfTonso VI (em 1109), sendo Haii Rei de Marrocos, tinha na sua
corte Alimemon, perito marinheiro (sapiens nauta) que presidia ás
cousas maritimas. Este, com grande cópia de navios corria o Oceano
contra a Galliza, e mar Britânico, e o mediterrâneo até Constanti-
nopla, combatendo os Barcelonezes, Francezes, Sicilianos, e outros
Christãos, e levando muitos captivos para Marrocos. Hali e seu lilho
Texufm favorecião muito os Christãos que tinhão captivos em seu
poder, e ok enipregavão tanto na guerra, como nos cargos e officios
165
íicavão tão próximas, e quasi fronteiras á Mauritânia Tin-
gitana, aonde erão situados os reinos de Fez, e de Mar-
rocos, que difficilmente se acreditará, que os Árabes as
não conhecessem, e visitassem, bem como alguns dos
Christãos que no século xiu frequentarão o reino de Mar-
rocos, e assistirão por algum tempo na cidade do mesmo
nome, sua capital (4).
O certo he que no século xiv, e ainda antes delle, forão
as Canárias visitadas por vários navegantes, e entre elles
pelos Portuguezes.
Os escriptores da Historia da Republica de Génova re-
ferem, que em 1291, Auria e Viraldo navegarão em duas
triremes o Atlântico com o intuito de descobrirem as Ca-
nárias; mas que destes aventureiros não houvera depois
mais noticia alguma (5).
Dos Normandos nos consta, que pelos annos 1329 na-
vegarão até áquellas ilhas : e o auctor do Mundo Primi-
tivo menciona (se a memoria nos não engana) sobre a
da sua caza, e desde então ficarão muitos Christãos naquella còrlo.
(Chronica de D. Affonso Vll^ edição de Fiorez.)
(4) Nos princípios do século xiii mandava o Rei João de Ingla-
terra Embaixadores a Marrocos. Pelos annos de 1219 estava em Mar-
rocos o Infante D. Fedro de Portugal, irmão de el-Rei D. Aífonso II,
e nesse mesmo tempo partirão de Sevilha para aquelia cidade os
cinco Frades menores, que lá forão martyrisados, e sabemos que
muitos outros Christãos existião então na mesma cidade. Em 1237
nomeou o Santo Padre Gregório IX, e consagrou Fr. Agnello, Frade
menor, para Bispo de Marrocos, aonde havia muitos Christãos.
O Santo Padre Alexandre IV o fez seu Legado em toda a Africa
i'm 12iio: e finalmente o Santo Padre Nicoláo IV no anno de 1290
lambem nomeou Bispo para Marrocos. Tud(j isto, e muitos outros
senjclhantes argumentos provão quanto a(iuelles reinos erão frequen-
tados de Christãos no século de que tratámos.
(o) Se este facto he verdadeiro, vé-se que não he bem fundada
a conjectura de hiuu geógrafo moderno, que ])resume, que de lodo
se havia perdido a idéa das iUufs Afortunadas, quando os Norman-
'■^os de novo as descobrirão no século xiv.
166
auctoridade de hum escriplor Árabe, que sahirão de Lis-
boa para as Canárias algumas famílias Portuguezas (6j.
Nada porém a este respeito he mais decisivo e incon-
testável, que o facto de D. Luiz de Hespanha. descendente
do Infante de Lacerda, de que faz larga menção Raynaldo.
Refere este historiador annalista, que D. Luiz liindo a Avi-
nhão como Embaixador de el-Kei de França, alcançara do
Santo Padre Clemente VI o senhorio das Canárias (7) de-
baixo de certas condições, e com reconhecimento feudal
á Santa Sé, e que imi)loran(lo. para a conquista, o auxilio
de vários Principes, e entre elles o de el-Hei de Portugal,
com cartas e recommendações do Papa, respondera el-
Rei U. AlTonso IV ao Santo Padre, que elle se considerava
com direito áquellasilhas. pois as havia descoberto, rman-
dado a ellas seas vassallos, e que as teria conquistado se
lho permitlissem as gxerras, que linha com os Sarracenos.
Acrescentava, porém, que em reverencia da Santa Sé, e
(6) Alffuns geógrafos citão Cartas Geográficas dos annos 1326,
1367, e 138'i:, em que se nolão estas illias com a sua graduação, e
por aqui se \è taml)pm que sem fundamento diz Moreri, que as Ca-
nárias crão incojjnitas no secnio xiv.
(7) Se alguém perguntar qu" direito tiulia Ciemenle VI a dar o
sentiorio das Canárias a D. Luiz, responderemos, que os Pontifices
Romanos já em tempo de Url)Hno ti tinhAo para si, que todas as
iilias perleiícião por direito á Sé Romiiua. Assiu) o suppuuha este
Papa quando dava a Cnrsega ao ({ispu de l^iza em 1092. Adriano IV,
mandando itie el-Rei de Inglaterra pedir licença para se apossar da
Hiljernia á força de armas, com o pretexto de restituir ali ao seu
esplendor a religião Clu'islãa, concedeo-lhe a licença, impondo-ltie
a obrigação de pagar liuma pensão annual á Santa Sé por cada caza.
E na Bulia, que lie de lloO, diz: «Sane liiherniam, et omnes in-
snlas, quae doncinenta christianae fulei ceperunt, ad jus B. Petri,
et Ecclesiae Romanae, qiiod tua Regia ISobititas ipsa cot/noscit, non
este duhium pertinere ».
E no anno de H87, Henrique II de Inglaterra pedio ao Papa Ur-
bano III, e obteve delle licença para fazer Rei de Hibernia hum de
seus filhos, cousa que precedentemente lhe fora denegada por Lú-
cio m.
167
por ser o Príncipe Luiz seu p;ii'erite, cedia deste seu di-
reito, sem comludo lhe podei' dar o auxilio pretendido
pela indicada razão da guerra, que estava sustentando
contra os Africanos.
Este facto, que aconteceo pelos annos de I3it, e a res-
posta que el Rei de Portugal D. Affonso IV deo ao Santo
Padre, são testemunhos irrefragaveis de que as ilhas Ca-
nárias, ou Afortunndas erão já conhecidas pelos Euro-
peos antes do meio do século xiv, e que os próprios Por-
tuguezes as linhão reconhecido e visitado nessa época.
Cieza (no seu Trai. Rer. Indirnr.) faz ainda menção
de certos aventureiros, que em 1393 invadirão, e sa-
quearão as estiarias: e Zurita querendo (ao que parece)
referir o mesmo facto, postoque com alguma diííerença
na data, diz que em 1393 alguns navegantes Guipuscoa-
nos, e Andaluzes forão ao descobrimento daquellas ilhas,
e effectivamente se apossarão de algumas delias. E acres-
centa, que finalmente el-Kei de Castella Henrique ill fa=
cultára a Roberto de Braquemont no anno de 1401 o
reconhecel-as e conquistal-as; e que cominettendo Bra-
quemont a expedição a seu parente João de lieltcncourt,
este com eíTeito conquistara algumas, e levantara forta-
leza na Lançarote no anno de 1417 (8).
(8) Florez, Rainhas CathoUcns, tratando da Rainha D. Calfiatina,
viuva de Henrique líl (que lalleceo em 1406), a qual governava na
menoridade de sen íiitio D. João ti, diz (jue eila praspgnio com bom
governo, e dando providencias sobre a conquista das Canárias. Por
onde se vê que estas providencias forão posteriores ao armo de 1406,
em que falleceo U. Henrique, e subio ao Ihrono o pupillo D. João H.
E anula se deve dizer, que lorão dadas pelo íini da regência da
Hainlia; porquanto Klorez referindo aqueilas providencias em gerat.
acrescenta logo: «Porém a este tempo achando-se (a Rainlia) em
Valladolid, lhe sobreveio a morte, quinta feira, 2 de Junho de 14l8;w
quando el-Rei seu íillio tintia já cumprido treze aiuios, e ainda não
governava o reino. As providencias lorão dadas pela Rainha depois
que liceu tutora m soHihtm por morte de D- Fernando, irmão de
168
Do que tudo se manifesta: i.° Que as Canárias eião
bem conhecidas no século xni, e muito mais no século xiv,
e que quando el-Rei Henrique III concedeo a Braquemont
a faculdade de a» conquistar, estava desde muito tempo
vencida a difíiculdade do descobrimento. 2.° Que sendo
a conquista de Bettencourt eííectuada em 1417, como diz
o escriptor citado, e como reconhece Pinkerton, e muitos
outros modernos, mal se pode d'ahi inferir que os des-
cobrimentos Portuguezes tivessem origem nesse facto
de Bettencourt, visto ser muito provável que o Infante
D. Henrique já em 141^2 havia formado os seus projectos,
e começado a execução delles, e ser de indubitável cer-
teza, que no propri(t anno de 1417 mandava elle os seus
descobridores a dobrar o Bojador, o que não faria tão in-
tempestivamente, se houvesse de esperar o successo das
Canárias para se resolver a executar o seu plano.
O que parece fora de duvida, segundo as antigas Rela-
ções, he que Bettencourt se apossou eífeclivamente de
três daquellas ilhas, que hum escriptor nosso diz serem
Lançarote, Fortaventura, e Ferro: e que retirando-se al-
gum tempo depois, as deixara encommendadas a seu so-
brinho Maciot de Bettencourt, o qual conquistara mais a
Gomeira, largando-as logo todas ao Infante de Portugal
D. Henrique, ou por determinado preço de dinheiro, como
dizem alguns, ou por certos rendimentos, ou terras, que
D. Henrique, e tio do pupiilo, que licára nomeado por D. Henrique
tutor com ella, e foi Rei de Aragão, fallecido em 1416.
Pedro de Medina, Grandeza» de Hespanha, diz (jue as (AUiurius
forão aciuidas pelos Hespanlioes em tempo de D. João 11 de (]as-
tella, sendo menino, e debaixo da tutela de sua mãi a Rainha
D. Catharina. E que depois, em tempo dos Reis Cattiolicos, forão
por seu mandado conquistadas por Pedro de Vera de Xeres de la
Frontera, e Miguel de Moxica, excepto Palma, e Tenerife, que con-
quistou Alonso de Lugo, tamijem por ordem dos mesmos Monarcas,
que depois as povoarão de Hespanhoes, e mandarão Sacerdotes que
instruíssem os indieenas na religião Christãa.
169
O Infante lhe assignou na ilha da Madeira, onde Betten-
court fora viver, como querem outros (9).
(9) Esta segunda opinião nos parece mais verosimil, e he certo
que ainda hoje se conservão na ilha da Madeira algumas familias
do appeilido de Bettencourt.
Cândido Lusitano, Vida do Infante D. Henrique, liv. 2.", diz que
Bettencourt, com licença de el-Rei de Castella Henrique III, tomou
as ilhas Lançarote, Fortaventiira, e Ferro, e ausentando-se, deixou
estas ilhas encominendadas a seu sobrinho Maciot de Bettencourt,
o qual as conservou era obediência, e ainda auxiliado de alguns Cas-
telhanos se apossou da Gomeira. Como porém seu tio não voltasse,
e a eile faltassem os cabedacs, e forças necessárias para manter a
conquista, veio em largar as quatro ilhas ao Infante D. Henrique,
recebendo delle em troca as Saboarias da ilha da Madeira, e outras
rendas, de que ficou satisfeito.
Passou Maciot a viver na Madeira, e fez caza tão rica, que cazou
sua filha herdeira, D. Maria de Bettencourt, com o Capitão da ilha
de S. Miguel, Ruy Gonçalves da Camará, íilho 2.» do descobridor
João Gonçalves Zarco.
Não sabemos em que anno foi feita por Maciot Bettencourt a
cessão, ou venda das Canárias ao Infante D. Henrique ; mas presu-
mimos que seria pouco antes, ou pouco depois do anno 1430, não
só porque he forçoso^ que desde 1417 decorressem alguns annos,
em que podesse caber o dominio do primeiro conquistador, a sua
retirada para a Normandia, o governo de seu sobrinho Maciot, e a
conquista da Gomeira; mas também porque achámos que el-Rei
D. Duarte pedira ao Santo Padre Eugénio IV a confirmação da con-
quista de Ceuta, e a acquisirão das Canárias, que não pertenciuo a
Principe algum (^hristão: no que parece referir-se, ou á acquisição
que havia feito pela compra, ou á acquisição que em consequência
da compra intentava fazer das outras ilhas, que ainda erão possuídas
dos bárbaros.
As Letras Apostólicas, em (jue u Santo Padre delerio á supplica
de el-Rei, não tem data noBuilario; mas devem suppor-se passadas
entro o anno de 1433 e o de 1438, que forão os do i-einado de el-
Rei D. Duarte, a quem o Papa as dirige.
Por estas mesmas Letras Apostólicas consta, que el-Rei de Cas-
tella se queixara ao Santo Padre destas acquisiçues concedidas aos
I'õrtuguez('s, pretendendo, que tanto a conquista das (danarias, como
a de Africa pertencia a sua coroa : ao que o Santo Padre rcspondeo,
que não tora, neni era da sua intenção ollender direitos alheios, e
170
O Infante preparou e expedio em 1447 hnma frota em
que hia bom numero de soldados Porlugiiezes comman-
dadus por D. Fernando de Castro, destinados á conquista
das oito ilhas das Conarins, que parece não linlião até
então sido entradas de Europeos, a saber: Gran-Cana-
ria. Palma, Graciosa. Inferno (que parece ser Tenerife),
Alegrança, Santa Clara, Itoche, e Lobos; mas não sabe-
mos mais cousa alguma do resultado desta expedição, e
somente dizem os nossos escri piores, que vendo o In-
fanle que os Reis de Castella prelendião sempre ter algum
direito, ou dominio naquellas ilhas, e não querendo im-
plicar-se em questões que o desviarião de seu principal in-
tento, as largara outra vez, ou as vendera aos Castelhanos,
flcando deíinitivamente áquella Coroa pelo Tratado de paz
celebrado em tempo de el-Uei D. Ailonso V com os Reis
Catholicos no anuo de 1479 (10).
A cessão ou venda das Canárias pelo Infante D. Hen-
rique, parece ler sido concluída logo depois da expedição
assim o parlicipav;i a cl-líei D. Duarte, recommendaiulo a paz entre
as duas n ições.
(10) Diz o escriptor Canrlido Lusitano, que mandando o Infante
tomar posst^ das quahv^ illias, coimo aimla restarão dozp por ron-
quistar. e entre ellas a Gran-Cnnarin, aprestara a armada com 2:500
homens de pé. e 120 de cavallo. genie escolliida e biiosa, e nomeara
por Capitão desta expedição a D. Fernando de Castro, Governador
da Caza do Infante. E atlritme esta enipreza ao anno de 1424, no
que, se não lia erro lypogiafico, pôde liavei- equivocação do escri-
ptor, porque es!a expcíJiçãD parece que devia ser mais tarde.
Cailainosto. hindo á sua piimcira viaj;en) em lli.j, clietrou ás Ca-
nárias. Diz que são scto, quaUo liaíjitadas porCtiristãos, que são Lan-
çarote, Fortaoentura . a Gomeira, e Ferro; e três por idolatras, que
são a Gran-Canaria, Tenerife, e Palma. Diz mais, que o Senhor
das habitadas por Christãos se chama Ferreira. Gei.til-liomem, e
Cavaileiro de Sevilha, e vassallo de eIRei de Hespaniia. E que as
três por serem habitadas por gente de defeza, e terem montanhas
altíssimas, e perigosos desfiladeiros, ainda, não poderão ser subju-
qadas pelos ChristiJm.
171
que acima dissemos; porquanto em 1449 foi S. Diogo,
Andaluz, Frade menor, mandado â ilha Forfaventura,
aonde converleo muitos idolatras íí fé Christãa, e come-
çou a fundar convento da sua onjem: mas pretendendo
passar também á Gran-Canaria, aonde (diz Hibadeneira)
ainda se não tinha pregado o Cliristianismo, vio-se obri-
gado a voltar á Europa, sem entrar na dita ilha, e a re-
colher-se á Hespanha em 1 i49.
O continuador de Fleury ao anno 1495 faz menção de
huma expedição Castelhana ás Cnnarias, de que foi Cabo
ACfonso de Lugo, e diz, que tomara Tenerife, e Palma:
que Tenerife se chamava antigamente Ninaria: que o Rei
de Tenerife passara a Veneza, e que Affonso de Lugo fora
nomeado Governador da ilha, e encarregado de descobrir
as outras que ainda não fossem descobertas.
Manoel Correia, Commentario ao cant. 5.°, est. 8.' de
Camões, diz. que as Canarins, ou Afurtimnilas, são doze,
scil.: Gran-Canaria, Palma, Graciosa, Inferno, Ale-
grança. Santa Clara, S. Roque, a dos Lobos, Lançarote,
Fortavenliira, Fexro, e Gomeira. « Das quaes (diz) Lan-
çarote, Fortarentnra, e Ferro descobrio hum cavalleiro
Francez, por nome João de Bettencourt; e a Gomeira
hum seu sobriníio chamado Maciot Bettancor, no tempo
de el-Rei D. Henritjue III de Casteila. As outras forão
descobertas por mandado do Infante D. Henrique, lilho
de el-Rei D. João I de Portugal. Depois que MaciOt Be-
tancor, por concerto que fez com o Infante, lhe largou o
direito que tinha nas quatro ilhas descobertas, a troco de
outras cousas que lhe deo, com que viveo muito honrada-
mente. Estas ilhas se chamão hoje todas as Canárias » , ác.
NOTA SOBRE AS ILHAS DOS AÇORES
OU TERCEIRAS
Annos de 1444 e 1449
Ilhas dos Açores
O descobrimento das ilhas dos Açores he hum dos acon-
tecimentos, que temos achado referido com mais incer-
teza e variedade, tanto no que respeita á sua época, como
ao seu auctor, ou auctores.
Emquanto â época, huns dizem com Bolero, que estas
ilhas forão descobertas, e começarão a ser povoadas em
1439 (H). Outros reduzem o seu descobrimento ao meio
do século XV, sem determinação precisa de anno. Outros
com Luiz dei Marmol marcão o anno de 1455 (12). Outros
as suppõem descobertas em 1 448 ou J449. E outros final-
mente dizem que ellas forão avistadas, ou tocadas antes,
e finalmente reconhecidas ou achadas em 1449.
Emquanto ao auctor, ou auctores do descobrimento,
dividem-se os escriplores em dons partidos, hum que o
attribue aos Portuguezes, outro aos Flamengos. Huma
terceira opinião [)orém parece querer concilial-os, já
suppondo que os Flamengos tinhão tocado estas ilhas,
(H) Moreri, Dictionnaire Universel.
(12) Ortel. Theatr. Orb.. òic.
173
quando os Portuguezes as descobrirão; já dizendo que
ellas roi'ão descobertas por Portuguezes, e colonisadas
por Flamengos.
No meio da incerteza, que parece resultar de tamanha
variedade de opiniões, julgámos que merecem attenção
algumas probabilidades que fazem os Portuguezes au-
ctores do descobrimento, e são as seguintes, que expo-
mos ao prudeíite juizo dos leitores:
1 .^ Que naquelles tempos, a que se attribue o desco-
brimento das ilhas dos Açores, erão os Portuguezes os
únicos, que corrião os mares com o designio de achar
novas terras, ou de hir traficar ás que já erão descober-
tas, succedendo talvez serem arrojados pelo temporal a
diíTerentes rumos, e acharem algumas ilhas, que ainda
não erão conhecidas.
2.=* Que os Príncipes Portuguezes zelavão com grande
cuidado, que os estrangeiros não navegassem aquelles
mares, e tinhão a este ílm alcançado Bulias dos Papas
(segundo as opiniões e praticas dos tempos) encarre-
gando aos seus capitães e oííiciaes do mar n vigilância
sobre este ponto.
3.''^ Que o nome geral dado a estas ilhas, que se cha-
mão dos Açores, e os nomes particulares de cada huma
delias, a saber: S. Miguel, Santa Maria, Terceira, ou de
Jesu-Christo, Graciosa, S. Jorge, Pico, Fayal, Flores, e
Corvo; são todos nomes Portuguezes^ e alguns somente
próprios da lingua Portugueza.
4."^ Que também são Portuguezes os nomes das capi-
tães, villas, lugares, ác, como Angra, Ponta Delgada,
Praia, Prainha, Villa da Horta, Villa Franca do Campo,
Villa do Nordeste, Villa das Lagoas, Lagoinha, Porto For-
moso, Villa do Topo, á-c, á-c.
5.^ Que entre os escriptores Poi-tuguezes, alguns di-
zem positiva e expressamente, que Gonçalo Velho desco-
brira cm 1 Vii a ilha de S. Miguel, a 8 de Maio, dia da
174
Apparição do Santo Archanjo, dando por esse motivo o
nome á ilha, segundo a pratica mui frequente dos Portu-
guezes daquelle tempo. Outros dizem que Gonçalo Velho
fora mandado em 1449 povojr aquellas ilhas, já desco-
bertas nos annos antecedentes, e nas quaes o mesmo Gon-
çalo Velho tinha já lançado algum gado^ por ordem do
Infante D. Henrique.
Todas estas razões nos inclinão a ler por mui provável
que Gonçalo Velho foi o que descobrio as primeiras ilhas
(dos Açores) de Sa?ita Maria em í^.il, e de S. Miguel
em 1 444 : que nos annos seguintes continuaria elle mesmo,
auxiliado de outros navegadores Portngiiezes a descobrir
as mais ilhas, e hiria lançando nellas os animaes domésti-
cos, que depois servissem aos povoadores : e que em \ 449
se começou a obra da [íovoação, sendo elle mesmo encar-
regado, como cumpria, desse trabalho.
Três razões aponta hum escriptor douto em contrario
da nossa opinião. A primeira he que os escriptores, que
attiibiiem o descobrimento destas ilhas aos Flamengos,
são desapaixonados, e devem como laes preferir aos es-
criptores Portuguezes. A segunda he que as mesmas ilhas
se chamarão Flamengas. E a terceira he que ainda nellas
subsiste a posteridade das famílias Flamengas, que as
descobrirão. Nós não achamos estas razões bastantes a
nos fazerem mudar de sentimento.
Não a primeira: ponjue líendo os Flamengos os que se
attribuírão o descobrimento destas ilhas, tão apaixonados
se devem reputar, pelo menos, como os Portuguezes. Os
estrangeiros, que depois repetíião o mesmo, ou seguirão
sem exame o que achavão nos escriptores Flamengos, ou
se inclina vão mais a essa parle, levados do ciúme com
que se vê que muitos delles falarão dos descobrimentos
Portuguezes.
Acresce que os Portuguezes, tendo tantos factos inques-
tionáveis, com que exaltar a gloria da sua nação, no que
175
lespeita aos descobrimentos maritinjos daquella época,
nem costumavão servir-se de nolicias falsas em tal ma-
téria, nem riecessilavão de apropriar-se sem fundamento
a pequena gloria de haverem acidado mais algumas ilhas
em mares que elles havião franqueado, e frequentado
com seus navios.
Quando dizemos que os Flamengos forão os que attri-
buirão aos seus navegadores este descobrimento, falámos
com a auctoridade de Ortelio, que lambem era Flamengo,
o qual diz que os seus nacionaes he que darão ás Açores
a denominação de ilhas Flamengas: aNostrates (diz este
benemérito e verídico geógrafo) Vlaemsche cyladen vo-
cant, quasi Flandricas insulai » .
E por aqui se vê que a segunda razão acima apontada
contra o nosso sentimento padece o mesmo defeito que
a primeira: isto he, que o nome de Flamengas dado ás
ilhas, de que tratamos, tinha origem nos mesmos Fla-
mengos, que porventura querião assim sustentar a sua
opinião.
Mas nós não nos atrevemos a pôr esta nota aos Flamen-
gos sem maior fundamento, e conjecturámos que elles
darião o seu nome ás ilhas por haverem sido chamados,
ou admittidos a povoar algumas, ou alguns lugares delias.
E esta nos parece a verdadeira explicação da diííiculdade,
e a natuial solução do nó que embaraça esta controvérsia.
Os Porluguezes erão poucos para acudir á povoação
de tantas ilhas, como tinhão descoberto. Os Flamengos
tinhão a protecção da Senhora D. Isabel, Duqueza de Bor-
gonha, e irmãa do infante D. Henrique. Haveria famihas
que pretendessem melhorar de situação, vindo auxiliar a
povoação de tantas ilhas, e o Infante facilmente viria em
lh'o conceder. D'aqui he que nós conjecturámos que se
originou a opinião do descobrimento FJamengo, e a de-
nominação de Flamengas, que se ficou dando algumas
vezes áquellas ilhas.
176
Nem isto he mera conjectura. Tarapha refere que o In-
fante D. Henrique mandara povoar varias ilhas, e que
dera a povoar a de S. Jorge, e a do Pico a Flamengos.
O moderno geógrafo Pinkerton diz que estas ilhas forão
descobertas em 1449, e colonisadas por alguns Flamen-
gos com licença, ou de mandado de el-Rei de Portugal.
Pelo que Oca também resolvida a terceira razão, que
se nos oppunha, de se acharem nas ilhas dos Açores fa-
mílias Flamengas: o que podia acontecer ainda que os
Flamengos não fossem seus descobridores. Na ilha da
Madeira se achão os Achioles, illustres Florentinos, e os
Bettencouris, Normandos, e ninguém dirá que os Flo-
rentinos ou Normandos descobrissem aquella ilha. Esta-
belecêrão-se nella, ou no tempo em que foi povoada, ou
pouco depois, e assim se forão conservando até ao dia
de hoje.
Cândido Lusitano, na Vida do Infante D. Henrique,
liv. 4.", pag 317, e seguintes, tratando do descobrimento
e povoação das ilhas dos Açores, diz em resumo que:
Em 1431 Gonçalo Velho Cabral, fidalgo, Commendador
de Almourol, mandado pelo Infante navegar ao poente,
avistou huns penedos, em que o mar se mostrava in-
quieto, e como fervendo, e lhe deo o nome de Formi-
gas, voltando a Portugal sem mais resultado algum.
Em 1432 tornou a ser mandado na mesma direcção, e
aos 15 de Agosto descobrio a ilha, a que pôz o nome de
Santa Maria. Voltando a Portugal, o Infante o fez Capitão
donatário da ilha descoberta, e elle a começou logo a po-
voar, hindo a povoação, producção, e commercio delia
em grande crescimento por alguns annos.
Em 1444 o mesmo Gonçalo Velho fni de mandado do
Infante continuar os descobrimentos, e não sendo bem
succedido na primeira viagem, descobrio na segunda, e
neste anno, a 8 de Maio, a ilha de S. Miguel, a que deo
este nome allusivo á festividade do dia.
177
Kin 1'i-iri, luiido o dcscol)i'idor alcançado do Infaiilt.' a
capitania da nova ilha, i)assou a povoal-a neste anno.
L)'aqui em diante diz o escriptor, (jue lhe fallavão as
luzes da historia e da chronologia; mas que seguindo a
escassa luz de algumas conjecturas prováveis, parecia que
no anno de 1449 se descobrira por diligencias do Infante
a Terceira, a que se deo este nome por ser terceira na
ordem das descobertas, mas que se ignorava o seu des-
cobridor, postoque era provável ser algum dos muitos
navegantes, que naquelle tempo hião a Cabo Verde, á-c,
os quaes hião ou vinhão buscar a altura da Terceira.
Acrescenta porém o escriptor, fundado em lestemiinho
autJwitico, que em 1450 estava a Terceira descoberta
de pouco tempo, e que o Infante fizera delia Capitão a
Jacome de Bruges, cavalheiro Flamengo, que tendo vindo
a Portugal, entrara no serviço do Infante, e este o cazára
com huma Dama da Infanta D. Brites. Este virtuoso ho-
mem levantou logo huma fgreja da invocação de Santa
Beatriz, que foi a primeira freguezia de toda a ilha, e
para povoal-a levou do reino, e da Madeira (com apra-
zimento do Infante) alguns cazaes. .Tacome de Bruges vi-
veo alguns annos na ilha, e fazendo viagem a Flandres
para apurar a herança de hum seu parente, lá falleceo.
Duvida-se se a ilha de S. Jorge foi a quarta descoberta;
mas diz o escriptor, que está a favor delia a tradição dos
antigos, segundo a qual fora esta ilha descoberta em 1449
a ^;j de Abril, pelo (|ue tomou o nome do Santo desse
dia. Diz mais. que a fama attribue o descobrimento a Ja-
come de Bruges, c o cargo de povoal-a a GuHlterme Van-
dagara, que se chamou da Silveira, o qual, segando Me-
morias antigas, sendo na sua pátria (era Flamengo) pouco
favorecido da fortuna, viei"a tental-a em Portugal, e pedira
e alcançara do Infante licença para povoar S. Jorge. Fun-
dou a villa do Topo; mas escaceando a terra em i)oucos
annos na producção, o Capitão se vio obrigado a passar
TOMO V lá
178
á illia (,1o Fayah já conhecida, mas quaai deserta. Alii
acliou já a Jorge de IJtra, Flamengo illustre, que enlão
lançava os primeiros fundamentos á povoação do Fa/jal.
Silveira não se unindo bem com Ulra voltou a S. Joige.
O Infante deo a Utra a capitania do Pico, que segundo
alguns fora descoberta por hum Fernani Alvares, que ali
fora arrojado por tormenta, e nella vivera solitário obra
de hum anno.
A ultima ilha que se povoou, diz o escriptor, que ajuiza
ser a Graciosa, se bem que alguns põem o seu descobri-
mento em quarto lugar, e outros em terceiro, e elle por
conjectura a suppõe descoberta pelos annos 1453. Mas
dá como certo que o Infante a dividira em duas capi-
tanias, e dera huma a Vasco Gil Sodré, de Montemor o
Velho, homem nobre e rico, que vivia na Terceira : e ou-
tra a Duarte Barreto, seu cunhado, dos Barretos do Al-
garve.
O Barreto foi assaltado no caminho, e preso pelos Cas-
telhanos, pelo que passou a capitania a Pedro Corrêa da
Cunha, fidalgo illustre, e também parente de Vasco Gil
Sodré.
E nada mais diz o escriptor a respeito das ilhas dos
Açores.
Ao extracto que fizemos de Cândido Lusitano reflecti-
remos :
Parece que não pôde haver duvida prudente em dar
credito ao escriptor no que respeita ás duas primeiras
ilhas, porque notando elle sinceramente as variedades
que achara a respeito destes descobrimentos, e a falta de
noticias exactas de alguns dellcs, parece que se deve ter
por averiguado o que elle mesmo nos dá como certo e
indubitável, como he o que diz do descobrimento e po-
voação de Santa Maria em 1432, por Gonçalo Velho, de
S. Miguel em 1444 (no que concordão outros escriptores
nossos), e sua povoação, pelo mesmo Gonçalo Velho.
179
Das Ires seguintes Terceira, Graciosa, c S. Jorge, o
mesmo escriptor confessa que lhe faltavão noticias indi-
viduaes e certas, e que só por conjecturas prováveis de-
terminava as épocas dos seus descobrimentos.
Comtudo ellas estavão sem duvida descobertas antes
de 1400, e mui provavelmente povoadas, porquanto o In-
fante D. Henrique as possuio, e logo immediatamente á
sua morte as doou el-Rei D. Affonso V ao Infante D. Fer-
nando, seu irmão, que era sobrinho e filho adoptivo de
D. Henrique.
O nosso escriptor attesta sobre a fé de testemunho
authentico, que a Terceira estava descoberta de pouco
tempo, em 1450, e que então a fora povoar Jacome de
Bruges, como deixámos referido.
A esta se seguiria logo a Graciosa, que alguns põem
em quarto lugar na ordem dos descobrimentos, e o es-
criptor a suppõe achada em 14-j3. E logo depois, ou
pouco antes, a de S. Jorge, que os antigos su[»punlião
descoberta em 1449, altribuindo o seu descobrimento a
Jacome de Bruges, povoador da Terceira.
Das ilhas do Corvo, e Flores, não faz menção o es-
criptor (]ue seguimos; mas he fora de duvida que a do
Corvo estava descoberta em 1453, porque nesse anno,
a ^0 de .laneiro, a doou D. Affonso V ao Duque de Bra-
gança. E parece crivei que não taidasse muito a ser lam-
bem descoberta a das Flores, que fica a pequena distan-
cia (13).
(13) Fleuricux diz, ou suppue, (juo o Corço o Flores apenas Ibrão
descobertas em 1460 (Roteiro rjeral de Lopes, part. 1.", pag. 63);
mas III! equivocação, porque a ilha do Corvo já ein 1453 foi doada
ao Duque de Braganra, e a das Flores não ficaria por descobrir
quando a do Corvo, supiiosla a proxiinidadi' de audjas.
Lopes suppõe eslas ilhas descobertas desde 1431.
A ilha do Corvo foi doada por D. Aironso V ao Duque do Bra-
gança com mero e mixto império, por caria dada cm Évora a 20
180
Das (luas illias, Faval c Pico, que são as que restão
entre as nove chamadas dos Açores, não temos noticia
alguma exacta sobre o seu descobrimento, nem o nosso
escriptor nos dá indicação alguma, sobre que possamos
fundar o nosso juizo.
Elle diz, na verdade, que o Infante (D. Henrique) dera
a capitania do Pico a Jorge de Utra, e que este já estava
\\o Faijal quando lá aporlou Guilherme da Silveira, obri-
gado da esterilidade da sua ilha de S. Jorge.
Annos de 1449 a 1453
O descobrimento dos Açores, scginuio Marlini IJeliiiiiii
Lê-se no famoso Globo de Nuremberga de Martim Be-
haim, a seguinte nota:
« As ilhas dos Açores forão habitadas em 1466, quando
el-Rei de Portugal as deo d Duqucza de Borgonha sua
irmãa. Havia então em Flandres guerra, e grande fome,
e a Duqueza mandou para essas ilhas homens e mulhe-
res, e tudo o necessário para subsistirem, de. Em 1490
ainda ali havia Allemães, e Flamengos, que tinhão liido
com Job de Huerter, meu sogro, a quem as ilhas forão
dadas, e para seus descendentes j^e/a dila Duqueza. Em
;'.43l, reinando o Infante 1). Pedro, armarão-se dous na-
vios por ordem do Infante D. Henrique para hirem ao des-
cobrimento de terras além do cabo de Finis-terrae, os
quaes na distancia de 500 leguaes descobrirão estas ilhas,
de Janeiro de 1453. (Historia Genealógica, liv. 6.°, cap. i.°, e Pro-
vas ao mesmo liv., num. 20.)
O mesmo Rei, em 3 de Uezemhro de 1460, fez aò Infante D. Fer-
nando (que era seu irmão, o sobrinho e filho adoptivo do Infante
D. Henrique), a amplissima doação de muitas ilhas que este até á
sua morte possuíra, e entre ellas se nomeão a de Jesu-Chrislo (Ter-
ceira), Graciosa, Saída Maria, S. Migiiel, e S. Jorqe.
ISl
o UmkIo clesembarcado, não achárno vosligios de liomoiis,
nem de quadriipedcs. Depois para cumprii' as ordens do
Rei de Portugal, mandarão no cmno scguinlc Jezrscis na-
vios com toda a espécie de animaes, que lançarão em cada
illia paia multiplicarem. »
A desordem com que está escripta esta nota, e as ma-
nifestas falsidades, que nella se encerrão, quasi que nos
desviarião do trabalho de a refutar. Diremos sempre al-
guma cousa, e hiremos notando summariamente as im-
posturas mais obvias. Vamos pela mesma ordem.
« As ilhas dos Açores forão habitadas em 1466 j, quando
el-Rei de Portugal as deo d Diiqueza de Borgonha, sua
irmãa. »
Se estas ilhas forão habitadas em 1466, quando el-Rei
as deo d Duqueza, como diz a nota, que em 1432 forão
dezeseis navios com animaes para multiplicarem em cada
Inima delias? Estarião ellas trinta e quati'0 annos a po-
voar-se de toda a espécie de animaes, para só no fim de
tanto tempo hirem os homens comêl-os?
A doação destas ilhas á Duqueza de Borgonha (tia, e
não irmãa de el-Rei), he huma manifesta fabula:
1.° Pelo geral e absoluto silencio de todos os nossos
escriptores a este respeito, e porque se não mostra, nem
pôde mostrar titulo algum desta doação.
2.° Pela inverosimilhança, que melhor chamáramos
impossibilidade do facto: porquanto huma tão conside-
rável alienação, totalmente gratuita, de tantas ilhas des-
cobertas pelos Portuguezes, e á custa de seus trabalhos,
feita á Duqueza de Borgonha sem preço, sem indemnisa-
ção, sem allegação de relevantes serviços, e de mais a
mais sem o consentimento das Cortes, excede toda a cre-
dibilidade, e não pôde merecer o assenso de quem tenha
uso de razão (14).
(14) A Diiquoza, (iiiando o DiU[Uo lallccoo om 1405, oslava dosde
muito leiíipo retirada i'iii lium convento por desf^ostos que tivera
183
3." Porque dado, por hum momento, que estas illias
fossem doadas á Duqueza, não sabemos, nem se nos diz
quando, por que modo, e por que titulo reverterão á Co-
roa Porlugueza, havendo a este respeito o mesmo geral
e absoluto silencio, que já notámos a respeito da doação.
4.° Porque cinco destas ilhas dos Açores (a Teixeira,
Graciosa, S. Miguel, Santa Maria, e S. Jorge) tinhão
sido doadas em 1460 ao Infante D, Fernando, irmão de
el-Rei, e filho adoptivo do Infante D. IIenri(|ue, para as
ter e possuir do mesmo modo que este as havia possuido
até áquelle anno, cm (pie falíeceo. Do qual Infante D. Fer-
nando (fallecido em 1470) passarão a seu filho o Duque
de Viseo D. Diogo, e depois da morte deste a seu irmão
o Duque de Beja D. Manoel, que depois foi Rei.
A sexta ilha (a do Corvo), tinha também sido doada cm
i453 por el-Rei D. Affonso V ao Duque de Bragança por
carta dada em Évora a 20 de .laneiro do mesmo anno.
E as duas, que reslão (do Fagal, e Pico), as vemos
doadas a Jooz de Utra pelo dito Senhor D. JManoel, ainda
antes da nova doação, e foral, que já como Rei lhe fez
em lí)09, sem que neste amplissimo titulo se diga huma
só palavra da Duqueza de Borgonha, nem de algum do-
minio que jamais tivesse tido nas referidas ilhas (15).
«Em 1431 (diz pouco depois a nota), reinando o Jn-
com o Duque, e fallecoo {l'ahi a quairo annos, sem ler parle alguma
nos negócios do governo.
(iS) Existe no Real Archivo ila Torre do Tombo huma sentença
proferida no anno de 1571, em demanda, que teve Jeronymo de Utra
Corte Real com a Coroa solire a successão da capitania das ilhas do
Faval e Pico.
Delia consta que Joz de Utra, avó de Jeronymo, a instancias do
Infante D. Fernando, Mestre de Christo, viera povoar aquellas duas
ilhas, pertencentes á mesma Ordem, ficando as capitanias delias para
o dito Utra e seus descendentes : e que isto mesmo foi confirmado
por el-Rei D. Manoel, passando consequentemente a capitania das
duas ilhas por morte de Joz, a seu filho JManoel de Utra.
fantp D. Pedro, armárão-se dons navios por ordem di»
Infante D. Henrirjue. p;u;i liirem ao descobrimento de
terras ohnn do caho de Finis-terrae, os quacs na distan-
cia de 500 léguas descobrirão estas ilbas. »
A este periodo pode notar-se:
1.° Que o Infante D. Pedro nunca reinou: e se o es-
criptor quer falar da tutoria e regência, que elle teve na
menoridade de el-Rei D. Affonso V, seu sobrinlio, tam-
bém erra; porque esta regência começou em 1438, por
morte de el-Rei D. Duarte, e não existia em 1431, em
que ainda vivia el-Rei D. João I.
2.° Pôde notar-se também a frase « para hirem ao des-
cobrimento de terras além do cabo de Finis-terrae y) , na
qual parece suppor-se, que o cabo mais septemtrional da
Galliza era o ponto geogi^afico d'onde partião os navios
Portuguezes para os descobrimentos: e se o escriptor
confundio o dito cabo com o de Sagres, he negligencia,
ou inadvertência pouco desculpável.
3.° Pôde notar-se que as ilhas dos Açores não forão
todas descobertas em 1431, ou 1432, mas sim successi-
vamente em diversos tempos, nem íicão a 500 léguas do
cabo de Finis-terrae, de qualquer modo que se contem
as léguas, ác, d-c. (16).
Escusado parece lembrar aqui, que el-Rei D. Duarte em 1433 fez
mercê das ilhas ao Infante D. Henrique, de quem passarão a seu
filho adoptivo o Infante D. Fernando. Em virtude desta doação os
Infantes he que nomeavão os donatários. Esta nomeação esteve na
Infanta D. Beatriz como tutora de seu filho menor D. Diogo, por
fallecimento do Infante D. Fernando. Por morte de D. Diogo vierão
as ilhas a D. Manoel seu irmão, e este vindo a ser Rei, as unio á
Coroa, e fez passar novas Cartas aos donatários, como tudo se colhe
da sentença acima dita.
(IG) Em ^larço de liíiO fez o Infante D. Henrique doação da Wia
de Jesii-Cliristo. tprcciru dox Arorfs. a Jaconic de Bruges, scii xer-
vidor, natural do Condado de Flandres, a qual se não sabia ter sido
povoada, e ao presente estava erma e inhainlada, ôir.. (Vej. Cordeiro,
ílutoria Inaulnva, png. 2'i-3.)
iS4
Aniio de 1453
A cslatua equestre da ilha do Corvo
Imprimiu-se lia pouco temi)0 em Lisboa um follieto de
14 paginas em 12, com este titulo: Resumo de observa-
ções geológicas feitas em huma viagem ás ilhas da Ma-
deira^ Porto Santo, e Arores nos ânuos de 1835 e 1836,
pelo conde Vargas de Bedemar, Camarista de el-Rei de
Dinamarca, Director do IMuseu Real de Historia Natural,
e Sócio da Academia Real das Sciencias em Copenhagen.
Lisboa, 1837: na impressão de Galhardo e Irmãos.
Logo no principio desta pequena obrinha, diz o auctor:
«... A tradição, a credulidade, e o gosto das maravi-
lhas, apoiados [)ela dilíiculdade que ha em chegar a estas
ilhas em todos os tempos, e na communicação entre ellas,
tinhão envolvido a sua hisloria, e a natureza da sua cori-
síituição, em hiun véo tecido de fados singulares, que
occupárão por muito tempo a imaginação dos sábios, em
consequência da falta de observações locaes, que submi-
nistrassem hmna informação completa e decisiva.
«A presente viagem, abrangendo o exame de todas as
ilhas, sem excepção, contribuio para fazer desapparecer
essas illusões. Ella sérvio para verificar que lie huma
pura f/uimera a estatua equestre, que se dizia ea-istir
rni ilha do Corvo com a mão estendida para o lado da
America yy, de.
Postoqueao ler este folheto se nos offerecêrão natui-al-
mente algumas reflexões sobre o seu principal objecto,
e sobre a nimia brevidade, com que o escriptor trata hum
assumpto tão importante, abstemo-nos comtudo de as
produzir aqui, e deixámos aos sábios geólogos o exame
das matérias que são da sua competência, e de que nós
não podemos ser juizes.
Abstemo-nos também de interpellar o sábio escriptor
185
para que nos diga (juo fados singulares, que ilhisões ío-
rão essas que por tanto tempo occiípárão a imaginação
dos sabias, e cobrirão de tenebroso véo a historia, e a
natureza da constituição daquellas ilhas, por falta de ob-
servações locaes, e de inloruiarões completas e decisivas.
Elle, que teve a felicidade de vencer as difíiculdades que
até agora se oppunhão ao conhecimento geológico das
ilhas, e de romper o véo de (]ue estavão envolvidas, não
deixará por certo de nos dar mais ampla idéa de seus
scientiOcos trabalhos, e de desvanecer completamente as
falsas apprehensões, de que tem estado occupada a ima-
ginação dos sábios.
O nosso objecto no presente escripto he tão somente
rebater a decisão dogmática com que o auctor aííirma,
que pela sua viagem se verificou ser pura quimera a es"
tatua equestre, que se dizia existir na ilha do Corvo, com
a mão estendida para o lado da America.
E primeiramente reílectiremos, que nos não he possí-
vel entender, como o sábio auctor, pelo exame geológico
da ilha do Corvo (que na sua obra se encerra em só oito
linhas de impressão, apag. 13), conseguio, no século xix,
verificar de quimérica a existência de huma estatua, que
ali estava, e foi desmontada e destruída no século xvi,
sem ao menos nos dar algum indicio do caminho que
tomou para chegar a este resultado; a não ser que pre-
venido contra as tradições, credulidades, e gosto das ma-
raviliias, a que se mostra tão avesso, metteo nestas ca-
tegorias, ou em alguma delias, a historia daquella estatua,
e peremptoriamente a julgou quimérica, sem ouvir as
partes interessadas, e sem admittir (ao que parece) appel-
lação, nem aggravo.
Nós não julgámos prudente desprezar de todo as tra-
dições, nem mesmo as credulidades populares; e em-
quanto a maravilhas, achámos tão cheio delias o mundo
fysico. que nos pareceria grave temei'ida(le rejeitar algii-
186
ma, sem nos darmos ao tral)allio de examinar a sua natu-
reza, e as provas com que se acha abonada nas historias.
IMas ainda bem(!) que o nosso caso não he de meras tra-
dições, ou de credulidades populares, que nos seja ne-
cessário defender, nem Ião pouco de cousas de tal modo
maravilhosas, que se tornem por isso de difficil exame e
prova, ou pouco dignas de crença rasoavel. Não ha no
facto de que tratámos contos absurdos de gigantes e
monstros, de thesouros encantados, de mágicos, fadas
e vampiros, de ap[)ariçues ou visões espantosas, emíim
de fabulas inverosímeis, criadas em alguma desordenada,
e delirante fantasia. Trata-se de hum facto natural, visivel,
palpável, puramente histórico, e na historia he que deve-
mos buscar as provas que o abonão, ou o rejeitão.
O Padre António Cordeiro, que tira grande parte das
suas noticias da obra de Gaspar Fructuoso, escriptor do
século XVI, diz que huma das cousas (hgnas de admiração
na ilha do Corvo he, que não se achando nella ao tempo
do seu descobrimento vestígios de gente que a habitasse,
se achou comtudo cm huma alta rocha, que cde sobre o
mar, e em huma giande higem huma faial e grande es-
tatua de pedra, que consta de hum cavallo em osso e de
hum homem vestido, e posto no cavallo, com a mão es-
querda pegando-lhe na coma, e com o braço direito es-
tendido, apontando com o dedo Índice para o poente, e
mais direitamente para o noroeste. (Historia Insulana,
liv. 9.°, cap. 5.-^)
O escriptor geólogo não ignorava a relação de Cordeiro,
e de Fructuoso, pois os cita a ambos sem lhes fazer a
honra de os refutar, sendo que nem elles, nem a relação
do facto merecião este desprezo. Mas não parece ter tido
igual conhecimento do que ao mesmo respeito refere Da-
mião de Góes na Chronica do Príncipe I). João, cap. 9.°
Nós lhe daremos as formaes palavras deste sábio chro-
nista:
I
187
«Destas ilhas (diz ello falanflo dos Açores) a que mais
está ao norte he a do ( lorvo, que terá huma légua de terra :
os mareantes llic ehaiuão Ilha do Marco, porque com ella,
por ler huma serra alia, se demarcão, quando vem deman-
dar qualquer das outras. No cume desta serra, da parte
do noroeste, se achou huma estatua de pedra posta sobre
huma lage, que era hum homem em cima de hum cavallo
em osso, e o homem vestido de huma capa, como bedèm,
sem barrete, com huma mão na coma do cavallo, e o
braço direito estendido, e os dedos da mão encolhidos,
salvo o dedo segundo, a que os latinos chamão index,
com que apontava contra o ponente. Esta imagem, que
toda sabia mocissa da mesma lage, mandou el-Rei D. Ma-
noel tirar pelo natural por hum seu criado debuxador,
que se chamava Duarte Darmas, e depois que viu o de-
buxo, mandou hum homem engenhoso, natural da cidade
do Porto, que andara muito em França e Itália, que fosse
a esta illia, paia com apparelhos que levou, tirar aquella
antigualha; o qual quando de lá tornou disse a el-Rei,
que a achara desfeita de huma tormenta que fizera o in-
verno passado; mas a verdade foi que a quebrarão por
máo azo, e trouxerão pedaços delia, a saber, a cabeça
do homem, e o braço direito com a mão, e huma perna, e
a cabeça do cavallo, e huma mão, que estava dobrada e
levantada, e lium pedaço de huma perna, o que tudo es-
teve na guarda-ronpa de el-Rei alguns dias; mas o que
se depois fez destas cousas, ou onde se pozerão, eu o não
pude saber.»
Temos pois a favor da existência desta antigualha o
testemunho de hum escriptor tão douto, tão pouco cré-
dulo, e tão judicioso, como sabemos que era Damião de
Góes, e o moslrão as suas obias; de juim escriptor que
não se contenta com repetir o que porventura terião crido
outros antes delle, mas o atlesla e confirma com fados
positivos e públicos, acontecidos no seu tempo, citando
488
possnns doterniinadas, mandadas por el-Rei D. Manoel
para debuxarem, e depois para desmontarem a estatua,
e a trazerem a Portugal, referindo o successo destas di-
ligencias, notando os fragmentos da estatua que vierão
ao reino, e finalmente indicando o lugar em que se guar-
darão e estiverão depositados, isto he, a guarda-rotipa
de el-Rei, da qual era encarregado naquelle tempo Fru-
ctuoso de Góes, irmão do próprio clironista.
E não pára só nisto a miudeza e exacção histórica de
Damião de Góes, senão que nos dá noticia do letreiro en-
talhado na rocha, abaixo do lugar em que estivera col-
locada a estatua; aponta a pessoa que o mandou exami-
nar e copiar, o anno em que isto se fez, e o pouco fructo
que resultou desta investigação; passando ainda depois
a expender a sua opinião e juizo conjectural acerca da
gente que em tempos antigos poderia ter aportado á ilha
do Corvo, e deixado nella aquella memoria; e lembrando
por ultimo, que bem se poderia acaso tirar a limpo al-
guma boa conjectura a tal respeito, se á ilha fossem, ou
se mandassem pessoas instruídas nas Hnguas da Norue-
ga, Gothia, Suécia ou Islândia, donde elle julga verosí-
mil, que tivessem vindo os auctores de tão notável mo-
numento.
Á vista de tudo isto quereríamos nós agora perguntar
ao ilouto geólogo, se com eíTeito ainda julga verificada dr
pura quimera a estatua equestre da ilha do Corvo; e no
caso que elle insistisse na sua opinião, lhe pediríamos
muito de mercê, que nos dissesse os fundamentos que
tinha, ou tivera, para assim tão ligeiramente a adoptar,
e tão decisivamente a dar por certa.
Elle nem ao menos pôde allegar a seu favor alguma
presumida inverosimilhança do facto, fundada na sua sin-
gularidade ou raridade.
Já Góes parece ter querido occorrer de algum modo a
huma semelhante lembrança, quando, para mostrar a pos-
189
sibilidade de ser aijiieila memoria obra da gente do norle,
reflecte e prova, que todas as nações daquellas partes
costnmavão fazer entalhar, e esculpir os seus feitos, acon-
tecimentos e façanhas em rochas de pedra viva, para mór
lembrança e perpetuidade dos casos que lhe acontecião,
como iiaqueUas provindas todas (diz o chronista) hoje
cm dia se vê, e achão em muitas partes delias imagens
e historias entalhadas, abertas, esculpidas, e escriptas
em rochedos, e outras pedras altas, e de maravilhosa
grandeza.
E isto que o chronista escrevia, ha perto de tresentos
annos, receberia hoje muito maior luz das indagações,
viagens, trabalhos, e escriptos de tantos sábios, e de tan-
tas sociedades litterarias, que nos tem dado, e estão cada
dia dando a conhecer varias riquezas da antiguidade de
todas as partes do mundo, e os admiráveis monumentos,
que a industria e o trabalho humano por cilas espalhou
desde os mais remotos tempos. De maneira que seria
hoje huma bem miserável e bem insensata preoccupação
suppor que as obrais das artes somente fossem conheci-
das e praticadas pelas nações e povos da índia, do Egypto,
da Phenicia, da Grécia, ou de Roma, e totalmente desco-
nhecidas ou estranhas ás nações, que nós chamamos bar-
baras, quando a historia moderna tem desvanecido esta
mesquinha idéa, publicando collecções copiosas dos mo-
numentos archeologicos de todas as idades, e de todos
os povos.
Esperamos pois que o nosso auctor nos deixe na posse
pacifica desta antigualha, que nenhuma relação tem com
a constituição geológica daquclla ilha; e que se limite a
empregar os seus abalisados talentos no verdadeiro ol»-
jecto, (pie ali o conduzio, e que por cei'to devêia mere-
cer-lhe mais anqilo desenvolvimento.
NOTA SOBRE O DESCOBRIMENTO DO CONGO
Annos de 1484 e 1485
Ví<i{]em de Mariím Uehaini (ou de Bolieuiía)
com Diogo Cam
Esta viagem he huraa das que se attribuem a Martim
Behaim (ou df Bohemia, como escreve Barros), e se diz
notada no famoso Globo de Nuremberg. As palavras do
Globo sã(i estas:
«Em 1484 João II fez armar duas caravelas, o mandou
navegar para o sul. Sahimos para a ilha da Madeira, e
tendo dobrado as ilhas Fortunadas e as Canárias, che-
gámos a Gambia, e depois passámos a Farfar, distante
do reino 1:200 léguas, ou milhas. Mais longe está outro
paiz, aonde achámos a casca da canella; e tendo^nos as-
sim afastado 2:300 léguas, voltámos, e no decimo nono
mez chegámos ao reino. »
Antes de entrarmos na analVse desta nota, parece-nos
digno de reflexão, que nenhum dos escriptores Portugue-
zes, que tratarão de nossos descobrimentos: que falarão
da viagem de Diogo Cam ao Gongo; que nomearão a ou-
tros respeitos Martim Behaim; e que não occultárão a
parte que elle teve com outros malhematicos Portugue-
zes no aperfeiçoamento do astrolábio; que nenhum delles,
digo, falasse da sua viagem ao Congo com Diogo Cam,
191
nem lhe allribiiisse influxo algum no descobrimento do
rio Zaire, e do reino do Congo por este illustrc Capitão.
Feita esta breve, e genérica reflexão, vamos ao exame
da nota.
« Sahimos (diz) para a ilha da Madeira, e tendo dobrado
as ilhas Fortunados c as Canárias», d-c.
Não parecem dictadas por lium tão hábil cosmógrafo,
e viajante maritimo estas palavras: porquanto, se elle jul-
gava as Canárias idênticas com as Fortunadas, como
muitos julgão, não devia nomeal-as como diversas, di-
zendo (ias Fortunadas e as Canárias». E se julgava que
as antigas Fortunadas erão as de Cabo Verde, nesse caso
devia nomear primeiro as Canárias, e depois as Fortu-
nadas, segundo a ordem da sua posição geográfica, que
he a que seguem os escriptores geógrafos em suas nar-
rações, e descripções.
« Chegámos (continua a nota) a Gambia, e depois passá-
mos a Furfm\ distante do reino 1:200 léguas, ou mi-
lhas.»
Não sabemos que, paiz he este de Furfur, que o es-
criptor quiz aqui denotar: mas ainda menos entendemos
que calculo elle seguio para marcar a distancia, em que
se achava de Portugal.
Se as 1:200 léguas se entendem de 20, ou de 18 ao
gráo, suppõe GO, ou mais gráos de distancia de Lisboa,
o que vai dar em 22° meridionaes, aonde Diogo Cam pôz
o ultimo padrão, e não fica lugar para o outro paiz ainda
muito mais longe, de que logo fala, e que suppõe a
2:300 léguas de Portugal.
Se aquelle numci^o he de milhas, vem a ser a distancia
do reino de oOO, ou 400 léguas (a 4 ou 3 milhas por lé-
gua), e então diremos que o paiz de Furfur eslava pouco
mais ou menos na ali ura de Cal)o Verde, ou (juamioniiiilo
na de Scri'a fiCôa, sisudo (|ue a nola parece su[)[)or os na-
veiíanles muito mais lon'íe.
11)2
Finalmente se o numero l:iOO exprime milhas, que
também se chamão léguas de Allemanha, de 15 ao grão,
vem a dar-nos em resultado para a distancia de Lis-
boa 80", que nos porião muito além do cabo da Boa Es-
perança para o sul !
« Deste Furfur, continua a nota a dizer, que forão a
outro paiz mais longe, aonde acharão a casca da canella,
e .que ficava afastado do reino 2:300 léguas. »
Aqui torna o calculo a refutar a nota, ou a pôl-a em
grande confusão e duvida, como he fíicil mostrar pelo que
já deixámos dito: e acresce de mais, que a casca da ca-
nclla, que o escriptor diz terem achado naquelle paiz, pa-
rece que se não acha na costa occidental de Africa, e de
certo nenhuma menção fizerão delia os nossos mais an-
tigos escriptores, que alguma cousa disserão das plantas
daquelles paizes.
Pôde ainda notar-se aqui, que sendo Martim Behaim
bom mathematico, cosmógrafo, e navegador, não desi-
gnasse com alguma especificação de nomes, posições, e
distancias os lugares, rios, c cabos que tocou, ou desco-
brio, nem os gi-áos em que estavãí» arrumados, nem o
lançamento e direcção das costas, á-c, contentando-se
com dizer que chegou a 1:200 léguas, ou milhas, e de-
pois a 2:300 de distancia do reino, o que he summamcnte
vago, tanto [)ela differença que ha de léguas a militas, c
pela variedade com que os differentes povos da Europa
determinão a longura destas medidas itinei'ai'ins; como
poi"que a própria distancia de dous pontos geográficos,
cerbigralia, de Lisboa a Cabo Verde, pôde ser mui varia,
se se designar por gráos, ou pelos rodeios da navegação
junto ás costas, A-c.
NOTA SOBEE O BE8C0BK1MENT0 DA AMKRICA,
E 1)0 ESTREITO DE MAGALHÃES,
ATTRIBUIDOS A MARTIM BEHAIM
Annos de 1493 a 1519
Também se tem attribuido a Martim Behaim o desco-
brimento da America, e do Estreito, a que depois se deo
a denominação de Magalhães: chegando alguns dos seus
panegyristas a dizer que Martim penetrara até áquelle
continente.
Já o Sr. Trigoso 'refutou esta impostura, notando que
o Globo de Nurcmberg não traz designada a America, nem
parle alguma da sua costa, e que o celebre Sipango lie
o paiz mais avançado para leste, que abi vem desenhado.
Pôde reílectir-se mais, que lendo-se na inscripção da
orla do globo, que tudo fora extrabido dos livros de Pto-
lomeu, Plinio, Estrabão, e Marco Paulo, não se podia la-
zoavelmente esperar que o globo indicasse senão as terras
conhecidas destes geógrafos. E i)OStoquc abi se diz tam-
bém d conforme os descobrimentos, e apontamentos de
Behamy>, não sabemos, nem se nos diz, que descobri-
mentos estes forão; nem o da America era tão insigni-
ficante, que não merecesse especifica menção, e que ao
menos se traçasse no globo algum sigiial do seu lança-
mento, e posição geográfica.
TOMO V 13
194
Acresce contra estes presumidos descobrimentos de
Betiaim o profundo silencio de todos os nossos escripto-
res, e ainda o do próprio Behaim, que certamente nem
havia de querer encobrir hum facto, que lhe dava tanta
honra, nem havia de consentir que outrem lhe roubasse
a prioridade e preferencia.
O descobrimento de Colombo, sabido na Europa em
1493, quando elle voltou da primeira viagem, excitou a
admiração geral, como era de esperar.
Quando Cabral em 1500 achou o continente da Ame-
rica meridional, mandou immediatamente hum dos na-
vios da sua frota a Lisboa participando a el-Hei huma
cousa tão nova e desconhecida.
A tudo isto ficaria Behaim em silencio, sem vindicar a
prioridade dos seus descobrimentos, e deixando levar a
outros a gloria que só a elle competia, ou reservando-se
para hir consignal-a no seu Globo em Allemanha, aonde
só podia ser vista pelos seus compatriotas?
Como he pois possível, que se Behaim tivesse tido tão
rara felicidade antes dosdous navegadores Colombo, e Ca-
bral, guardasse hum tão estranho silencio, até no mesmo
globo, aonde nada ha que nos indique a America, e ainda
menos o Estreito?
Acrescentão os panegyristas de Behaim: \°, que em
1493 estava Martim em Lisboa; 2.", que pouco depois es-
tava no Fayal; 3.°, que d'ahi o mandara chamar el-Rei
D. João II pai'a intervir na pretenção ou negociação que
tinha com seu primo o Imperador Maximiliano, a fim de
fazer passar o sceptro de Portugal a seu filho D. Jorge;
4.", que foi varias vezes aprisionado por corsários, e
que entretanto morreo el-Rei, que já tinha passado or-
dens para que Martim se recolhesse a Lisboa, á-c, e que
desde então cessarão as suas peregrinações, e viveo no
Fayal, A-c.
El-Rei D. João II morreo em Outubro de 1495. Con-
195
sequentemente dado que a estada de Martim em Lisboa
fosse no principio de 1493, deve arranjar-se em pouco
mais de trinta mezes a sua hida para o Fayal, a sua volta
a Lisboa a chamamento de el-Rei, a viagem a Allemanha,
e os vários aprismmmentos de corsários, d-c. O que nos
parece muita obra para tão pouco tempo !
Também nos custa muito a crer, que el-Rei D. João II,
Príncipe tão cheio de prudência e circumspecção, que ti-
nha particular amizade com o Imperador seu primo, e
que tinha (como consta da sua historia) tanto no reino,
como em varias partes da Europa homens da sua maior
confidencia, e tão hábeis como elle os sabia escolher, cha-
masse do Fayal hum estrangeiro, provavelmente estranho
ás negociações politicas, para o enviar a huma das mais
dehcadas, que el-Rei podia tentar.
Seja-nos permittido (ainda que alheio pareça do as-
sumpto) dizer aqui alguma cousa acerca desta pretendida
negociação de el-Rei com o Imperador, que sempre nos
tem parecido duvidosa.
Que pretendia el-Rei D. João II do Imperador Maximi-
liano seu primo? Dizem que possuído el-Rei do pensa-
mento de fazer seu filho bastardo, D. Jorge, Rei de Por-
tugal, empenhava o Imperador para que da sua parte
cedesse dos direitos que podia ter a este reino.
Sempre (tornamos a dizer) nos pareceo duvidosa esta
pretenção, não obstante fazerem delia menção alguns es-
criptores Portuguezes :
I." Porque he diíficii acreditar, que o grande juizo de
el-Rei D. João II (reconliecido e confessado pelos seus ini-
migos) não avaliasse a diííicuklade, que encontraria em
seu primo, o Imperador, para fazer cessão de hum reino
tão bello, e naqueile lem])0 tão rico, tão afíunado, e tão
florente, se julgasse ter a elle algum direito.
2.° E ainda mais principalmente, porque el-Rei, com
essa pretendida cessão não fazia melhor a sua causa, ou
iOf)
a de seu filho. O Imperador Maximiliano era primo de
el-Rei; mas o Duque de Beja D. Manoel também o era, e
estava em melhor condição, porque vinha por linha mas-
cuhna, e o Imperador por feminina, que he inquestiona-
velmente menos nobre, e secundaria nas successões. Por
onde, caducando a linha da primogenitura de D. Affonso V
por morte do filho único legitimo de el-Rei D. João II,
naturalmente se devia hir buscar a segunda linha na des-
cendência do Infante D. Fernando, irmão de D. AíTonso V,
e só extincta esta he que podia passar o reino á terceira,
da Senhora D. Leonor, cazada com Frederico III, de quem
vinha Maximiliano.
Isto se faz mais palpável pela seguinte taboa:
D. João I
1). Duarte D. Isabel, Duqueza
-" — •—— — - -^ jg Borsouha
D. Affonso V D. Fernando D. Leonor ,'
III
I I ' Carlos, o Atrevido
1). João II 1). Manoel Maximiliano ,
' Maria, herdeira, ca-
^- •'°'"f zada com Maxi-
(bastardo) ,j^^^
Aqui se vêem três irmãos, filhos de D. Duarte, e por
consequência em igual grão ; mas dous varões, e huma
fêmea.
E se vêem os filhos destes três irmãos, primos huns
dos outros, e consequentemente também em igual gráo;
mas os dous primeiros vindos por linha varonil, e o ter-
ceiro por linha feminina.
A Imperatriz Maria, mulher do Imperador, não podia
entrar á competência, porque estava em gráo mais re-
moto: era prima segunda.
Logo D. Manoel preferia indiihitavelmente a Maximi-
liano. E isto he tanto verdade, que o próprio Rei D. João II
em seu testamento declarou por herdeiro do reino a D. Ma-
l'J7
noel sen primo, sem fíizer menção alj^uma (l(j Jmpeiadoí-;
e em Portugal não havia outra opinião, senão que D. Ma-
noel era o legitimo successor ao llirono.
Os andores da Historia Universal dizem que D. Manoel
subio ao throno em boa paz, não obstante haver outros
pretendentes d coroa: mas não nos dizem quem erão estes
pretendentes, e nós completamente o ignoramos.
Falão sim de liiim deUes, que era Maximiliano, e di-
zem que estando em igual grão com D. Manoel, preten-
dia a preferencia por mais velho. Também isto nos pa-
rece pouco crível; porque o Imperador sabia mui bem
que estava em igual grão, mas em differente linha, e
menos nobre. Nem consta da historia que houvesse da
parte delle reclamação alguma, nem demonstração de ser
oppoente ao throno, como os citados auctores referem
com a aucloridade de Faria e Sousa (17).
O que nós temos por certo, he que depois da morte do
grande Rei D. João II alguns escriptores, que querião li-
songear a el-Rei D. Manoel, e a Caza de Bragança, assa-
carão áquelle illustre Príncipe alguns pensamentos que
elle acaso não teria; despojárão-no da gloría de alguns
•projectos, que sendo seus, somente se executarão no se-
guinte reinado; e pintarão com cores mais carregadas al-
gumas acções suas, que parecerão, ou parecião menos
justas.
Como (juer que fosse, e voltando ao nosso ponto: te-
mos por cousa inverosímil que Martim Behaim fosse es-
colhido para aquella missão (se a houve), e julgamos ser
esta huma das imiiosturas que se introduzíi'ão na nota do
(Hoíio lie Xineuiber;/, acaso |)oi'(iue Martim julgou (|ue lá
(17) l''r. Fr;mi-isc(>|{raii(lâo. uoDisrnrsofirdtulotoriosobvrA aciila-
luação de el-lici I). João IV, paj^. 77, diz (iiic Maxiiiiiliaiio, escrevendo
a el-liei D. 1'ei'iiuiido, o Catliollri), em 141)8, lhe dizia «Que cl tenta
por hnrna In succession dei //'// I). Manoel, po)-(jue descendia de Va-
rones», e cila Ziirita.
i98
no centro da Allemanha podia alardear não só de grande
descobridor, mas também de atilado politico, e de gosar
a intima confiança de el-Rei de Portugal.
Deixando porém já o facto do positivo descobrimento
da America, e do Estreito de Magalhães, diz o Sr. Trigoso
que i(he fora de toda a duvida, que Marfim estava per-
suadido, que podião existir novas terras naquella parte
do globo D .
Nós atrevemo-nos a negai- esta mesma possibilidade,
não absoluta e metafysicamente, mas sim com relação
aos conhecimentos e meios que então havia, explicando
primeiro o que querem dizer aquellas frases « novas ter-
ras y>, e 1 naquella parte do globo )).
Se por novas terras se entendem ieiias até então a nós
desconhecidas, fácil he de crer que Martim estivesse per-
suadido da sua existência, assim como estava Colombo, e
eslarião outros muitos. Bastava lembiarem-se que o globo
era redondo; que havia hum extensíssimo continente das
terras da Ásia, e que navegando da Eui'opa para o occi-
dento, se havião de encontrar estas terras, ou mais perto
ou mais longe.
Se porém por novas terras se querem entender terras
de hum novo continente, além dos já conhecidos, duvidá-
mos muito que Martim se lembiasse sequer de tal possi-
bihdade.
Embora Aristóteles, Plinio, e outros antigos falassem
da redondeza da teria, da existência de anlipodas, A-c. ;
embora se supponlia que estas verdades erão coiiliecidas,
tidas por certas, e não duvidadas naqu(Mle tempo.
A única cousa que d'aqui se podia deduzir, he ([ue na-
vegando-se ao occidente, se havião de achar emlim as
terras e costas orientaes da Ásia; mas wTxoi novas terras,
isto he, lium novo continente, huma nova parte do mundo
totalmente diversa, e separada d;i Ásia. da Africa, e da
Europa, como he a America.
199
Colombo mesmo não teve idéa alguma deste novo con-
tinente ainda depois de descobrir as Antilhas.
O moderníssimo escriptor Washington Irving, que es-
creveo a historia de Colombo, e das suas viagens (em
1828), nota que forão precisamente dous erros deste na-
vegador que fizerão descobrir o novo mundo.
1,° Que este grande homem queria chegar á Ásia pelo
mar occidental, ou pelo Oceano Atlântico: para o que ti-
nha examinado os auctores antigos, e até a Biblia e os
Padres da Igreja, com o fim de achar a confirmação desta
idéa dominante, que nunca de todo se desvaneceo: de
maneira que tudo quanto se lhe referia da existência de
alguma ilha ou terra a oeste do antigo mundo, o appli-
cava elle á Ásia, não presumindo jamais a existência de
huma terra intermediaria, da qual parece que nem chegou
a convencer-se, ainda depois de a ter descoberto e tocado.
2.° Erro. Julgava Colombo que a terra era muito mais
pequena do que na verdade he, e presumia que bastarião
alguns dias de navegação pelo Oceano para chegar ás ilhas,
que esta vão a leste, da Ásia.
E não se diga que o escriptor que citámos, e seguimos,
falasse deste modo sem fundamento, ou imputasse a Co-
lombo erros que elle não teve. O escriptor vio documen-
tos originaes, e entre elles as cartas de Colombo aos Reis
de Castella; e delles coUigio, e disse:
1." Que forão aquellas falsas idéas as que Colombo in-
culcou sempre a Fernando e f sabei para os determinar a
emprender a expedição a oeste.
2.° Que Colombo estava tão persuadido de tocar na
Ásia, que se encarregou de huma carta de Fernando para
o Gran-Kan dos Tártaros, esperando dentro de pouco
tempo saiidal-o em pessoa da parte de el-Rei Calholico.
3." Que sempre em suas cartas insiste na idéa de locai-
na Ásia [)elo oeste, e ainda depois de ter descoberto as
Antilhas.
200
4." Que lijclas as vezes que os selvagens encontrados
por Colombo falavão de algum poderoso Soberano, que
íicava mais longe a sul, ou a oeste, imaginava o grande
homem que querião designar o Kan dos Tártaros: e que
falando-lbe de minas de ouro, julgava ser o Ophir, que os
antigos situavão na Ásia. Que os arbustos aromáticos lhe
paredão as arvores da especiaria ; e que a menor seme-
lhança de nomes lhe fazia crer que estava perto do Ca-
thay, ou mesmo do Ganges.
5.° Que Colombo hindo acompanhado de hum inter-
prete, que entendia algumas linguas da Ásia, se admirava
de que os selvagens não entendessem nada do que elle
lhes dizia.
E finalmente, 6.", que nunca Colombo abandonou de
todo esta idéa dominante; e que vendo-se mil vezes en-
ganado na sua expeclaliva, voltava comtudo sempre ás
mesmas idéas, e sempre com ellas entretinha o Rei de
Caslella, de, d-c.
Ora se estas erão as idéas de Colombo depois de tantas
meditações, que diremos das de Behaim? Aonde hiremos
buscar a possibilidade de que elle imaginasse hum couli-
nente novo, e totalmente ignorado?
NOTA SOP,RE A TERRA DE CORTE REAL
NA AMERICA SEPTEMTRTONAL
Anno de 1500
A noticia que damos ao anno 1500, do descobrimento
da Terra de Curte Real pelos Portuguezes irmãos deste
appellido, parece ler sido esquecida de alguns dos nossos
escriptores, e muito mais dos estrangeiros, que não só,
pela maior parte, a não mencionão, mas até tem suppri-
mido em suas cartas geográficas o nome da mesma terra,
fazendo assim escurecer a gloriosa, e perpetua lembrança,
que merecem aquelles illustres aventureiros. Comtudo o
facto vem commemorado na Historia de el-Rei D. Manoel
do elegante e verídico Osório, Bispo de Silves, donde a
tomarão os auctores Inglezes da Historia Universal^ no
com[)endio da Historia de Portugal. Ortelio na sua Taboa
da America demarca a mesma teri'a com o nome de Terra
Corte Realis, que se lhe ficou dando em memoria dos seus
descobridores, e Pinkerton, no Compendio de Geografia
moderna, edição de 1811, reconhece que « No anno lõOO
Corte Real, Capitão Portagnoz, baseou liuma passagem
ao norte, e descobria o Labrador ». E em outro lugar torna
a dizer: « Fsta vasta e.iiensão das costas comprehendidas
202
entre os õ7 e 77" de longiliide oeste de Paris, e entre os 52
e 62" de latitude septemtrional, foi chamada Terra do La-
brador por Corte Real, navegador Portuguez, que a des-
cohrio em 1500 » .
Jeronymo Girava, na sua Cosmografia^, descrevendo a
Terra de Labrador, que diz ser a ultima para o norte,
explica-se nestes termos, que aqui traduzimos em Por-
tuguez:
« Muitos tem hido costear esta terra, primeiramente
Castelhanos, e depois Portuguezes, com o íim de desco-
brirem passagem mais breve para asMolucas; mas nunca
acharão esta passagem, e somente a 60° acharão hum rio,
a que chamarão dos Três Irmãos, do qual não passarão
avante por causa das neves e gelos. . . Gemma Frisio se
engana muito, pensando que este Rio dos Três Irmãos he
hum estreito de mar, por onde os Portuguezes quizerão
passar ás Molucas, denominado Estreito Septemlrional.
Sabe-se o contrario i)elas navegações dos modernos Por-
tuguezes, e Castelhanos. »
Pondo de pai1e algumas reflexões, que se podião fazer
sobre este lugar do Girava, limitâmo-nos a notar, pelo
que diz respeito ao nosso assumpto, que nelle se men-
cionão as viagens que os Portuguezes antigos Unhão feito,
e que os modernos continuavão a fazer áquellas paragens;
e que o nome dos três irmãos, que se ficou dando áquelle
rio, parece allusivo aos três irmãos Cortes Reaes, de que
fazemos menção no nosso índice.
O mesmo Girava acrescenta ainda, lalando da terra de
Bacalhaos:
« Tem esta terra algimias ilhas visinhas, que pela maior
parte são senhoreadas dos Francezes, como são as ilhas
Corte Real, Baye, Duxchasteaux, Cabo de Spoir», á-c.
Por onde vemos que os illustres aventureiros Por-
tuguezes não só descobrirão a Terra de Corte Real,
que ora chamão de Labrador; mas também algumas
203
das ilhas adjacentes á Terra de Bacalhaos, que da pes-
caria, que ali se faz, tomou o nome: o que auctorisa a
conjectura que fizemos no nosso índice ao referido anno
de 1500 (18).
Confirmão-se estas noticias com o que escreve o Doutor
Francisco Lopes de Gomara na sua Historia Geral das Ín-
dias, de que vem extractados alguns lugares na Cosmo-
grafia de Pedro Aplano, impressa em 1575. Descrevendo
pois o escriptor as costas da America Septemlrional, diz
assim:
« De Cabo Delgado, que cahe em 54°, segue a costa du-
zentas léguas por direito de poente, até hum grande rio,
chamado de S. Lourenço, que alguns tem por braço de
mar, e tem sido navegado mais de duzentas léguas agoa
acima: pelo que muitos o chamarão o Estreito dos Três
Irmãos. Aqui se forma hum golfo, como quadrado, e boja
de S. Lourenço até á ponta de Bacolhaos, muito mais de
duzentas léguas. Entre esta ponta e Cabo Delgado estão
muitas ilhas bem povoadas, que chamão Cortes Reales,
as quaes cerrão, e encobrem o golfo quadrado, lugar mui
notável nesta costa, tanto para baliza, como para ancora-
douro^), á-c.
Apontaremos ainda as palavras do celebre geógrafo
Flamengo do século xvn Pedro Bertio, o qual descre-
vendo o périplo Americano diz, que nas regiões mais se-
(18) Hum escriptor I^ortugucz diz, que os moradores da villa (hoje
cidade) de Aveiro tinhão pelos annos iSíiO mais de cento e cincoenta
embarcações suas próprias empregadas no commercio; e acrescenta,
(juc Ibrão elles o.s descobridores da Terra Nova, e pescaria dos haca-
Ihaos, que por incúria (diz) larijárão aos luglezes. (Descripção de
Porluijal, por António de Oliveira Freire.)
«Por Alvará de 14 de Outubro de 1506 so mandou arrecadar o
dizimo da pescaria do bacalhao pela fazenda. « (Citado por Lacerda
Lobo na Memoria sobre as pescarias Portugnezas, e sua decadência,
entre os da Academia.) Abi diz que João e Sebastião Cnliol, pni e
filtio, descobrirão a ilha da Terra Nova em 1497.
204
ptemtrionaes nos são conhecidos os estreitos de Davis e
de Forbrissers, e que d'alii al6 o Cabo Breton se acha a
Eslotilandia, e a Terra de Corte Beal (19).
«In ora maxime septemtrionali nobis cognita sunt freta
Davis, et Forbrisseri, a quibus ad promontorium Breton
est EstotUandia cum Terra Corte Reali. »
Pelo que tudo se vê, que a Terra de Corte Real (ou
de Labrador), o rio de S. Lourenço, ou dos Três Ir-
mãos, e algumas ilhas adjacentes á Terra Nova, e cha-
madas lambem Cortes Reaes, forão descobertas, e visi-
tadas pelos Portuguezes irmãos do mesmo appellido, no
anno de 1500, e seguintes, e que a historia e a geografia
devem conservar ou restituir aos nobres navegadores Por-
(19) Acho no Apparato á Historia Genealo(jira da Caza Real Por-
ttigueza, num. 89 : « Que Vasque Annes Côrle Real fôra Capitão do-
natário das capitanias da ilha Terceira, da parte do Angra, da de
S. Jorge, e da Terra ISova tios Cortes Reaes. Sua filha herdeira,
D. Margarida de Corte Real, cazou com D. Christovão de Moura,
primeiro Conde e Marquez de Castello Rodrigo, bem conhecido na
nossa historia. Vasques Eannes parece ter sido o irmão mais velho
dos Cortes Reaes, que forão ao descobrimento, porque acliámos que
assim se chamava, e que era Vedor da Caza Real, do Conselho de
el-Rei, Capitão das Terceiras (da Terceira), e Alcaide Mór de Ta-
vira». A este daria el-Rei o titulo de Capitão da Terra JSova dos
Cortes Reaes em memoria do descobrimento, e como para conser-
vação do direito, que por elle podião pretender.
« D. Christovão de Moura, que foi Conde e depois Marquez de Cas-
tello Rodrigo, cazou com D. Margarida Corte Real, Senhora herdeira
de vários morgados, e das capitanias de algumas das ilhas Terceiras,
e da Terra Nova de Corte Real. D. Francisco de Moura Corte Real,
terceiro Marquez de Castello Rodrigo, segundo Conde de Lumiarcs,
também foi Capitão General de algumas das Terceiras, e SenJwr da
Terra Nova. » (Moreri, art. Castel Rodrigo.)
« Ortelio denota desde 43 até GO" a ilha Redonda, o Cabo Razo, a
ilha da Aréa, o Cabo da Boavista, a ilha dos Demónios, a ilha dos
Crimes, e na boca da bahia de Hudson a ilha de Caranielo, que Jie
certamente do Caramelo, tudo nomes Portuguezes, e lambem de-
nota a Terra de Corte Real. »
20o
tuguezes o nome, que naquellas terras e ilhas lhes ficou,
e que certamente não vale menos que os de ilha Bourbon,
ilha Mauricia, bahia Bonaparte, e muitos outros seme-
lhantes, que com muito menos fundamento, e talvez por
mera e baixa lisonja se tem imposto a outros paizes.
NOTA SOBRE AS ILHAS LEQUIAS
OU DE LIEU-KIEU
Anno de 1516
«A este e nordeste da ilha Formosa (diz Mr. la Croix)
estão as ilhas de Lieou-Kieou, cujo Rei he tributário da
China. Estas ilhas são hum novo descobrimento oriental,
de que somos devedores ao Padre Gaubil, Jesuíta. Póde-
se ver a circumstanciada descripção delias na carta que o
dito Padre escreveo a 3 de Novembro de 1752 ao Padre
Berthier, seu confrade», ác. (20).
Só por huma bem grosseira equivocação, ou indiscul-
pavel inadvertência, he que Mr. la Croix podia escrever
as palavras, que deixámos copiadas, e nas quaes parece
não ter tido outro fim mais que dar a humFrancez a glo-
ria do descobrimento das Lequias.
As ilhas, de que elle fala, e que denomina de Lieoii-
Kieou, são indubitavelmente, tanto pela sua situação
geográfica, como pela semelhança material do nome, as
mesmas, que os Portuguezes chamão Lequias, ou ilhas
(20) Compendio de Geografia moderna, edição de 1777,
207
do Lequio, ou Leqiieio, como reconhece Pinkerton, e ou-
tros geógrafos (21).
O Livro de Duarte Barbosa, que foi escriplo duzentos
trinta e seis annos antes do Padre Gaubil, no artigo ul-
timo, já trata das Lequeos (22), dizendo que stío defronte
da terra da Cliina ao mar. E postoqae confessa que ainda
então não liavia muita informação das gentes que as lia-
bitavão, por não terem vindo a Malaca, depois que esta
cidade fora tomada pelos nossos; comtudo mostra que já
o nome e a situação erão conhecidos, e dá-nos a con-
jecturar, que assim como antes da conquista de Malaca
vinhão a esta cidade, também depois da conquista não
tardarião muito a continual-a, como fizerão todas as na-
ções, que por causa do commercio frequentavão o seu
porto.
Nas mesmas ilhas esteve no anno de 1544 (isto he, du-
zentos e oito annos antes do Padre Gaubil), Fernam Men-
des Pinto, que as descreve com alguma individuação nos
cap. 438. '^, e 143." das suas Peregrinações, aonde nos in-
forma não só da situação da principal Lequia, que elle
denota em 29° de latitude septemtrional, mas também
das suas principaes producções; e até inculca a facili-
dade com que os Portuguezes poderião apossar-se delias,
e as grandes vantagens que tirarião das ricas minas de
cobre, que ahi se achão.
No mesmo lugar nos diz também, que em 1556 chegara
a Malaca Pedro Gomes de Almeida, com cartas de Nauta-
(21) O nome destas illuis aclui-se nos escriptores com variedades
accidentaes. A principal lie algumas vezes denominada Lekco, e o
grupo todo, ora se chama de Lieovtcheov, ora de Lieou-Tcheou, ora
de Likeujo, Lieut-cheux, &c.
('J2) O Livro de Duarte Bítrlrnsa foi acabado de escrever em lol6.
Vem na Cullecção de 7ioticins para a historia e çicografia das nações
ultramarinas, publicada pela Academia Ucal das Sciencias de Lis-
boa, tom. 2.°, num. 7.
208
quini, Príncipe de Tanixuma, dirigidas a el-Rei D. João III,
pedindo-Ihe o auxilio de 500 Portuguezes para conquistar
a ilha Lequia, e offerecendo-lhe em reconhecimento o tri-
buto annual de 5:000 quintaes de cobre, e 1 :000 de latão :
e acrescenta, que este Portuguez, vindo para a Europa na
náo em que naufragou Manoel de Sousa de Sepúlveda, se
perdera com elle no cabo da Boa Esperança, ficando as-
sim inutilisada a sua commissão (23).
Das mesmas ilhas falou João de Barros nas suas Dé-
cadas, impressas duzentos annos antes do Padre Gaubil,
quando notou que antes das emprezas dos Portuguezes,
e de suas primeiras expedições na Ásia, era trazido do
mercado geral de Malaca « o cravo das Mohicas, a noz de
Banda, o sândalo de Timor, a cânfora de Borneo, o ouro
de Samatra, e do Lequeio, e as gommas, perfumes, e ou-
tras preciosas mercadorias da China, do Japão, de Siam,
e de outros muitos reinos daquelle vastíssimo oriente».
As mesmas ilhas forão denotadas pelo Portuguez Luiz
Teixeira no seu Mappa do Japão, impresso em J584
(cento sessenta e oito annos antes do Padre Gaubil), c
copiado por Ortelio a num. 120.
O mesmo Ortelio as denota em outras das suas Taboas
com os nomes de Lequio, ou Lequejo, ou Lcquiho. E nas
breves notas, que escreveo a num. 19, antes da Carta de
Portugal de Fernam Alvares Secco, conclue assim : « Lu-
sitanorum imperium hodie quam latissime patet; nam
ab Herculis columnis usque ad Ghinam, et Lequios, per
(23) A edição de Fernam Mendes Pinto, que temos á mão, he muito
incorrecta. Nós suspeitámos, que hum de seus erros he a data de
1556, a que attribue a commissão de Pedro Gomes de Almeida, por-
quanto o naufrágio de Sepúlveda aconteceo em 1552, como consta
da Relação que delle temos; e se Pedro Gomes vinha na mesma náo,
não podia estar em Malaca para vir á Europa em 1656. Assim, se
não houve lapso de memoria no escriptor, deverá acaso ler-se anno
de 1546, em lugar de 1556.
2()<t
omnes províncias marilimas, insulasque adjacentes, ex-
lenditur » .
Finalmente Fr. Jacinto de Deos no seu Vergel de plan-
tas e flores, escripto pelos annos de I07Í), e impresso em
Lisboa, em 1090, também faz menção das Z-cvy^/as, quando
fala das ilhas adjacentes á China, dizendo: «Tem o reino
da China muitas ilhas adjacentes, como são maior e menor
Lieu-Kieu, Taina, grande enseada que os Portuguezescha-
mão ilha Formosa », ác.
Pelo que tudo se vê que estas ilhas forão conhecidas,
vistas, e até descriptas pelos Portuguezes mais de duzen-
tos annos antes do Padre Gaubil, e que sem erro gravís-
simo se não pôde attribuir a este Padre o novo descobri-
menlo oriental, que lhe attribue Air. laCroix, com prejuízo
dos Portuguezes, e contra os testemunhos, que deixamos
apontados.
TOMO V
NOTA SOBRE A BAHIA E EIO
DE LOURENÇO MARQUES
Anno de 1545
Alguns geógrafos estrangeiros, falando da Bahia da
Alagôa, na cosia orienlal de Africa (24), notão, que he lu-
gar iioje frequentado dos navios Européos, que andão nos
mares do sul á pesca da baleia ; e Mr. Aynès acrescenta,
que he excellente local para hum novo estabelecimento.
Esta aptidão, que na bahia se considera, pôde acaso ter
suscitado o pensamento de hum governo estrangeiro, que
(segundo ouvimos dizer) tem feito algumas tentativas di-
plomáticas para desapossar-nos daquelle posto, que ha
perto de três séculos exclusiva e pacificamente senhoreá-
mos, disputando a origem, e certeza da nossa posse, e
pretendendo porem duvida, ou em esquecimento, o nome
de Lourenço Marques, que primeiro descobrio o rio as-
sim denominado, que vem desaguar na mesma Alagôa,
(24) Pinkertoii, no Compendio de Geografia moderna, edição de
1811, chama a esta bahia, bahia de Delagoa. A cada passo achámos
nos escriptores estrangeiros erros semelhantes, e ás vezes de muito
maior consequência, nascidos da ignorância da hngua Portugueza,
e de quererem aquelles escriptores servir-se dos livros Portuguezes,
som os entenderem.
211
e d'onde se originou a posse e dominio, que ali temos.
Pareceo-nos pois conveniente illustrar esta matéria, e de-
terminar quaes sejão os rios e bahia, que tem o nome de
Lourenço Marques, e que indubitavelmente pertencem
aos domínios de Portugal.
No anno de 1545, quando o grande D. João de Castro
hia governar a índia, escreveo de Moçambique a el-Rei
D. João III, e então lhe dava parte do novo e recente des-
cobrimento de Lourenço Marques, o qual, por consequên-
cia, se deve referir áquelle mesmo anno, ou a hum tempo
anterior pouco remoto. El-Rei lhe respondia no anno se-
guinte de 1546, em carta que possuímos original, e re-
commendava a D. João de Castro, que mandasse prose-
guir naquelle descobrimento, ou pelo mesmo Lourenço
Marques, ou por outrem, se assim o julgasse conve-
niente.
He de crer que o próprio Lourenço Marques fosse o
encarregado de continuar o que havia começado; pois em
differentes escriptores antigos achámos constantemente
nomeados com só o seu nome os rios e bahia, que elle
descobrio e frequentou, ainda sem embargo de haver elle
mesmo dado ao principal rio o nome particular de Santo
Espirito, como logo veremos.
No anno de 1554, vindo Lourenço Marques da índia
com direcção a estes seus rios, fez naufrágio na costa,
antes de nelles entrar, e naquellas ondas ficou sepultado,
como consta dn Relação do naufrágio da náo S. Bento,
que também no niesm<t anno aconteceo naquellas para-
gens, e foi escripla por hum PorUiguez, que do naufiagio
se salvou.
Por esta Relação consta :
1." Que a bahia da Ala<jóa era a própria, aonde vinhão
desagoar ires grandes rios, e entre elles hum que mais
particularmente se chamava de Lourenço Marques.
2.° Que o primeiro destes rios. para a parte do sul, se
chamava mar do Zembe, do nome de hum Cafre, que ahi
dominava. Que o segundo tinha d'antes o nome de rio da
Alagôa, e então se denominava Santo Espirito, ou tam-
bém de Lourenço Marques, que primeiro descobria (diz
o escriptor) o resgate do marfim, que ali veniler. Final-
mente que, o terceiro, e ultimo rio para o norte se cha-
mava do Manhica, por outro Cafre assim chamado, que
ah reinava (25).
Adverte mais o escriptor, que em algumas cartas Por-
tuguezas se achava demarcado o rio do Santo Espirito
com erro, confundindo-o com o da Agoada da Boa Paz,
que ficava mais avante para o norte em altura de 24 V-^"»
sendo que o verdadeiro rio do Santo Espirito, ou de
Lourenço Marques estava em altura de 25 */4°, e entrava
na hahia da Alagôa, como fica dito (20).
(2o) PJnkerton, descrevendo a sua bakia de Dclagoa, somente faz
menção de hum rio, que diz ser hum dos principaes, que nelia en-
ti-ão, e lhe dã o nome de Mafumo: passa depois a tratar mui breve-
mente dos costumes dos povos, que liabitão as suas margens, ])elo
norte e sul, de algumas das pruducções do paiz. de alguns olijectos
do commercio, &c., e nem huma só palavra diz dos outros rios, nem
do do Santo Espirito, que aliás vem demarcado na sua carta, nem
do nome de Lourenço Marques, que não podia deixar de lhe ser co-
nhecido, ao menos pelas Relações Portuguezas, c até pelas preten-
ções do governo Inglez.
(i26) O erro e confusão, que aqui nota o escriptor, observa -se, por
exemplo, na Relação do navfruíiio do galeão S. João, de Manoel de
Sousa de Sepúlveda, que se perdeo no cabo da Boa Esperança em
1552, aonde se diz que o rio de Lourenço Marques he o mesmo da
Agoada da Boa Paz, fundando-se provavelmente o escriptor na
auctoridade de algumas das cartas, em que se havia introduzido
aquelle erro. Este galeão naufragou em 31", e os Portuguezes que
se salvarão, resolverão caminhar por terra até ao rio que descobria
Lourenço Marques, o qual, segundo a sua estimativa, lhes ficava a
180 léguas por costa, para o norte. Moreri parece ter-se guiado por
alguma destas antigas carias erradas, quando diz que a bahia de
Lourenço Marques está a 24" e 4o' austraes, e a 70 léguas do Cabo
das Correntes.
213
Copiaremos aqui as próprias palavras da Relação, por-
que ellas nuctorisão tudo o que deixamos referido, e ii-
lustrão consideravelmente a matéria de que vamos tra-
tando. Diz assim:
«Chegámos á boca da bahia do rio Santo Espirito, que
na carta, que levávamos, estava nomeado por seu nome
antigo de rio da Alagôa, a qual (alagôa) será de 15, ou
20 léguas de comprido, e a lugares pouco menos de largo.
Entra o mar nella por duas bocas, huma da parte do su-
doeste, que não he muito grande, e outra da de noroeste,
que será de 7, ou 8 léguas; e entre huma e outra jaz
huma ilha. que terá 3 léguas em redondo.
Nesta bahia se recolhe agua de três rios assas grandes,
que de muito pelo sertão dentro vem ali acabar, por cada
hum dos quaes entra a maré 10, e 12 léguas, além do
que a bahia alcança.
« O primeiro, para a parte do sul, se chama mar do
Zembe, que divide as terras de hum Rei, assim chamado,
das de outro, que he o Jn/ieca, com quem nós ao depois
estivemos.
«O segundo se chama Santo Espirito, ou de Lourenço
Marques, que primeiro descobrio o resgate do marfim,
que ali vem ter; por cuja causa he frequentada a nave-
gação delle de alguns annos a esta parte, que d'antes
muitos passarão, que ali ninguém foi. Este aparta as ter-
ras do Zembe das de outros dous Senhores, cujos nomes
são o Rumo, e Mena Lobombo.
«O terceiro e ultimo rio, para o norte, se chama do
Manhica, por outro Cafre assim chamado, que ali reina,
com o qual visinhão muitos outros Senhores: e ao longo
deste foi o desbarato de Manoel de Sousa de Se[)ulveda,
aonde elle, e sua mulher, e filhos acabarão (27).
(27) Na llelaçõo do nnnfmfiio da nm Santo Alberto, Cícripta por
João Baptista Lavanlia em i'ò\)7, so descreve esta baliia ^ rios com
214
«E como a caria, por que nos hiamos regendo, cha-
masse erradamente rio do Santo Espirito ao da Agoada
da Boa Paz, que está em 24 * 2°, e avante dest'oulro 18
léguas (postoque este, em cuja foz estávamos, assim pelo
nome, que já disse, da bahia da Alagóa, como pela al-
tura dos 2o * i°, em que jazia nos mosti-asse ser o próprio
de Lourenço Marques, que hiamos desejando); o nome
de Santo Espirito, que claramente estava posto no outro,
nos fez a todos cahir em erro de cuidar que elle era,
onde levávamos propósito de parar, e esperávamos achar
navio. D
Fica pois fora de duvida :
1.° Que a hahia da Alagôa he a pro[>ria bahia de Lou-
renço Marques (28).
2.° Que hum dos três grandes rios, que nella entrâo,
a saber o do meio, he também o próprio rio de Lourenço
alguma pequena differença. « Faz o mar (diz o escriptor) nestas terras
do Inliaca Imma grande bailia de íi) ou 20 léguas de comprido, e
a partes pouco menos de largo: e nella esbocão quatro grandes rios,
pelos quaes entra a maré 10 e 12 léguas. O primeiro, da parte do
sul, se chama Melengana, ou Zembe, que divide as terras de hum
Rei assim chamado, das do Inhaca. O segundo, Ansate, e dos nossos
de Santo Espirito, ou de Lourenço Marques, que primeiro descobrio
nelle o resgate do marfim, de quem tomou a hahia o nome. O tere.eiro.
Fumo, por passar pelas terras de hum Senhor deste nome : e o quarto,
e ultimo do Manhiça, que he da parte do norte. Fica na boca desta
bahia (a qual a lugares tem 14 e lo braças de fundo), junto da sua
ponta austral huma ilha grande de três léguas de circuito, a qual
faz nella duas entradas, huma pela parte do nordeste, de 7 ou 8 lé-
guas de largo, e outra do sul, estreita, e de pouca distancia. Chamão
os nossos a esta ilha do Inhaca, e nella traz o Rei muito gado, pela
abundância do seu pasto. De huma ponta desta ilha faz o mar huma
ilheta, á qual se passa de baixamar com a agua pelo joelho : tem
de altura 2o° e 40', e chamão-lhe hoje dos Portuguezes, pelos muitos
que nella estão enterrados, dos que .se salvarão da náo S. Thomé», &c.
(28) Mr. Aynès a denota na sua carta com este mesmo nome «7?.
de Laurent Marques».
215
Marques, arrumado nas nossas cartas antigas mais exactas
em 25° e 15' de latitude austral (á9).
3." Que este rio era conhecido nas cartas Poriuguezas,
anteriores ao descobrimento de Lourenço Marques, pelo
nome de r.io da Alagòa. Que depois teve o nome Santo
Espirito, imposto pelo descobridor, como nos informa
lium escriptor antigo, dizendo: « /??o da Alagôa, que
agora se chama do Espirito Santo, o qual nome lhe pôz
Lourenço Marques seu descobridor y> (30). E que final-
mente se ficou chamando também 7Ío de Lourenço Mar-
ques. De maneira que rio da Alagôa (nas cartas ante-
riores aos annos 1545), rio do Santo Espirito, e rio de
Lourenço Marques são três nomes do mesmo rio.
(29) Não so deve confundir com este rio o hahia da Atagóa outra
bailia do mesmo nome, notada pelos geógrafos muito mais ao sul, om
quasi 33", e designada por I^inkrrfon ('om a palavra errada "Al()(')a».
(30) Manoel Corrêa, nos Commentarios aos Lusíadas de Camões.
NOTA SOBRE O TIBET
^ Anno de 1624
Tendo notado no nosso índice Chrotiologico ao anno
1624 o moderno descobrimento do Tibet, não podemos
deixar de ler com alguma admiração as palavras de Mr. la
Croix, que na sua Geografia mndrrna, da edição de 1777,
no artigo em que trata da Tartaria independente, falando
do Tibet, diz assim:
«O Tibet he hum grande paiz. que Mr. De Tlsle come-
çou a fazer apparecer nas nossas cartas, e que antes
delle não era conhecido. »
Se este escriptor geógrafo quiz falar precisamente das
Cartas Francezas, não lhe impugnaremos a primeira
parte da sua proposição, pois não temos presente al-
guma daquellas cartas, anterior aos annos de 1699, em
que apparecêrão as primeiras de Mr. De Tlsle. He porém
fora de duvida, que o Tibet era conhecido, notado nas
cartas geográficas, e viajado e explorado muito tempo
antes de Mr. De Tlsle.
1.° Marco Paulo, que fez as suas viagens pelos fins do
século xni, e princípios do século xiv, fala da província
217
do Tibet, notando, que se compunha de oito reinos, e que
produzia ouro, espécies, huma bella raça de cães, e ex-
cellentes falcões (31).
2." Do B. Odorico do Friul, Frade menor, que viajou
ao Oriente nos princípios áo século xiv, consta, que sa-
tiindo em 1314, com licença de seus superiores, a annun-
ciar o Evangelho nas mais remotas regiões da Ásia, em-
barcara no Mar Negro, passara a Trapizonda, á Arménia
Maior, a Tauris, e Sultania, d'onde viera a Ormuz; e que
embarcando-se ahi novamente, visitara o Malabar, o cabo
Comori, as ilhas de Ceilão, e Java, e que finalmente pe-
netrara na China, e no Tibet, aonde achara outros Frades
da sua Ordem, e muitos Christãosrecem-convertidos, vol-
tando em 1330 â Itaha, depois de dezeseis annos de pro-
lixa peregrinação (32).
3.° Gcmma Frisio, nas Addições á Cosmografia de Pe-
dro ApiaiiOy impressas em 1575, na part. 2.% foi. 47,
tratando das províncias e cidades do Oriente, denota os
reinos e cidades da provimia de Mangi, e logo o Tibet,
provinda e cidade.
4.° Ortelio no seu Theatr. Orh. ferrar., impresso em
1612, mais de oitenta annos antes de Mr. De Tlsle, na
taboa 3.^^ da Ásia. demarca o Tibet cidade, e com letras
maiúsculas THIBET, província, ou reino.
Por onde jcá se vê, que o Tibet era conhecido, e apon-
tado nas cartas geográficas, muito antes da época a que
Mr. la Croix attribue esta novidade.
(31) Pinkerton. Geografia moderna.
Ratnusio, no vol. 2." da Collecç.ão de navefiações e viagens, diz
<\\\o M;irco Paulo desde 1270 esteve ao serviço de Cublai. Kan de
toda a Tartaiia (lliiiia c Tihet, e deste diz: «Que os de Tibet tem
linc;ua própria, e perfencpiii á província de Tihet, que conlina com
Mangi. Esta dita província está sujeita ao Gran-Kan.
(.32) Bollnnd. Act. SS., 14 de Janeiro; Fleurí, Historia ecclesias-
tica. liv. 94.", § 7."
218
Deixando ora as mais antigas noticias do Tibet, que só
por si baslarião para desmentir o que diz o geógrafo Fran-
cez: bem sabido he, que no anno de I62i, mais de se-
tenta annos antes que apparecessem as primeiras cartas
de Mr. De l'Isle, foi aquelle celebre paiz visitado, e explo-
rado pelos Portuguezes, como dissemos summariamente
no nosso Indicp ao referido anno.
O Padre António de Andrade, Jesuita Portuguez, natu-
ral da \illa de Oleiros, na comarca do Crato, foi o que
emprendeo e executou esta diíScil empreza.
Sendo este religioso varão mandado ás missões do
Oriente, e estando a governar o coUegio do Mogor, re-
solveo hir visitar a chrisíandade do Tibet, de que muito
se falava, e aonde os Portuguezes não havião ainda pe-
netrado.
Partio effectivamente com este desígnio no anno de
1624, e depois de mui longa, e trabalhosa peregrinação,
entrou em Capar anga, corte daquelle reino. Vindo de-
pois a Gôa buscar novos operários, que o ajudassem na
missão, que já com grande fructo deixava plantada, vol-
tou ao Tihet em 1626. Tornou ainda a Gôa, e querendo
terceira vez repetir a viagem ao Tibet, os seus lhe emba-
raçarão este pio intento, e o nomearão Provincial da pro-
víncia de Gôa, aonde falleceo a 19 de Março de 1634, aos
cincoenta e três annos de sua idade. Depois da sua morte
^e estampou o seu retrato com esta inscripção:
P. ANTON. DE ANDRADE, SOCIETAT. JESU, PROVINCIAE
" GOANAE XVII. PROVINCIALIS, MISSIONIS THIBETENSIS PRIMUS
EXPLORATOR, ET PUNDATOR, OBIIT AN. DOM. 1634.
Escreveo o Padre Andrade a Relação da sua viagem,
que logo sahio á luz com o titulo:
Novo descobrimento do Gran-Catayo, ou dos reinos do
Tibet. Lisboa, 1626, 4.''
E foi traduzida em Castelhano, Italiano, Flamengo, Po-
laco, de. Delia extrahio Theodoro Rhay, Jesuita, natural
219
da cidade de Rees no ducado de Cleves, parte das noti-
cias, que se lêem na sua Descrípção do reino do Tibet,
escripta em lingua Latina, e impressa em Paderborn, no
anno de 1658, em.4.°
Escreveo mais o mesmo Padre António de Andrade:
Carta, em que relata como voltou ao Tibet a 15 de
Agosto de 1626.
A qual parece ter sido impressa em 1628, e traduzida,
ou dada por extracto em Francez com o titulo:
Histoire de ce qiii s'est passe au royaume de Tibet en
Vannée 1626. Paris, 1629, em 8.°
Em Roma se imprimirão também no anno de 1828:
Lettere annue dei Tibet, dei 1626, e delia China dei
1624, scritte ai P. Muzio Vitelleschi.
As quaes vem commemoradas no Additamento d His-
toria Ecclesiastica, de Natal Alexandre, aonde se trata
dos progressos do Christianismo no Oriente, durante os
séculos XVII e xviii.
Finalmente, tanto a Relação, como a Carta do Padre
Andrade forão novamente estampadas no tom. 4.° da
ImageM da Virtude em, o Noviciado da Companhia de
Jesus na corte de Lisboa, impresso em 1717, nocap. 31.°,
a pag. 375 e 400.
Acrescentemos ainda, que Fr. Jacintho de Deos, na sua
Historia da província da Madre de Deos dos Capuchos de
Gôa, que intitulou Vergel de plantas e flores, á-c, escripta
pelos annos 1679, c impressa em Lisboa em 1690, in foi.,
descrevendo o império da China, e os vários nomes com
que era nomeado, diz :
«O reino de Tumet, ou Tibet, que cerca muita parte das
províncias de Xancij, e o reino de Unzagué, que confina
com a província de Sic-choen, corrupto o nome Kitat/,
dizem Catay. Os mercadores, que do Indostnn, o outros
reinos da índia vem a este, lhe chnmão Caiai/o. ITaqui
fica bem claro, que o reino de Catayo, de que o Padre
2^20
António de Andrade fala na sua Relação, he China, que
em grande parte confina com o reino de TibetD.
De tudo o que até agora temos dito se segue:
1.° Que o Tibet era conhecido muito antes de M. De
risle.
2.° Que já desde o século xiv tinha sido notado pelos
viajantes e geógrafos.
3." Que ficou muito mais determinado, e conhecido,
desde o anno 1624, pelas indagações, e escriptos do Pa-
dre António de Andrade, Portuguez, os quaes sendo logo
espalhados em differentes línguas por toda a Europa, não
devião ser ignorados por hum geógrafo de profissão, como
Mr. la Croix.
4." Finalmente, que procedeo com mais justiça Pin-
kerton, quando no seu Compendio de Geografia moderna,
edição de 1811, reconheceo que aforão os Portuguezes
os primeiros, que penetrarão nos vastos paizes do Tibet,
os quaes (diz) nos não são ainda conhecidos, senão muito
imperfeitamente y> .
MEMORIA
SOBRE AS VIAGENS DOS POETUGUEZES Á ÍNDIA
POR TERRA, E AO INTERIOR DE AFRICA
DESDE OS princípios DO SÉCULO XV
Sund quorum ingenium nova tantum crustula promit ;
Nequaquam satis ín re una consumere curam.
HORAT., liv, 2.», saU 4.»
I
Anno de 1839.
MEMORIA
SOBRE AS VIAGENS DOS PORTUGUEZES Á ÍNDIA
POR TERRA, E AO INTERIOR DE AFRICA
DESDE OS princípios DO SÉCULO XV
El-Rei D. João II, inspirado pelo seu grande animo, e
não vulgar instrucção, e munido dos planos, informações,
e notas de seu tio o immortal Infante D. Henrique, logo
que subio ao throno de Portugal em 1481, tomou tanto
a peito o descobrimçnto da índia e terras orientaes, como
he constante da historia do seu reinado : e não se conten-
tando de continuar as emprezas marítimas na costa Occi-
dental de Africa, que originariamente se dirigião áquelle
fim, resolveo mandar por terra viajantes exploradores,
que trabalhassem por descobrir aquelias apartadas re-
giões, e por se instruir da situação das terras, das suas
producções, do seu commercio, e dos caminhos por onde
os Portuguezes poderião a ellas conduzir-se, e finalmente
de tudo quanto fosse em utilidade do piano geral, cuja
execução se havia emprendido, e elle desejava concluir.
Havia na Euroi)a desde o século xu a idéa vaga e con-
fusa de hum Príncipe mui poderoso daquelle oriente, que
seguia e professava a religião Christãa, e que se designava
commummente com o nome de Preste João.
O primeiro, que parece haver trazido á Europa a noti-
cia deste potentado, foi hum Bispo da Syria, que vindo
pelos annos de 1145 implorar a protecção do Papa Eu-
génio III, falava de hum Príncipe Chrístão, nestoríano,
chamado Preste João, que reinava no oiiente, o qual ti-
nha alcançado algumas victorias contra os Persas, e não
duvidaria vir em auxilio dos Christãos de Jerusalém con-
tra os infleis (1).
No século seguinte, e no anno de 1:237, escrevia o Prior
dos frades pregadores da Terra Santa ao Papa Gregório IX,
referindo-lhe os serviços, que os seus religiosos tinhão feito
ao Christianismo em diííerentes regiíjes da Ásia, e nesta
carta dizia entre outras cousas: iTetnos recebido muitas
cartas do Patriarcha nestoriano, a quem obedece a grande
Índia, o reino do Preste João, e as terras visinhas do
oriente », onde vemos o nome do Preste João unido ao da
grande índia, e descobrimos a razão provável porque de-
pois se foi dando áqueile tão nomeado, e tão inculcado
Príncipe a denominação de Preste João das índias.
No século XIV forão muitas as expediçíjes de missioná-
rios Christãos, mandados pelos SummosPontiíices á Pér-
sia, á Tartaria, á China, e a outras terras orientaes, os
quaes todos fizerão não pequenos serviços ao Christia-
nismo naquellas remotas regiões, chegando a fundar es-
tabelecimentos religiosos em Cambalu, e Caiton na China
septemtrional, em Vsbeck, em Sultania, em Ceilão, na
Java, ác. E postoque nas Relações destes missionários,
ou nas memorias, que delles, e dos seus trabalhos nos
tem dado os escriptores ecclesiasticos, não achamos ex-
pressamente repetido o nome de Preste João, he comtudo
(1) Fleuri, Historia Ecclesiastica, liv. 69.°, § 10.», ao anno 1145.
Natal Alexandre também menciona huma carta do Papa Alexan-
dre III, escripta em 1177, e dirigida «illnsíri et magnifico Indorum
Regi, sacerdotnm sunctissimo», &c., e diz o historiador que era en-
dereçada « Oto Rei dos Ethiopes, a quem chamámos Preste João » ; esta
carta vem na CoUeccão de Concílios do Padre Labbe, no tom. 10."
verosímil que elle se conservasse junlo com a lembrança
das primeiras, e mais anti.i^as noticias; e como por outra
parle constava, (jue em alguns daquelles paizes se encon-
travão Christãos da seita, ou rito nestoriano, fácil era ligar
6 confundir estas idéas, que a ignoranc|p da geografia não
permittia ainda rectificar, e apurar (2).
Ainda no século xv, pelos annos de 1 46 1 , se faz menção
de certos Legados orientaes, que tendo vindo a Itália solli-
citar do Santo Padre Pio II auxilio contra os Turcos, pas-
sarão a França a empenhar o Rei Carlos VII em seu favor,
sendo acompanhados de hum, que se dizia prelado dos
frades menores, e talvez tomava o titulo de Patriarcha
de Antioquia, nomeando-se Orador, ou Legado do Preste
João. A enfermidade de Carlos VII, de que logo falleceo,
não permittio que estes Legados fossem por elle ouvidos;
e o Santo Padre tendo entretanto podido averiguar que
erão insignes impostores, mandava reter em Veneza o
falso Patriarcha, que houve por bem retirar-se a tempo
com os seus companheiros.
Este facto, bem como os precedentes, mostra quanto
na Europa era aci'editada desde antigos tempos a exis-
tência do Preste João, isto he, de hum Príncipe Christão,
muito poderoso, que reinava na índia, ou nos paizes orien-
taes: crença que nUio nasceo da ignorância dos Porlugue-
(2) No Atlas em lonjna Cuddãa, delineado, e escriplo cm 1374,
e publicado de liuiii exemplar da Bihliotheca do Rei de França pelo
Sr. J. A. C. Buchon, no anno passado de 1838, se vô entre as duas
palavras «Affricha» e «Núbia» a figura de hum Jujperador coroado,
com sceplro na mão, e ao lado a legenda «... de Sarrayus, ciutat
do .. . est . .. de Niibia. Está toa íemps en (fiierra e av^nes con eres-
tiana de Nidiin, qni f.on so sripioria de l'ei)ipei-adur de Etiópia de la
terra do jireste Joiínv »: isto lie «... de Sarracenos, cidade do ...
est . .. da Núbia. Está sempre em guerru e armas com (christãos da
Núbia, que estão debaixo do senJwrio do Imperador de Etlnopia, da
terra do Preste João-. Nova prova do (|ue vamos dizendo sobre a
antiguidade do nome do Preste João na Kuropa.
TOMO V l."i
226
zes, como dizem alguns ignorantes, ou mal intencionados
escriptores estrangeiros; mas que tinha tido a sua pri-
meira origem nas antigas relações, e que foi recebida em
outros paizes antes que chegasse a Portugal.
El-Rei D. João li pois, dirigido nesta parle pelas idéas,
que erão communs em toda a Europa, e sempre possuido
do grande pensamento de descobrir a índia, desejava
muito abrir alguma communicação com aquelle Príncipe,
confiando que elle, pela qualidade de Christão, se pres-
taria a huma fácil e amigável correspondência; e como
senhor de grandes eslados na índia, não só traria consi-
deráveis interesses ao commercio dos Portuguezes, mas
também concorreria para que elles viessem a conhecer o
melhor, mais breve, e mais seguro caminho marítimo
para aquellas partes, que ha tantos annos buscavão com
incríveis trabalhos e despezas, e não menor constância e
perseverança.
Quando el-Rei volvia em seu espiríto estes pensamentos,
occorreo hum accidente, que parecia confirmal-os e favo-
recel-os.
Çacuta, ou Zacuta, mandado a Lisboa como Embai-
xador do Rei de Beni, informou a el-Rei, que além do
seu paiz, cousa de duzentas e cincoenta léguas para o
oriente, havia hum Príncipe mui poderoso, denominado
Ogané, de cuja suzerania era dependente o Rei de Beni:
e taes circumstancias acrescentava, e de tal modo des-
crevia os ritos, e o ceremonial, de que usava aquelle po-
tentado, que el-Rei combinando tudo isto com as idéas
que havia do Prp.ste João, facilmente começou a presu-
mir, que podería ser este o próprio Príncipe, e resolveo
não poupar diligencia alguma para veríficar a sua conje-
ctura, ou presentimenlo (3).
(3) Huma das circumstancias, com que Çamta descrevia o cere-
monial daquelle mysterioso Principe, era que não se deixava ver
dos sexis vassallos, ouvindo-os de dentro de cortinas, e amostrando-
227
No anno pois de 1486, ao mesmo tempo que mandava
o illustre e intrépido navegador Barlliolomeu Dias ao des-
cobrimento do grande cabo meridional de Africa, lhe dava
ordem, que nas terras, que fosse descobrindo, lançasse
certos negros e negras, que comsigo levava, já industria-
dos, para que por elles chegasse d noticia do Preste João
este desejo, que el-Rei tinha de o conhecer, e ter com elle
amizade (Barros, dec l.'\ liv. 3.°, cap. 4.°). E não con-
tente o grande Principe com estas providencias, que mal
satisfazião a sua incessante e ardente curiosidade, despa-
chava também por terra vários outros viajantes, ordenan-
do-lhes, que por via do Cairo ou de Jerusalém, que erão
pontos então mui conhecidos e frequentados, tentassem
penetrar até á corte do Preste João, e haver as informa-
ções e noticias, que tanto se desejavão.
lhes, quando muito, hum pé. (Barros, dec. 1.", liv. 3.", cap. 4.°) Esta
mesma circumstancia notou Kuito depois, como própria do Rei dos
Abexis, o illustre Castro no Roteiro do mar roxo, aonde tratando
dos costumes daquelies povos diz : « He ordenança dos Reys nam se
averem de amostrar a seu povo, e passam muitos annos, que nam
sam vistos. Quando quer que vão á guerra, ou caminham, levam per
derrador de si taes impedimentos, que nam podem ser notados de al-
guma pessoa». O que porém nos parece ainda mais notável a este
respeito he o que lemos na viagem do douto, e celebre viajante
Árabe Ben-Batuta, que visitando as terras interiores de Africa pelo
meio do século xiv, e falando do paiz de Barnu, cujos habitantes
erão Musulmanos, diz que «tinhõo hum Rei, por nome Edris, o qual
não apparecia á gente, nem falava senão por detraz de huma cor-
tina». Aproveitaremos ainda esta nota para dizer que o Principe
Ogané, assim denominado nas Relações Portuguezps, segundo a in-
formação do Embaixador de Beiíi, nos parece ter alguma semelliança
com o Rei de Organa, de que faz menção o Atlas Catalão, acima
citado. Nello se denota no interior de Africa hum rio, a que chama
Nilo (o NigerfJ : por baixo se lê <( Núbia», « Organa ». e abaixo da
palavra Organa esta nota: «Aqui reina o Rei de Organa, sarraceno,
que tem continua guerra com os sai'racenos marítimos, e com outros
ularabes (alarahps), ou occidcntaes». (Vej. Notice snr un Atlas en
Uingue cutalane, &c., por Mr. Buchon, Paris, 1838, em 4,°)
228
Hum escriptor nosso antigo menciona como primeiro
entre estes viajantes hum religioso por nome Fr. António
de Lisboa, acompanhado de outro frade leigo; mas logo
adverte, que elles não chegarão a passar de Jerusalém,
por não falarem a lingua arábica. E Damião de Góes, na
Chronica de el-Rei D. Manoel, part. 3.*, cap. 58.°, depois
de dizer, que el-Rei D. João II mandara por algumas ve-
zesj, c em diversos tempos, homens que sabião a lingua
arábica, somente refere por seus nomes Afonso de Paiva,
natural de Castello Branco, e João Perez da Covilhãa (4),
que são com effeito os que mais famosos se fizerão nestas
expedições terrestres, destinadas a explorar os paizes
orientaes, e a se informarem do Preste João das índias.
Ainda que os nossos escriptores não são perfeitamente
uniformes em designar o anno, em que os viajantes sa-
iiírão de Portugal para esta importante commissão, temos
comtudo por quasi certo, que el-Rei os despachou, es-
tando em Santarém, a 7 de Maio de 1487, sendo então
presente ao despacho o Duque de Beja D. iManoel, que
depois foi Rei. Esta he a data seguida por Castanheda,
Barros, e outros.
Os viajantes forão por terra até Nápoles, e embarcando
ahi a 24 de Junho, dia de S. João Baptista, navegarão para
Rhodes, aonde forão bem acolhidos de Fr. Fernando, e
Fr. Gonçalo (que alguns nomèão Fernam Gonsalves, e
Gonçalo Pimenta), cavalleiros Portuguezes da Ordem de
S. João de Jerusalém, que ao tempo residião naquella ilha.
De Rhodes passarão a Alexandria, e logo ao Cairo; e
como achassem opporluna companhia nas cáfilas de Fez
e Tremecêm, assentarão aproveitar-se delia, e viajarão
(4) Alguns escriptores dão a este segundo viajante o nome de
Pêro, ou Pedro da Covilhãa; mas ha nisto equivocação, segundo
parece; porque Rezende, auctor contemporâneo, Góes, e outros, o
chamão João, ou João Perez, e he provável que o sobrenome pa-
troiiimico Perez desse occasião ao erro.
229
como mercadores para Tor sobre o golfo arábico, d'onde
passarão a Çuaquêm, na costa da Ethiopia sob o Egypto,
6 ultimamente a Adem, havendo alii por conveniente, na
conformidade de suas instrucções, separar-se, e tomar
cada hum delles differente direcção.
Resolverão portanto, que Paiva se dirigisse â Ethiopia,
que parecia ser a região designada pelas informações de
Beni e Congo, e aonde se dizia existir hum grande Rei
Christão, que poderia ser o Príncipe que procuravão; e
que Covilhãa partisse em direitura á índia, ajustando por
ultimo que se reunirião no Cairo depois de certo tempo
determinado.
Affonso de Paiva chegou com effeito a entrar em terras
da Ethiopia. O Covilhãa passou ao golfo Pérsico, d'onde
navegando para a costa da índia, visitou Cananor, Calecut,
Gôa, e toda a costa Malabarica. Veio a Çofala, voltou a
Adem, e recolhendo-se ao Cairo no tempo aprazado,
achou a noticia de ter ali fallecido o seu companheiro
Paiva, quando já voltava da Abyssinia.
Emquanto estes dous viajantes procuravão desempe-
nhar a sua árdua commissão, não cessava el-Rei de em-
pregar novos e opportunos meios de assegurar cada vez
mais o seu effeito: e com este presupposto despachou
os dous Hebreos Rabbi Abraham de Beja, e José de La-
mego com cartas suas para Paiva, e Covilhãa, endereçadas
ao Cairo. Covilhãa os veio effectivamente encontrar ahi, e
recebendo as cartas de el-Rei, lhe responden logo por José
de Lamego, referindo tudo o que até então tinha visto e
observado; participando a noticia da morte do seu com-
panheiro; e dizendo, que se podia navegar para a índia
pelo Oceano, o íjuo o PrfíHc João não podia ser outro
que o Im[)('ra(lor da Ethiopia, segundo as informações
que tinha podido coUigir: e ainda alguns acrescentão (não
sem verosimilhança) (jue clle mandáia a el-Rei huma carta
daquelles mares orienlaes entre a índia e a costa Africana.
230
Como porém el-Rei ordenava, que de nenhum modo vol-
tassem a Portugal sem visitar Ormuz, e sem iiaver alguma
certeza do Preste, o Covilhãa se pôz de novo a caminho
com Rabbi Abraham para Adem: d'alii passou a Ormuz,
voltou ao golfo Arábico, visitou Mecca, Monte Sinai, Thor,
e depois Zeila; d'onde por terra penetrou emfim até á
corte do Abexi (1490), e entregou ao Príncipe, que então
ali reinava, e se chamava Escander (Alexandre) as cartas
de el-Rei D. João, e hum mappa, em que estavão deli-
neadas as nossas navegações. Em Ormuz se tinha Covilhãa
apartado do seu companheiro Rabbi Abraham, confiando-
lhe segundas cartas para el-Rei.
Parece que a fortuna se comprazia de favorecer os
projectos, e animar as esperanças de el-Rei de Portugal!
Como elle tinha no mediterrâneo, em diíferentes portos
do Levante, pessoas encarregadas de lhe participarem
quaesquer noticias, que se podessem obter do Preste
João, e das terras da índia, aconteceo, que vindo por
aquelle mesmo tempo a Roma, e estando no coUegio de
Santo Estevão dos Indianos hum sacerdote Ethiope, por
nome Lucas Marcos, o Santo Padre ínnocencio VIII o en-
viou a el-Rei, o qual não só o recebeo, e ouvio com grande
contentamento, e alvoroço, mas também por elle escreveo
novas cartas ao Imperador Abexi, fazendo que elle mesmo
escrevesse outras por quatro differentes vias, nas quaes
todas se annunciava áquelle Piincii)e o ardente desejo que
el-Rei de Portugal tinha da sua amizade e communicação;
se lhe recommendava e pedia que recebesse benignamente
o Embaixador que de Portugal lhe tinha sido enviado; e
se lhe indicava a via do Cairo, Jerusalém, ou Roma para
reciproca correspondência, até que Deos abrisse outro
mais directo, e mais fácil caminho.
O Paiva falleceo no Cairo, como já vimos. O Covilhãa
não voltou a Portugal; porque estando já para isso des-
pachado por Escander, e fallecendo este antes que Co-
231
vilhãa podesse realisar a sabida, Nau, ou Naut, que suo-
cedeo no tlirono, lhe denegou consta[it(3menle licença
para sahir do império, e o mesmo fez David, que succe-
deo a Naut, adoçando comtudo a Covilhãa as saudades
da pátria com lhe fazer amplas mercês, e donativos. Pelo
que, cazou-se Covilhãa na Abyssinia (diz Góes), e teve
filhos, e filhas.
Com eífeito pelos nossos escriptores nos consta, que
quando o grande Albuquerque embocou o estreito do
golfo Arábico em 1506, ainda o Covilhãa vivia nas terras
daquelle império: e quando o Embaixador do Abexi, Mat-
theus, chegou a Gôa no anno de 1512 para vir a Portugal,
dizia, que na Abyssinia existião três Portuguezes, hum cha-
mado João, que havia muito tempo linha sido mandado
por hum Rei de Portugal (e este era sem duvida o nosso
João Perez da Covilhãa, mandado por el-Rei D. João II
vinte e seis annos antes), e outros doas que de pouco ti-
nhão lá chegado, e serião certamente alguns daquelles,
que os Capitães Portuguezes lançavão em terra em certas
paragens, com ordem de penetrarem ao interior, quanto
lhes fosse possível, a fim de poderem depois dar informa-
ção do que tivessem observado. Ainda no anno de 1526,
em que o Padre Francisco Alvarez sábio da Ethiopia com
D. Rodrigo de Lima, parece que lá existia o Covilhãa; e
finalmente no anno de 1559 achamos menção de hum
Álvaro da Costa Covilhãa, que vivia na Abyssinia, e seria
provavelmente algum dos filhos do nosso viajante.
Taes são as noticias, que desta importante viagem (5)
(5) Não podemos escusar-nos á satisfação de copiar nesta nota
as palavras de hum douto e sincero escriplor iM-ancez a respeito da
viagem, de que temos tratado. He Mr. PouqueviMe, que na Memoria
histórica c diplomática sobre o commercio e estabelecimentos Fran-
cezes no Levante, &c., anno 1827, lalando da época da tomada de
Constantinopla por Maliomct lí, diz assim: «Até então tinha o Me-
diterrâneo sido o centro da navegação do mundo; mas a Providen-
232
ficarão em nossas historias, e que aqui quizemos ajuntar
para commodidade dos leitores, confiando que se nos re-
levará descermos talvez a miudezas e particularidades,
que podem hoje parecer de pouco interesse, mas que
acreditão, e recommendão o discernimento, o zelo, e
a constância, com que os Reis Portuguezes procurarão
lançar os fundamentos ao magnifico edifício de gloria, e
de grandeza, a que depois se elevou o império lusitano-
oriental.
El-Rei D. João II ao mesmo passo que com tanta dili-
gencia, e grandes despezas da sua fazenda (6) mandava
explorar as terras orientaes, também se não descuidava
de fazer examinar o interior de Africa, tanto para adquirir
conhecimento das producções do paiz, e dos costumes
das gentes, como para aproveitar as utilidades do com-
cia permittio emfim, que os homens descobrissem mais vasto campo,
om que podessem dar ala ao seu génio, e á sua coragem. Os estados,
que com mais perseverança se havião dado ás viagens longinquas,
he que devião obter a gloria de abrir e franquear o caminho. Os
Portuguezes merecerão esta honra, dobrando o cabo da Boa Espe-
rança. Hum anno depois deste memorável descobrimento, Pedro de
Covilhâa e AÍTonso de Paiva mandados por el-Rei de Portugal a re-
conhecer, hum, os estados do Preste João, que se chamavão Índia, e
o outro as terras donde rinha a especiaria, partirão a executar hunia
das missões mais vastas, que jamais se havião concebido. Levavão
elles ordem de se informarem, se era possível a navegação desde o
cabo da Boa Esperança até ás índias orientaes, e de se instruir de
tudo o que podesS(> ser ufil an comiiiercio. Chegados a Tor, aonde
se separarão, Covilhâa embarcou, e foi o primeiro Portuguez que
navegou os mares da índia, ao mesmo tempo que Paiva se dirigia
á Ethiopia, tendo ambos ajustado entre si reunirem-se ]io Cairo de
volta de suas viagens. Emquanto estes exploradores desempenhavão
a sua perigosa commissão, Cliristovão Colombo descobria a Ame-
rica», &c.
(6) Rezende, na Vida de D. João II, cap. 60.", falando da viagem
do Paiva e Covilhâa, acrescenta: 'E depois delles forão outros, com
muitas despezas, que el-Rei nisso fez».
233
mercio, e levar áquelles povos rudes e bárbaros a luz do
Evangelho, e com ella os benefícios da civilisação.
Alguns escripiores estrangeiros, que ignorão, ou fin-
gem ignorar os factos da nossa historia, atreverão-se a
dizer, que os Portiiguezes nunca tiverão o pensamento
de inspirar aos Africanos alguma idra moral. Esta pro-
posição he huma insigne, e calumniosa falsidade, des-
mentida por toda a historia dos nossos descobrimentos
e conquistas, e filha, ao que parece, do baixo ciúme com
que os estrangeiros, em geral, tem considerado, e ainda
hoje considerão a superior gloria, que naquelles tempos
adquirimos. Nós refutaremos em outra nota a injuriosa
accusação, que nisto se nos quer fazer. Aqui somente tra-
tamos de recolher as escassas idéas que ainda achamos
nos escriptores nacionaes sobre as indagações dos nossos
antigos no interior de Africa, para que por ellas se veja,
que as tentativas feitas pelos modernos com o mesmo fim,
forão precedidas pelos Portuguezes três séculos antes, e
que se os Portuguezes não tirarão delias maiores provei-
tos nem para si, nem para os povos Africanos, também
os modernos não tem sido até o presente muito mais fe-
lices, apezar da grande aptidão e capacidade de que se
prezão e jactão, e apezar dos multiplicados meios de que
hoje podem ajudar-se nesta empreza, e de que os Portu-
guezes totalmente, ou quasi lotalmente carecião no sé-
culo XV.
Bem natural parece que o illusti-e Infante D. Henrique
se não esquecesse de lançar mão de hum arbítrio tão pró-
prio para levar ao fim os seus intentos, como era o das
viagens ao interior de Africa. Os fins principaes a que
elle se dirigia, que cr)nsislião em trazer os ])ovos bárbaros
á religião Cliristãa, c am[)liar ao mesmo tempo as rela-
ções, e os interesses coninu3rciaes do reino, aconselhavão
este meio como opportuiio. O Infaiile tinha noticia, pelas
informações dos xMouros, das grandes feiras, que se fa-
334
zião em diíferentes lugares da Africa central, e não igno-
rava o extenso commercio, que os seus habitantes en-
tretirihão com os das costas septemtrionaes, assentadas
sobre o mediterrâneo. Pelo que não podemos prudente-
mente duvidar de que intentasse examinar estes objectos
com todo o cuidado e empenho, e assim parece per-
suadil-o tanto a embaixada que mandou a Farim, Rei de
Cabo Verde, e a fundação da fortaleza de Arguim, como
os estabelecimentos, que ordenou se fizessem nas mar-
gens do Rio Grande.
Comtudo pelo que mais directamente respeita ao nosso
particular assumpto, a historia somente nos conservou
lembrança do ousado Portuguez João Fernandes, homem
de honra e confiança, e já imtruido na lingua daquelks
povos, que voluntariamente se oífereceo ao Infante para
hir investigar o interior do paiz dos Azenegues. Este ani-
moso aventureiro ficou com eíTeito no Rio do Ouro, pe-
netrou o seftão, inquirio o trafico, ritos, e costumes dos
habitantes, e de[)()is de sete mezes de peregrinação na-
quellas terras, mandou o Infante que Antão Gonsalves o
fosse buscar, e conduzir ao reino, aonde com grande
altenção e gosto ouvia as informações, que elle dava de
tão estranhas gentes.
El-Rei D. João II foi o que depois proseguio com mais
constância o desempenho daquelle plano. Delle nos consta
que entretinha frequente correspondência com alguns
Reis, e grandes senhores do interior, e que por via do
castello de Arguim mandava estabelecer feitoria Portu-
gueza em Huadem (7), despachando para feitor Rodrigo
Reinei, para escrivão Diogo Rorges, e para homem da fei-
toria Gonçalo d'Antes.
Sendo o mesmo Piincipe informado, que o Senegal
corria por Tomhiiclu, e Mombarcey principaes feiras dos
(7) Em Árabe Uâdán, ou OuMán, ou Hoden.
235
sertões Africanos, mandava igualmente construir huma
fortaleza na boca daquelle rio. Nas que se fundarão na
Mi?iaj, e no Congo não só tinha a gente necessária para
defeza, e os feitores que havião de tratar do commercio;
mas também designava certas pessoas, particularmente
destinadas a fazer excursões ás terras do sertão para se
informarem das gentes que as habitavão, dos seus usos,
costumes, e linguagem, das producções da terra, dos
seus commercios, ác. (8). Por outra parte os ecclesiasti-
cos que tinhão a seu cargo a conversão dos infiéis, fazião
também para isso, por mandado de el-Rei, entradas nas
terras, com o que se augmentava o numero, e a certeza
das noticias, que progressivamente se hião adquirindo
daquelles vastos paizes (9).
Entre as muitas pessoas encarregadas destas viagens e
indagações, faremos aqui menção das que o illustrc Barros
nomêa nas suas Décadas, segundo os documentos origi-
naes, que em seu tempo existião na Gaza de Guiné e In-
(8) Mariz, dial. 4."; cap. H.»: «E era el-Rei D. João tão humano,
que se carteava (com os Príncipes Africanos), e os tratava particu-
larmente, tudo porém para desço Ijrir o estado do I^reste João, e com
elle as índias, de que tantas grandezas se publicavão pelo mundo.
E para este seu desejo mandava também por terra, e sertão dentro
da Ethiopia muitos Christãos, assim Portuguezes, como naturaes da
terra, em o qual tanto se occupava, e com tanto fervor o sollicitava,
principalmente depois que vio e gostou de muitas cousas, de que os
esciiptores antigos não tiverão noticia, que não lhe repousava o es-
pirito, commetlendo muitas vezes por varias partes esta grande balsa
de Guiné, que até hoje se não deixou penetrar».
(9) Sousa, Historia de S. Domingos, part. 2.% liv. 6.", cap. 6.°,
falando da missão de Beni em 1486. diz : «As Memorias de nossa
Ordem dizem que el-Rei escolheo nella sujeitos, que além das sa-
gradas letras, erão entendidos nas n)athematicas, para que, nas horas
que lhe vagassem da pregação, fossem inquirindo alguma noticia da
índia pelo sertão daquellas províncias, e do grande Rei do Abexim.
que o vulgo chamava Preste João, e havendo-a, procurassem chegar
a elle».
236
dia. São pois Pêro de Évora, e Gonçalo Eanes, mandados
por el-Rei aos Reis de Tiicurol, e de Timbiigutu. Rodrigo
Rebello, escudeiro da caza de el-Rei, e Pêro Reinei, seu
moço de esporas, e João Collaço, besteiro da camará, des-
pachados com outros homens, em numero de oito, por via
de Cantor a Mandi-mansa, hum dos mais poderosos Prín-
cipes da província de Mandinga (10). Mem Rodriguez, e
Pêro de Astuniga a Timbugutu, e a Temalla dos Fullos-
Rodrígo Rebello, e João Lourenço, criados de el-Rei, e
Vicente Annes, e João Bispo, linguas, a vários outros rei-
nos e gentes. Por hum Abexi chamado Lucas, escreveo
também el-Rei ao Príncipe, ou senhor dos Mòses, nome
mui celebrado entre os negros, e que se julgava ser visi-
nho, ou vassallo do Preste, ou da gente dos Nobis (11) :
e pelo forte da Mina enviou mensageiros a Mahamed-ben-
Manzugul, neto de Mussa, Rei de Songo. «E não só por
seus naturaes (diz Barros), mas ainda por estrangeiros,
assi como Abexis c alguns alarbes que vinhão ao castello
de Arguim, commettia este descobrimento do sertão, por
lhe não ficar cousa alguma por tentar. Tão occupado, e
soUicito o trazia este negocio! Principalmente de{)ois que
vio, e gostou de muitas cousas, de que os antigos escri-
(10) Barros, dec. l.-'', liv. .'}.», cap. 12.": «E assi ficou desta, e
doutras idas, que oIRey lá mandou, lanla amizade ende os nossos
e esto Rei Mandi-mansa, que enviando eu, por razão do meu cargo
de feitor destas cazas de Guiné e índias, o anno de 1314, a tium
Pêro Fernandes a este reyno de Mandi-mansa, em nome de elRey
dom João o terceiro nosso senhor, que ora reina, por razão do res-
gate de Cantor, estimou o Rey muito este recado, (|ue llie foi dado
da parte de elRey, dizendo que avia em hoavenlura ser-lhe enviado
este mensageiro, porque a seu avô, que tinha o seu próprio nome
fora enviado outro mensageiro doutro Rey dom João de Portugal.
Tanta memoria, sem terem letras, avia entre estes barliaros das cousas
delRei dom João».
(11) Este senhor dos Mòses parece ser o mesmo, que no Atlas
Catalão acima citado se diz «Mussa Rei de Melhj».
237
ptores não tiverão noticia, falando desta parte de Africa,
que não lhe repousava o espirito ! E bem como hum leão
faminto, a quem a caça se esconde, com temor delle, em
meio de alguma grande e espinhosa balsa, a qual elle
rodêa e commette per muitas partes, e ferido e espinhado
das entradas e sahidas, já cançado se lança com o sentido
e tento posto na prèa escondida, assi el-Rey commettendo
per muitas partes e vezes esta gran balsa de Guiné, que
té hoje se não leixou penetrar, cançado desta continuação,
e despeza de sua fazenda, e assi de grandes cuidados que
lhe derão os negócios do reyno, principalmente no tempo
das traições, se leixou algum tanto repousar. . . », á-c.
Depois do fallecimento de el-Rei D. João II, e quando
já os Portuguezes conhecião e praticavão o caminho ma-
rítimo da índia, e os diversos portos da costa oriental de
Africa, nem por isso afrouxarão, antes mais insistirão, e
se empenharão em haver conhecimento dos paizes inte-
riores daquella parte do mundo.
Os primeiros Capitães, mandados á índia, levavão ho-
mens criminosos, e condemnados a graves penas, os
quacs, por commutação delias, erão lançados em terra
em diversas paragens, com ordem de penetrarem, quanto
lhes fosse possível, ao interior, para depois informarem
do que tivessem visto e observado. No Rio dos Reis, a 25°
meridionaes, deixou o grande Vasco da Gama dous destes
exploradores, e pouco adiante outros dous no Rio dos
Bons Signaes. Cabral, á sua volta da índia, lançou outros
dous em Mdiude, recommendando-llies que trabalhassem
por penetrar até á Abyssinia, de que ainda não havia bem
miúdas, e exactas informações. João da Nova (em 1501)
achou em Quilôa hum António Fernandes, carpinteiro de
náos, degradado, lançado em terra pelo mesmo Cabral.
Cyde Barbudo, e Pedro Quaresma, mandados a indagar
por toda a terra do cabo da fina Esperança até Çofala o
lugar, e as circumslancias da [)erdição de Francisco de
ã38
Albuquerque, e Pedro de Mendonça, lançarão em terra
(em 1505) dous degradados na agooda de S. Braz com
ordem de correrem ao longo da cosia da Cafraria. Tristão
da Canha (em i507j pôz em Melinde três homens, a sa-
ber: hum Portuguez, por nome Fernam Gomes o Sardo
(ou João Gomes o Jardo, segundo a ultima edição de Cas-
tanheda), hum Mourisco Christão, chamado João Sanches,
e hum Mouro de Tunes, por nome Cyde Mahamede, man-
dados por el-Rei D. Manoel com cartas suas ao Imperador
Abexi : aos quaes o bom Rei de Melinde se encarregou de
dar aviamento para a viagem, que comtudo se não che-
gou então a executar por embaraços supervenientes. Estes
mesmos homens porém forão depois (em 1508) postos
por Aílonso de Albuquerque em terra, a três léguas do
cabo de Guardafui, com cartas suas, e por ali chegarão
finalmente á corte de David, aonde na menoridade deste
Principe governava por elle sua avó Helena; sendo acaso
esta huma das causas, que determinarão os Abexis a man-
dar o Embaixador Maltheus, que com effeito veio pouco
depois a Portugal, a trazendo carta de Helena, avó de
David, Precioso João, Imperador dos Elhiopes a D. Ma-
noel Rei dos Portnguezes, escripta em 1509 y>. (Góes.)
Seria longa esta nossa escriptura, se quizessemos men-
cionar todas as tentativa.^, todas as diligencias, todos os
esforços, que naquelle tempo se empregarão para ha-
vermos conhecimento dos paizes sertanejos das vastas re-
giões Africanas: e he por certo bem para lamentar que
em parte algum descuido dos nossos antigos, e em parte
a lyrannia do tempo, e as revoluções ordinárias do mundo
nos privassem de memorias mais individuaes, com as
quaes responderíamos hoje á vaidosa, e não menos inve-
josa presumpção dos estrangeiros, que aproveitando-se
porventura dos trabalhos, e escriptos dos antigos Portu-
guezes (que elles buscão, e guardão, e arrecadão melhor
do que nós) vem depois lançar-nos em rosto a nossa sup-
I
239
posta incuriosidade, e fazer ostentação dos seus scienti-
ficos trabalhos.
Faremos porém ainda menção de hum projecto, ou ten-
tativa, que foi a ultima do reinado de el-Rei D. lAíanoel,
e que infehzmente veio a malograr-se pela prematura
morte deste Soberano. Castanheda, e Góes nos submi-
nistrárão esta noticia.
Hum cavalleiro Portuguez, por nome Gregório de Qua-
dra, que fora criado do Marquez de Villa Real, e andava
por Capitão de hum bargantim na armada de Duarte de
Lemos, na costa oriental de Africa, pelos annos de 1508
el509, estando em frente de il/a^adflíco, ecortando-se-lhe
de noute, por má vigia, a amarra do bargantim, foi levado
com o baixel â discrição das ondas até o cabo de Guarda-
fui, e d'ahi a Zeila, onde sendo captivado com a sua gente,
passou ao poder do Rei de Adem, que o teve prezo por
alguns annos.
Posto depois em liberdade, como tivesse bem apren-
dido a lingua Arábica, e se fingisse devoto religioso ma-
hometano, o próprio Rei de Adem o levou a Medina,
d'onde passou á Pérsia, e á custa de gravíssimos incom-
modos visitou a Babylonia, Baçorá, Ormuz, e índia, vol-
tando ultimamente a Portugal em 1520.
Deo este Capitão tão boa conta a el-Rei D. Manoel de
tudo o que linha visto e observado, e de tudo o que sa-
bia da Arábia, da Ethiopia, e do grande lago, que se re-
putava ser a origem do Nilo, do Zaire, e de outros grandes
rios de Africa, que el-Rei o julgou capaz de executar o que
desde muito tempo fazia objecto de seus pensamentos e
meditações, que era descobrir o caminho do Congo para
Ethiopia por terra, espei"ando tirar grandes proveitos da
communicação, que se abrisse entre os dous Príncipes
Christãos seus alliados, cujos estados tinhão portos marí-
timos em ambas as costas occidenlal e oriental de Africa.
Despachou pois o Capitão Quadra, e lhe deo cartas de
240
credito para o Rei de Congo, e instrucções sobre o que
devia tratar com o Abexi acerca da guerra com os Turcos,
e das fortalezas que el-Rei queria fundar nas costas do
mar da Arábia e da Ethiopia.
Quadra partio, e cliegando ao Congo entregou as cartas
de el-Rei: mas logo se lhe oppozerão taes embaraços, or-
didos pela inveja, e malevolencia dos seus próprios na-
turaes, que elle, para os remover, se vio obrigado a vol-
tar a Portugal, aonde achou el-Rei fallecido, concebendo
d'aqui tal desgosto, que se resolveo a entrar em religião,
aonde acabou seus dias em exercícios de piedade.
El-Rei D. João III, não obstante ver-se obrigado a di-
vidir os seus cuidados para Africa, Ásia, e America, se-
gundo a excessiva extensão, que havião tomado os domí-
nios, e as emprezas portuguezas nestas diversas partes
do mundo, não se esqueceo comtudo da exploração da
Africa interior, e no anno de 13i6, escrevendo ao Impe-
rador da Ethiopia, e aos Portuguezes, que ainda lá exis-
tião, e tinhão feito parte da expedição de D. Christovão
da Gama, recommendava com encarecidas palavras, que
por pessoas idóneas se mandasse indagar e descobrir hum
caminho, que da Ahyssinia viesse ter á costa de Mclinde,
ou a alguma outra parte daquella banda: e porque pôde
ser (dizia el-Rei), que a terra do Abeai venha tanto para
oeste, e a de Manicongo vá tanto para leste, que não seja
grande distancia de huma terra a outra; queria, e orde-
nava, que também se tentasse este caminho do Abexi para
Manicongo, ou para qualquer outro rio do cabo da Boa
Esperança para cá (12).
(12) A carta que el-Rei escieveo ao Rei da Ahyssinia lie datada
de Almeirim a 13 de Março de lo46, e a que Sua Alteza escreveo
aos fidalguos, e seus criados, e gente de armas, que estarão nas terras
do Preste, he de 13 do mesmo mez e anno. Ambas forão remettidas
por cópia a D. João de Castro, a quem el-Rei dizia: «Porque po-
derá ser que para virem demandar as costas, que vereis pelo tre-
241
Aiuda em leiíipo de el-Rei D. Sebastião, c no armo de
1562, tomando o Cardeal Infante D. Henrique a tutoria
de el-Rei menor, o a rcjíencia do reino, lhe apresentou
Lourenço Pirez de Távora liuns apontamentos sobre vá-
rios ojjjectos do governo, em hum dos quaes se recom-
mendava o descobrimento de Tombuctu, e a escolha de
pessoas aptas para esta empreza.
No mesmo reinado (anno de 1569) se fez notável a ex-
pedição de Francisco Barreto, e de seu successor Vasco
Fernandes Homem ás terras de Monomotapa, e ás minas
de Chicova, Rutroque, Chicanga, Maçarás, á-c. Nem foi
menos útil para o conhecimento de huma parte da Africa
a importante expedição (em 1574 e 1575) a que foi man-
dado Paulo Dias de Novaes, digno descendente do intré-
pido Bartholomeu Dias, para o descobrimento das terras
de Angola, e fundação deste reino Portuguez, a que logo
depois, e pelos tempos adiante acrescerão as terras de
Benguella (em 1G17), e os vários outros presídios, e dis-
trictos nos respectivos sertões, resultando de tudo isto
os conhecimentos c informações, que hoje temos daquella
parte de Africa.
Finalmente a exploração dos sertões Africanos, e o des-
cobrimento de hum caminho para communicação da costa
Occidental com a oriental, estava de tal modo, e esteve
sempre no animo, e no intento dos Portuguezes, como
moslrão os factos, (|ue havemos indicado, e os m;ns de
que agoi'a fazemos menção.
No anno de iOOG o Governador de Aiiiiola D. Manoel
Pereira Forjaz, inlcnlandu realisar aquella communica-
lado da carta, que escrevo aos VortXKjiiezes, lhes será necessário ai-
gúus instrumentos, e ofjulhas, e cartas de viarear, c estrelabios, lhos
enviareis, e assy húuin reqimento do modo que teram em descobrir,
e escrever as derrotas e alturas do que caminharem ». (Existe ;i caria
original tlc el-I{ei a 1). João de Castio, o as (■(■|]iias (Hk; a acoiiipa-
iiliárão, na minha Collecmo.J
TOMO V 40
242
ção, nomeou para a execução do projecto a Balthazar Re-
bello (ou Pessoa) de Aragão, homem capacissimo para a
empreza, tanto pelo seu valor, como pelos conhecimentos
que tinha do sertão. Elle com effeito começou a viagem,
e tinha já penetrado ao interior, quando se vio obrigado
a retroceder, para acudir á fortaleza de Cambambe, pouco
antes fundada (em 1603), e ova sitiada por hum Sova vi-
sinho, colligado com os negros da provincia do Mosseque.
No mesmo século xvn, no anno de 1648, sendo Angola
libertada, e limpa de Hollandezes pelo illustre Capitão Sal-
vador Corrêa de Sá, se offerecia este a el-Rei D. Pedro II
para hir reduzir á obediência de Poitugal o reino de Patê
na baixa Ethiopia oriental, que se tinha rebellado, e para
abrir commumcamo desde Cnamá e Monomotapa até An-
gola por terra: projecto e offerecimento, que a inveja e
a ingratidão da carte frustrou, como outras vezes tinha
feito ao que podia parecer glorioso a este benemérito fi-
dalgo, diz hum escriptor judicioso e contemporâneo (43).
Entre os annos de 1676 a 1(580, tendo Ayres de Salda-
nha de Menezes e Sousa o governo de Angola, intentou
abril" communicação por terra até BengueUa, e de Ben-
guella á contra- costa de Sena. E postoque para esta em-
preza se oífereceo o Capitão José da Rosa, que logo sahio
(13) Vem aqui a propósito, pela ordem chronologica, notar o facto
que nos refere Mr. Jomard nas suas Remarques et recherchcs géogra-
fiques sur le voyarje de Mr. Caillié, Sx.c. « Se exceptuarmos (diz elle)
Leão, Mouro nascido em Granada, e os Poriuguezes de que só temos
noticias incertas, transmittidas por Marmol, e Barros, o primeiro
Europêo, que chegou a Tombuctu, foi o Francez Paulo Imbert, nas-
cidc em Sables-d'Olonne, isto he, na mesma provincia que Renato
Cailliê. A sua viagem he anterior a 1670. Elle acompanhava seu
amo, Portuguez renegado, enviado a Tombuctu pelo Governador de
Tafdet»: aonde achamos notável, que o douto escriptor nomeie o
Francez Imbert como primeiro Européo, que chegou a Tombuctu,
sem advertir que o Portuguez, amo de Imbert, naturalmente hiria
adiante do seu criado, e entraria primeiro na cidade!
243
de Massangano com esse destino, encontrou tantas e taes
diííiculdades, e tanta opposição nos Sovas que dominavão
as terras da sua passagem, que se vio obrigado a retro-
ceder (14).
Em 1798, estando D. Rodrigo de Sousa Coutinho (que
depois foi Conde de Linhares) no Ministério dos Negó-
cios da Marinha e do .Ultramar, quiz este illustre Minis-
tro renovar a antiga, e tantas vezes intentada empreza da
abertura da communicação por terra entre as duas costas
Occidental e oriental de Africa: para cuja execução de-
signou a Francisco José de Lacerda e Almeida, Doutor
em mathematica, nomeando-o para Governador dos Rios
(14) Seja-nos pemiittido copiar aqui o que no anno de 1663 es-
crevia o Padre Manoel Godinho, na importante Relação do novo ca-
minho, que fez por terra e mar, vindo da índia para Portugal, im-
pressa em Lisboa em 1665: «O caminho de Angola (diz elle) por
terra á índia não he ainda descoberto, mas não deixa de ser sabido,
e será fácil em sendo cursado : porque de Angola á lagoa Zachaf
(que fica no sertão da Ethiopia, e tem de largo quinze léguas, sem
até agora se lhe saber o comprimento), são menos de duzentas e cin-
coenta léguas. Esta lagoa põem os cosmógrafos em 15° e oO'; e se-
gundo hum mappa que vi, feito por hum Portuguez, que andou
muitos amios pelos reinos de Monomotapa, Manica, Butua, e outros
daquella Cafraria, fica esta lagoa não muito longe do Zimhaué, quer
dizer, corte de Mesura, ou Marahia. Sabe delia o rio Aruui, que por
cima do nosso forte de Téte se mette no rio Zambeze. E também o
rio Chire, que cortando por muitas terras, e ultimamente pelas do
Rondo, se vai ajuntar com o rio de Cuamá para baixo do Sena. Islo
supposto, digo agora: qu3ni pretender fazer este caminho de Angola
a Moçambique, e d'aqui á índia, atravessando o sertão da Cafraria
deve demandar a sobredita alagôa Zachaf, e em a achando, descer
pelos rios aos nossos fortes de Téte e Sena; destes á barra de Qui-
limane, de Quilimane a Moçambique, &c. Que haja a tal alagôa di-
zem-no não só os Cafres, senão Portugnezcs, que já lá chegarão,
navegando pelos rios acima, e por falta de premio se não tem des-
coberto até agora este caminho. As condições que devem concorrer
em seu descobridor, o poder que ha de levar, o modo com que se
deve haver pelas terras por que passar, disse já em outro papel, que
se me pedio para bem do descobrimento». (Dita Relação, cap. So.")
de Sena, d'onde devia partir a expedição. Lacerda foi
tomar o seu governo, e havendo-se munido dos meios,
e instrumentos necessários, e tomadas as possiveis in-
formações e noticias dos paizes que hia percorrer, se pôz
a caminho para o interior. Chegando porém ás terras do
Rei Cazembe (que parece serem o ponto central entre as
duas costas) ahi falleceo: e postoque nos últimos mo-
mentos da vida encommendou a seus companheiros a
continuação da empreza, elles comtudo não annuírão a
esta recommendação, e o descobrimento ficou sem ulte-
rior effeito (15).
Finalmente no anno de 1807, sendo Governador e Ca-
pitão General do reino de Angola o illustre, douto, e ze-
loso fidalgo António de Saldanha da Gama, hoje Conde
de Porto Santo, se realisou, de mandado delle, a primeira
expedição de Loanda á contra-costa, a qual voltou no anno
de 1809, trazendo a embaixada dos MoUiias, nação que já
commerciava com Moçambi(|ue. Immediatamente enviou
o digno Governador (Hitra expedição com ordem expressa
de hir até Moçambique, o que effectivamente se executou,
voltando esta segunda expedição a Loanda com cartas de
Moçambique, estando já a governar Angola José de Oli-
veira Barbosa (16).
(15) Temos por noticia fidedigna, que na livraria do Sr. Conde
de Linhares existe a Relação circunistanciada desta viagem com os
planos, instrucções, e documentos a ella relativos. Pôde porém en-
tretanto ver-se a obra intitulada «Considerações politicas, e commer-
ciaes sobre os descobrimentos e possessões dos Portuguezes na Africa
e na Ásia», por José Accursio das Neves. Lisboa, 1813, em 12.
(16) Vej. a Memoria do Sr. Visconde da Carreira, publicada no
«Observador Lusitano», impresso em Paris no anno de 1814.
Na Historia da naverjação, de J. H. de Linschot, HoUandez, às
Índias orientaes, Amsterdam, 1619, no cap. 4.°, falando o auctor de
Moçambique diz, que das minas de Çofala não distão as de Angola
na contra-costa mais de trezentas léguas, e que os negros de Angola
vão muitas rezes a Çofala jior terra.
245
Dirá porventura alguém que todas estas noticias, (jue
aqui temos ajuntado, são de pouco valor, c interesse,
porque emfim ainda se não conseguirão grandes adian-
tamentos na geografia de Africa, nem no conhecimento
dos povos que a habitão, nem nos outros muitos objectos,
que deverião concorrer para a civilisação de tantas nações
barbaras, e de hum tão extenso continente. Nós o confes-
samos com magoa; mas perguntamos ao mesmo tempo
aos sábios estrangeiros, que nos lanção em rosto a nossa
ignorância, e a nossa incapacidade do século xv, pergun-
tamos, digo, se elles, que desde o fim do século xvi co-
meçarão a apossar-se de nossas conquistas, e a despojar-
nos do fructo dos nossos trabalhos, tem sido mais felices,
e tem adiantado muito mais que nós no conhecimento
da Africa interior? Elles apenas ha poucos annos poderão
ver essa mysteriosa cidade de Tombactu tão procurada,
tão requestada, e tão fatal aos seus indagadores. Mungo-
Parck não chegou a entrar nella: a pintura que elle faz do
orgulho, perfídia, e barbaridade dos Mouros das visinhan-
ças, explica bem huma das razões por que as emprezas ao
interior de Africa são tão difficeis, e arriscadas. O Major
Laing, que em 1826 penetrou até Tomhuctu com a pro-
tecção do Bachá de Tripoli, foi obrigado a sahir logo
occultamente, e pouco depois foi assassinado pelos Fel-
lans, horda potente e bellicosa, que reina quasi exclu-
sivamente nos immensos desertos da Africa central. O
Capitão Clapperton, que emprendeo a mesma viagem,
teve igual sorte antes de chegar a ver Tomhuctu. Mr. .To-
manl, no lugar que acima citámos, faz huma lista do (jua-
renta c dous viajantes, que desde 1588 intentarão reco-
nhecer os paizes da Africa interioi", o roíloclc (]uc só hum
pequeno (c bem petiueno) numero dclles deixou de suc-
cumbir no meio da sua carr-eiía, sendo victimas da em-
preza a (pie se havião arrojado.
í]oncluiiemos este assumiilo das viagens de Africa com
246
as palavras de hum escriptor uão suspeito: « Os Portu-
guezes (diz Pinkerton) estabelecerão a oeste em Africa di-
versas feitorias. . . as relações dos missionários aiigmen-
tárão os conhecimentos da geografia Africana: comtudo
por hum concurso de circumstancias pnrliruhires, estes
conhecimentos tem sempre sido mui limitados, e o seu
aperfeiçoamento tem até o presente experimentado obstá-
culos quasi insuperáveis » .
Estes obstáculos, estas difficuldades que o escriptor
chama, com razão, quasi insuperáveis, tem por causas
principaes a vasta extensão dos desertos de arêa; a al-
tura das cadèas de montanhas; as guerras quasi conti-
nuas, que fazem entre si as pequenas tiibus Africanas,
mais animosas e mais feroces que as da America, e menos
fáceis de se intimidarem á vista das armas Europêas; a
falta de mares interiores, ou de grandes rios navegáveis,
que offereção facilidade de levar ao centro do paiz os
benefícios da industria, e do commercio, á-c. Demais:
os habitantes daquellas vastíssimas legiijes são extrema-
mente supersticiosos e tenacíssimos de suas praticas re-
ligiosas; e nos lugares aonde o MahumetisnK» tem che-
gado, e se tem misturado com as grosseiras superstigijes
do paiz, participão os miseráveis habitantes dos vicios in-
natos dos seus mestres, e não deixão de mostrar por todos
os modos o ódio e extrema aversão que elles lhes tem
inspiíado aos Europèos. Acresce ainda em geral, que os
homens selvagens e bárbaros de quasi todos os paizes do
mundo moslrão constantemente huma quasi invencível re-
pugnância a alterarem o seu modo de viver, e a adopta-
rem a nossa civilisação. O Christianismo inspirado pelos
missionários das differentes nações da Europa, tem feito
na verdade muitos Christãos, mas pode dizer-se que não
tem feito hum só homem civihsado, que adopte os nossos
costumes, e que viva ao nosso modo. « Os estabelecimen-
tos Portugiiezes (diz hum iilustre Portuguez, em huma
247
Memoria manuscripta, falando cios nossos estabelecimen-
tos de Africa), os estabelecimentos Portuguezes, que ali
existem ha séculos, não tendo influído senão impei cepti-
velmente nas povoações lisinhas, fazem desconfiar da
possibilidade de civilisação naquella parte do globo, que
parece destinada a ser o domicilio eterno da barbari-
dade)^ (17).
Em verdade, que se não fossem tantas, tão fortes, e tão
invencíveis as causas da ignorância, em que ainda labora-
mos a respeito das terras da Africa central, e das difficul-
dades que se tem encontrado na sua civilisação, parece
natural que os estrangeiros, no espaço de dous séculos e
meio, tivessem já suprido a incapacidade dos Portugue-
zes, e dado grandes passos na obra da civilisação dos Afri-
canos. E comtudo ella se conserva quasi estacionaria, e
tal (com pequenas diíferenças), qual a deixarão os Portu-
guezes pelos fins do século xvi.
Lancem-se os olhos a huma carta de Africa, e se contie-
cerá logo o mui pouco que se tem adiantado na geografia
desta parte do mur/lo. Os estabelecimentos HoUandezes,
Inglezes, Francezes, e Dinamarquezes na costa occidental
tem na verdade dado a estas nações, em diííerentes tem-
pos, grandes interesses commerciaes. Com esse intento
he que ellas se lançarão á porfia bumas sobre outras, e
todas sobre os Portuguezes, cuja riqueza desabava o seu
ciúme, e a sua cobiça. A civilisação dos povos indígenas
do interior era então objecto mui secuiidaiio para os go-
vernos dessas nações: e quando ha pouco mais de meio
século começarão a tomar mais a peito esse objecto, en-
contiárão logo, e tem continuado a encontrar as grandes
difficuldades, que oppõem a natureza do ])aiz, o caiacter
e costumes dos povos, e as outras circunislancias que dei-
xámos indicadas.
(17) Memoria manusciipla do Sr. Conde de Porto Santo.
248
O grande estabelecimento do cabo da Boa Esperança
termina ao norte a huma distancia, que se pode chamar
insigniíicante, com respeito á grande extensão do conti-
nente Africano: e no conhecimento da Cafraria, e de toda
a costa oriental, bem pouco se tem adiantado além do que
deixarão escripto os Portuguezes nas relações de seus
numerosos naufrágios, e na descrii)ção dos paizes em
que tem e conservão domínio, e estabelecimentos per-
manentes.
Finalmente a Abyssinia he ainda hoje em grande parte
conhecida também pelas relações dos Portuguezes, que
a frequentarão, visitarão, e habitarão por muitos annos,
como he sabido, e o que os modernos viajantes de outras
nações tem pretendido acrescentar, ou he tomado dos es-
criplos Portuguezes, ou consiste em algumas noticias do
estado moderno daquelles vastos paizes, ou finalmente na
indagação da historia natural da sua constituição física, e
dos seus produclos, objectos, que no século xvi erão tão
novos para os Portuguezes, como para quaesquer outras
nações da Europa.
Agora que temos refeiido o que ainda nos consta das
nossas antigas viagens por terra á índia, e das tentativas
que fizemos para o conhecimento das terras e povos do
interior de Africa, pediria o nosso assumpto, que désse-
mos também noticia das viagens por terra executadas
pelos Portuguezes, vindos da índia até á Europa. Mas
para satisfazermos cabalmente a este intento, seria neces-
sário escrever obra mais volumosa, e talvez repetir o que
os próprios viajantes deixarão escriplo em suas relações
impressas, ou manuscriptas, das quaes todavia seria con-
veniente fazer huma collecção ordenada, e quaiilo podesse
ser completa.
Limitar-nos-hemos pois, por agora, a dar huma breve
idéa das principaes viagens de que temos achado memoria
nos nossos escriptores, e isto bastará para satisfazer ao in-
249
tento que levámos em colligir estas noticias, que he mos-
trar que não somos nós os Portuguezes tão incuriosos, ou
tão ineptos, como nos querem fazer os estrangeiros.
Seciilo XVI
1315.— Tendo o grande Alimquerque posto á obediên-
cia de Portugal a rica cidade de Ormuz, e recebido nella
com grande solemnidade a embaixada do Schach Ismael
Rei da Pérsia, despachou com o mesmo caracter de Em-
baixador á corte de Hispaiwn aFernamGomes de Lemos,
senhor da Trufa, o qual tendo concluído a sua missão, se
achava já de volta em Cochim no mez de Janeiro de 1517,
e d'ahi escreveo a el-Rei D. Manoel, mandando-lhe hum
livro, em que dava conta da sua embaixada, e do cami-
nho que fizera, como consta da própria carta por elle di-
rigida a el-Rei com a data de 4 de Janeiro de 1517, que
se conserva no Archivo da Torre do Tombo, no Corpo
Chronologico, pari. 1.=^, maç. il\.°, num. 4. (Vej. Góes,
Chronica de el-Rei D. Manoel, pari. 4.% cap. 9.° e 11.^)
Do livro porém, que continha a relação da embaixada e
caminho não sabemos que exista.
15^0. — Neste anno, entrando na AbyssiniaD. Rodrigo
de Lima, Embaixador de el-Rei D. Manoel áquelle impé-
rio, entrou com elle entre outros Portuguezes o Padre
Fi'ancisco Alvares, natural de Coimbra, que de Portugal
havia sahido como Capellão da embaixada de Duarte Gal-
vão. Este ecclesiastico residio na Abyssinia cousa de seis
annos, até o de 1526, e escreveo: « Verdadeira informa-
rão das terras do Preste João)), obra rara, que se impri-
mio em Lisboa no atino de 1540, em foi., c que foi tra-
duzida em varias linguas, e inserida por Hamuzio na sua
Cullecção, em Veneza, 1550, com o liliilu: a Viagem á
Elhiopia por Francisco Alvares», d-c.
Pelo mesmo Iciiqio NÍajava pnr diversos paizes da Ásia
250
O Capitão Gregório de Quadra, de que acima . fizemos
menção.
1522. — A este anno se deve referir o principio das via-
gens de António Tenreiro, segundo o que elle mesmo es-
creve na sua bem conhecida Relação, ou Itinerário. Saliio
elle de Ormuz em companhia de Balthazar Pessoa, que de
mandado do Governador da índia D. Duarte de Menezes
hia por Embaixador á Pérsia. Esteve Tenreiro na Pérsia,
d'onde passou á Arménia, veio á Syria, ao Cairo, a Ale-
xandria, e d'ahi á ilha de Chipre. De Chipre voltou ao
continente, e logo a Ormuz por terra, e ficando ahi cinco
ou seis annos (como elle mesmo refere no cap. 58.°),
tornou a sahir para vir por terra a Portugal, com recados
a el-Rei sobre a armada do Turco, sendo Governador da
índia Lopo Vaz de Sampaio, e Capitão de Ormuz Chris-
tovão de Mendoça (18). Sahio de Ormuz pelos fins de
Setembro de 1528, e chegou a Portugal em Maio do anno
seguinte. He mui curioso o seu Itinerário, que se impri-
mio em 1560, e depois por varias vezes, sendo a ultima
em 1829, junto com a Peregrinação de Fernam Mendes
Pinto. (Vej. Castanheda, liv.?.", cap. 71.°; Andrade, Chro-
nica de D. João III, part. 2.^, cap. 49.°; e os Anna^s da
Marinha Portugnezn, i)ublicados no presente anno de
1839, pag. 394.)
A morte do Conde Almirante Vice-Rei da índia veio an-
nunciada a el-Rei D. João III i)or hum expresso enviado
da índia por terra de mandado de D. Henrique de Me-
nezes, como refere Quintella, Annaes da Marinha Por-
tiigueza, ao anno de 1520.
1537. — São mui conhecidas de nacionaes e estrangei-
ros as viagens, ou (como elle mesmo lhe chama) as Pere-
(18) De Memorias contemporâneas consta que Tenreiro, chegando
da índia, esteve a ponto de ser assassinado por hum F. Mello, de
Castello de Vide, por ter trazido cartas a el-Rei contra seu pai. Ten-
reiro teve huma pensão de SO^^OOO réis mensaes.
I
m
grinações de Fernam Mendes Pinto, começadas em 1537,
e continuadas por vinte e hum annos até o de 1558, com
tanta, e tão miúda e variada relação de casos e successos;
com tão curiosas descripções de lugares e regiões ; de po-
vos, e costumes; e com tantas e tão importantes noticias
úteis á navegação e ao commercio, que mereceria huma
particular e extensa menção, se a própria historia destas
viagens não tivesse sido muitas vezes impressa, e recen-
temente em 1829 na hngua Portugueza, em que foi es-
cripta; e se não se achasse ha muito tempo traduzida em
algumas línguas estrangeiras, e publicada nas Colleccues
de Viagens. A multiplicidade e singularidade das aventu-
ras, que este escriptor refere, a estranheza dos povos e
nações que vio, e dos seus ritos, costumes, crenças, opi-
niões e linguagens, os incommodos e riscos que correo,
e de que escapou são e salvo, fizerão com que alguns lei-
tores e escriptores desconfiassem da veracidade das suas
relações. Hoje porém está mais desvanecida esta descon-
fiança, e as indagações dos mais ousados viajantes mo-
dernos tem verificado muitos dos factos, que ao principio
parecião mais estranhos e duvidosos.
1540. — Veio da índia por terra António de Sousa, man-
dado por D. Estevam da Gama. (Couto, dec. 5.% liv. 7.",
cap. 1.^)
1548. — Neste anno passou á Índia Fr. Gaspar da Cruz,
religioso dominicano, natural de Évora. O zelo da religião
o levou á China, e foi o primeiro, ou hum dos primeiros
missionários Portuguezes, que entrarão naquelle império.
Temos delle liuma Relação da Chuta, e de suas particu-
laridades, que se imprimio em Évora no anno de 1570,
e segunda vez em Lisboa em 1820 com as Peregrinações
de Fernam Mendes Pinto, de que acabámos de fazer me-
moria.
No Códice 840 da Bibliothcca Publica Portuense con-
serva-se o « Itinerário da ilha de Ormuz até Tripoli de
252
Berbéria, e (Vahi até a Rochella de França, de Martim
Affonso » .
Este viajante era medico: partio de Ormuz a 25 de Ju-
nho de 1565, e veio a Portugal atravez da Pérsia e Ásia
menor com cartas importantes. Sua derrota foi de muito
circuito por causa da guerra que havia entre Turcos e
Persas, a qual o obrigou a deixar o curso regular das ca-
ravanas, sem que nunca fosse conhecido, nem delle se
desconfiasse. Descreve largamente os lugares por onde
passou, com bom conhecimento da geografia. Fala de
Riscóo, Jarde, Benvit, Adistan,Mahabnd, C/iaUabad, Cai-
xam. Com, Sava, Casliii, Sollania, Meaná, Turquina,
Condi, Tabiis, Sn/ian, Van, Vastan, Sory, Tadiian, Orfrí,
Halep, árc.
. . . ? — Na Historia da Índia no tempo em que a gover-
nou o Viso-Rei D. Luiz de Athaide, escripta por António
Pinto Pereira pelos annos de 1570, e impressa em 1616,
no liv. 2.°, cap. 13.° faz o escriptor menção de hum Isaque
do Cairo, Judeo, que da Índia tinha vindo duas vezes por
terra a Portugal. Nada mais sabemos destas viagens,
nem temos achado noticia da sua verdadeira data, que
sem duvida pertence ao século xvi (19).
. . .? — O mesmo diremos de outra viagem, de que nos
dá noticia o Padre Fernam Guerreiro na sua Relação An-
ual, ^U., liv. l.'\ cap. 1.°, pag. 3, dizendo, que hum An-
dré Pereira, hindo de Portugal á índia por terra, e pas-
sando por aquella parte da Caldêa, que corre de Babylonia
para o estreito de Baçord, onde o Eufrates e o Tigre en-
(19) Estando el-Rei D. João III em Almeirim, em Janeiro do I5ii,
veio da índia por terra iium Judeo, trazendo recadq a el-Rei, como
o Viso-Rei D. Garcia de Noronha fallecôra em véspera de Pascoela
do anno anterior de 1540, succedendo-lhe D. Estevão da Gama, que
ília na segunda successão, por ter já vindo para o reino Martim
AíTonso de Sousa, que era o nomeado na primeira, &c. (Relações
de Pêro de Alcáçova Carneiro, manuscriptas.)
253
trão no mar da Pérsia, ahi tratara com os Cliristãos da-
quellas partes, e ainda depois voltara a ellas para acom-
panhar hum Bispo, que elles querião mandar ao Papa, e
a el-Hei de Portugal.
1593. — Neste anuo passou ;í índia o dominicano Fr.
Manoel dos Santos, o qual voltando a Portugal por terra,
escreveo a sua viagem com o titulo de Curioso Itinerá-
rio, ác, manuscripto, de que faz menção a Bibiiotheca
Histórica Portugueza, pag. 33 da 2.^ edição.
Século XVII
O século xvn não he menos notável que o precedente
na historia das nossas viagens. Logo no anno de 1602
occorre a importante, e, para aquelle tempo, diíiicil via-
gem do Jesuíta Portuguez Bento de Góes. Era este reli-
gioso varão natural de Villa Franca na ilha de S. Miguel;
e como tivesse conhecimento das linguas orientaes, e es-
pecialmente da Persiana, pretendeo e conseguio de seus
superiores ser mandado ao descobrimento do Gran-Ca-
tayo, paiz que então desafiava a curiosidade dosEuropeos.
Partio com effeito da corte doMogol, em cujas províncias
tinha pregado o Evangelho, e viajou mais de três annos
pelos sertões da Ásia, hindo sempre pelo norte do império
do Mogol, desde o paiz dos Usbeks para o oriente até á
China, e vindo a conhecer em resultado da sua trabalhosa,
e dilatada viagem, que o chamado Gran-Cataijo era o pró-
prio império da China, e não hum paiz diverso, como mui
geralmente se acreditava. Na China íalleceo Góes em 1607.
Vem a sua viagem inserta na Relação do Padre Trigaut, e
fazem delia menção frequente os esci'iplores Portuguezes.
No mesmo anno de 160i2 fazia a sua viagem á Pérsia o
doulo augustiniano Fr. António de Gouvêa, que depois de
ter acoin|)aiihado ás sei'ias do Malabar o Arcebispo D. Fr.
Aleixo, Ibi mandado áquelle império como Embaixador
254
do Governador da índia Ayres de Saldanha. Ali adquirio
a estimação do Sha-Abhas, fjue o enviou em companhia
de hum Embaixador seu, que mandava a Roma, e á corte
de Hespanha. Voltou á Pérsia, e dahi á Europa, atraves-
sando os temerosos e arriscados desertos da Arábia. Che-
gado que foi a Alepo, embarcou para Marselha, e sendo
tomado por corsários, ou piratas Argelinos, esteve ca-
ptivo em poder dnquelles bárbaros. Destas viagens e tra-
balhos fala elle mesmo na Relação da jornada do Arce-
bispo D. Fr. Aleixo de Menezes ás serras do Malabar,
impressa em Coimbra em 1606, em foi., aonde também
se lêem curiosas e importantes noticias sobre os povos
que habitão aquellas serras, e sobre os seus costumes, e
ritos religiosos, á-c.
Em 1606 e 1607 temos noticia da viagem de Nicoláo
d'Orta, natural de Santo António do Tojal, que sahio de
Gôa com destino de vir a Portugal, por terra. Nos prin-
cípios de Agosto de 1606 estava na fortaleza de Corno-
rom, d'onde passou a Lara, Xiras, Romus, Bagadet, Ana,
Taibe, e Alepo, aonde entrou a 16 de Janeiro de 1607.
D'ahi vindo por Alexandreta, chegou poi' mar a Marse-
lha, e logo a Madrid, d'onde el-Rei D. Filippe o tornou a
mandar á índia. Escreveo o seu Itinerário, do qual existe
na Bibliotheca Publica de Lisboa hum exemplar incom-
pleto. (Vej. Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana.)
Por esses mesmos tempos viajava por terra para a Eu-
ropa Fr. Gaspar de S. Bernardino, missionário na índia,
o qual naufragando na ilha de S. Lourenço, passou a
Mombaça, cabo de Rosalgate, e Ormuz; d'onde resol-
vendo continuar sua viagem por terra, visitou a Pérsia,
Caldêa, e Syria até Chipre. D'ahi foi ver os Lugares San-
tos, e voltando a Chipre, Cândia, Zante, Cephalonia, e
Corfu, se recolheo por ultimo a Hespanha, e logo a Por-
tugal. Escreveo o seu Itinerário, cuja primeira parte se
imprimio em Lisboa em 1611, em 4.°
Temos noticia que neste mesmo anno de 1611 veio da
índia a Portugal, por terra, D. Álvaro da Costa, de cuja pes-
soa e viagem não alcançámos in<lividual informação (20).
Os annos de 10:24 e 102G são notáveis na historia da
geografia, e das viagens Portuguezas, pelas duas qae fez
o Padre António de Andrade, Jesuíta, ao descobiiraento
do Tibet, estabelecendo ali missão Ghristã, e Catholica. Na
segunda destas viagens (anno de 1626), em que tbi acom-
panhado do Padre Gonçalo de Sousa, e cuja Relação se
imprimio em Lisboa em 1628, fala elle expressamente da
cidade de Caparangua, aonde residia o Rei de Tibet, e
aonde estes padres tinlião chegado em menos de dous
mezes e meio, partindo de Agra (no Defili), e passando
por Sirinagar. Fala igualmente do paiz de Ussangue, oui
Ussang, do qual diz que dista quarenta jornadas de Ca-
paranguãj e vinte da China, &g. (Devem ver-se as pró-
prias Relaç(5es, e a NoiíveUe Rdation de la Chine, do Padre
Magalhães, traduzida em Francez, e impressa em 1690,
de que mais adiante falaremos.)
Pertence ao mesmo anno de 1624 a viagem, e residên-
cia na Abyssinia do Padre Jeronymo Lobo, Jesuita Por-
tuguez. Foi elle mandado ás missões da índia, para onde
partio, e chegou a Gôa em 1622: e vindo no dito anno
de 1624 a Moçambique, d'alii entrou no paiz dos Galas,
penetrando até á Abyssinia, aonde viveo muitos annos,
não sem grandes trabalhos e perseguições. A serie das
suas posteriores aventin^as, os nanfr;igios que fez, os
grandes incommodos que sofreo, emlini a sua vida até
o anno de 1658, em que ficou em Portugal, são cousas
dignas de curiosa reflexão. Escreveo o seu Itinerário, que
(20) O Códice 482 da Bibliotheca Publica Portuense he cópia da
viagem de D. Álvaro da Cosia, com este titulo: "Tratado da iiia-
gem, que fez da índia oriental á Europa nos aitiios de 1010 e IGli
por via da Pérsia e da Turquia . . . com relação ...da Terra Santa . . .
e geral descripção da índia oriental, e navegação dos Portiiguezes ».
tem merecido a attenção dos sábios, e eruditos, principal-
mente na parte que diz respeito ás cousas da Abyssinia,
e que se acha traduzido em liiglez, em Francez duas ve-
zes, e em Italiano.
Em 1635 foi mandado á missão do Tibet o Padre João
Cabral, outro Jesuíta Portuguez, natural de Celorico da
Beira, o qual fez caminho pov Bengala, evitando a difficil
passagem da serra, por onde o Padre Andrade tinha en-
trado na Tartaria. Escreveo também a Relação copiosa dos
trabalhos que padeceo tia missão do Tibet. Obra, que se-
gundo Barbosa Machado, foi mandada a Roma no referido
anno de 1635.
He digno de mui particular commemoração nesta nossa
breve Memoria o Padre Gabriel de Magalhães, também
Jesuita Portuguez, que depois de estar por alguns annos
nas missões do Japão, passou á China, e a correo quasi
toda desde o anno de 1640 até 1648, em que se estabe-
leceo em Pekin, residindo ahi por quasi vinte c nove an-
nos até o seu fallecimento, e deixando-nos huma Relação
da China das mais exactas que se havião escripto até o
seu tempo. Esta Relação foi traduzida em Francez com
notas, e explicaçí^es, e impressa em 1090, em 4.°
Alguns annos antes destes, em que vamos, missionou
na Abyssinia o Padre Manoel de Almeida, Jesuita Portu-
guez. Das cartas, que elle annualmente escrevia ao seu
Geral, impressas em Roma, em Italiano, no anno de 1629,
e de outras Memorias de muitos Jesuítas, he que o Padre
Tellez compilou a Historia geral da Ethiopia alta ou
Preste João, impressa em Coimbra em 1660, em foi.,
aonde se vê o largo conhecimento que os Portuguezes ti-
nhão daquelle império por elles tão frequentemente pra-
ticado.
Em 1663, o Padre Manoel Godinho, natural da Villa de
Montalvão, e religioso da Companhia (depois secularisado
Prior de S. Nicoláo de Lisboa, e por ultimo de Loures),
257
tendo sido mandado ás inissõrs da índia, veio por terra
a Portugal de mandado do Vice-Rei António de Mello de
Castro, e segundo parece, com alguma secreta e impor-
tante commissão. Escreveo Relação do novo caminho que
fez por terra e mar vindo da índia para Portugal no
anno de 1663, impressa em Lisboa em IGOo, 4.° Obra
curiosa, que merece ser lida dos eruditos.
TOMO V
NOTA
EM QUE SE MOSTRA, QUE OS PORTUGUEZES,
AO PASSO QUE HlIO DESCOBRINDO AS COSTAS E TERRAS
AFRICANAS, SE NÃO DESCUIDAVÃO DE INSPIRAR
AOS SEUS HABITANTES
IDÉAS MORAES, E PRINCÍPIOS DE CIVILISAÇÃO
NOTA
EM QUE SE iMOSTRA, QUE OS PORTUGUEZES,
AO PASSO QUE HIÃO DESCOBRINDO AS COSTAS E TERRAS
AFRICANAS, SE NÃO DESCUIDA VÃO DE INSPIRAR
AOS SEUS HABITANTES
IDÉAS MORAES, E PRINCÍPIOS DE CIVILISAÇÃO
No artigo da Revista Enciclopédica do mez de Feve-
reiro de 18:28, que tem por titulo, Noticia sobre a civili-
sação de Africa, por Mr. Chauvet, lemos hum paragrafo,
que traduzido em Portuguez, diz assim:
a Por espaço de tres séculos nunca jamais os Europêos
tiverão o pensamento de communicar aos Africanos al-
guma idéa moral, ou alguma das artes praticadas na Eu-
ropa. Bem longe disto, somente tratarão de enganal-os,
para melhor os reduzirem á escravidão. Os Portuguezes
comludo enviarão alguns missionários ao Congo : e posto-
quc os ecclesiasticos empregados nesta missão fossem
qiiasi tão ignorantes como os povos, a quem hião cate-
quizar, tinhão comludo Uúlo numerosos proselytos, prin-
cipalmente entre os chefes; e com alguns esforços mais
que se fizessem, hnma grande parte de Africa seria hoje
Christãa: mas nesse caso, adcos trafico! Este resultado
foi logo presentido, e a civilisação de Africa foi sacrifi-
cada ao systema colonial. ?>
Parece incrível, que em tão poucas linhas podesse este
262
escriptor ajuntar tantos erros, e conlradiccões. Mas (já ou-
tras vezes o temos dito) assim se fazem livros em França !
A estranha ligeireza de alguns escriplores desta nação não
lhes permitte averiguar com paciência, e profundar os
objectos sobre que intentão escrever; e a presumpção,
que tem da sua superioridade litteraria, inspirando-lhes
o desprezo dos outros povos, faz que ora occultem por
ignorância ou malicia o que lhes pôde ser honroso; ora
alterem e transformem os factos, e os apresentem por
huma face enganosa e falsa, para deprimir, ou escurecer
o que nelles ha de bom, louvável, e glorioso.
Nas poucas palavras de Mr. Chauvet. que deixámos co-
piadas, he hum erro dizer, que por três séculos nunca os
Eiiropros íiverão o pensamento de inspirar aos Africanos
alguma idéa moral; e he liuma contradicção acrescentar
logo, que osPortuguezes enviarão missionários ao Congo,
para instruir aquelles povos rudes è bárbaros na santa dou-
trina do Cliristianismo.
He outro erro dizer, que os missionários Portuguezes
erão quasi tão ignorantes como os povos Africanos; e pa-
rece outra contradicção confessar ao mesmo tempo, que
elles fizerão numerosos proselytos, principalmente entre
os chefes, e que com alguns esforços mais que se fizessem,
huma grande parle de Africa seria hoje Christãa.
He ainda outro erro grosseiro afiirmar, que o trapco
dos negros foi motivo para se abandonar a instrucção
Christãa dos Africanos, e que a civilisação de Africa foi
sacrificada ao systema colonial, d-c. e^c.
Restabeleçamos os factos sobre fundamentos verídicos,
e inconcussos, e ficarão plenamente convencidos os erros
do auctor.
He ponto incontroverso, assentado, sem discrepância
alguma em nossas historias antigas, e comprovado por
documentos contemporâneos, que hum dos principaes
fins, que o illustre e immortal Infante D. Henrique se
263
propoz conseguir pelos descobrimentos, de que foi pri-
meiro auctor, era trazer ao conhecimento do Evangelho
os povos bai'baros, e idolatias da Africa, e terras orien-
taes; restaurar e animai' as Cliristantlades que se dizião
estabelecidas em algumas regiões remotas, e guerrear os
Mouros, que nellas dominassem, como inimigos irrecon-
ciliáveis dos Christãos, não querendo elles mesmos abra-
çar o Christianismo, ou oppondo-se aos seus progressos.
Havia-se o Infante por obrigado de algum modo a pro-
mover por estes meios a propagação do Evangelho, em
razão do cargo que tinha de Administrador da Ordem da
Cavallaria de Nosso Senhor Jesu-Christo, a qual em sua
instituição fora ordenada para semelhantes fins; e quasi
que julgava não poder fazer boas as rendas daquelle Mes-
trado, se as não empregasse, em grande parte, no seu
verdadeiro e original destino. E como nos limites do ter-
ritório de Portugal não podesse já satisfazer os seus pie-
dosos intentos, por não haver parte alguma que estivesse
no dominio dos Sarracenos ; não só se unio aos Infantes
seus irmãos para suggerirem a seu augusto pai a empreza
de Ceuta; mas além disso, aconselhado e estimulado dos
amplos conhecimentos, que já havia adquirido na astro-
nomia, cosmografia, e náutica; e buscando com infatigável
curiosidade, tanto pelos monumentos da historia, como
por informações varias e repetidas, haver noticias das na-
ções e povos mais remotos das partes orientaes, e da pos-
sibilidade de estabelecer com elles algumas relações por
meio da circumnavegação Africana; resolveo emfim pôr
o peito a esta grande e heróica empreza, começando a
mandar á costa de Africa alguns navios, que abrissem
passagem do cabo de Nam, então limite da navegação
Europêa, para as partes do sul, c pólo antárctico.
Dissemos que estas intenções do Infante erão altestadas
não só pelos nossos mais antigos historiadores, mas tam-
bém por documentos contemporâneos.
264
A respeito dos liisloriadores, seria supérfluo trazer
aqui provas desta verdade, que deve ser notória a todos
os doutos, pelas numerosas obras dos escriptores Portu-
guezes, que escreverão sobre nossos descobrimentos, e
conquistas de Africa e Ásia, muitas das quaes se publi-
carão peia imprensa.
Entre os documentos porém bastará citar os sej^uintes:
1." A doação de 7 de Junho de 1454, em que el-Rei
D. AíTonso V doa á Ordem de Cliristo pelo seu Administra-
dor, e successores, para sempre, o espiritual das praias,
costas, ilhas, e terras, conquistadas e por conquistar, de
(kizulla, Guiné, Núbia, Ethiopia, á-c, para que faca
prover aquelles povos de pregadores, ministros e reitores
espirituaes, com aprazimento de Sua Santidade, ác. E diz
el-Rei neste seu diploma, que o Infante havia descoberto
6 conquistado aquellas costas, praias, ilhas, á-c, ^i que-
rendo trazer d Igreja de Deos Santa, e aa nossa obediên-
cia aquelles bárbaros povos, a que nunca per mar, nem
per terra C/ir islãos alguns chegar ouznroniy.
2." A Bulia do Santo Padre Nicoláo V de O dos idos de
Janeiro, anno da Encarnação de Nosso Senhor Jesu-Christo
de 1454, obtida a pedido do illustre Príncipe, c conliimada
por Calixto III em 3 dos idos de Março, anno da Encarna-
ção de 1455, na qual, fazendo-se o extracto da narrativa
do impetrante, se diz, que o Infante D. Henrique, desde
seus primeiros aniios tinha formado o projecto de inda-
gar, e descobrir os mares o costas meridionaes de Africa,
e de passar ao oriente, a fim de combater os Mahumeta-
nos, e trazer ao Christianismo os povos idolatras, que
porventura habitassem aquellas vastas regiões, ou os pai-
zes intermédios, á-c. (4).
(1) nPraeteroa (diz a Hulla) cum olirn ad ipsius Infantis perve-
nisset notitiam, quod nunqnnm, vel saltem a memoria hoininnm. non
consnevissrt perhujnsmodi Oreannm maré meridicmnlex, et orientaleí;
plagas navigari, illudiiue iiohis occiduis adeo foret incognituni, iij
265
3." A (loarão, que o próprio Infante fez á dita sua Or-
dem de Cliristo do espiritual das terras conquistadas^ e
descobertas, ou que se descobrissem, om data de 18 de
Setembro de 1 460, na qual se conforma com a narrativa
conteúda na referida Bulia, mostrando em suas palavras
quanto intentava e desejava, que o Christianismo pene-
trasse, e SC fizesse estável naquellas regiões, e (]ue a sua
doutrina e culto tivesse igrejas, templos, e ministros, que
perennemente ali o ensinassem e praticassem.
Por estes documentos, e por outros semelhantes, que
omittimos, se faz manifesto, que não só pelo decurso dos
três séculos, de que fala Mr. Chauvet, mas logo desde o
principio dos descobrimentos, e ainda antes delles, na
mente, e nos projectos do sábio e religioso Infante, en-
trou o pensamento de communicar aos Africanos alguma
idra moral, e entre as idéas moraes as mais puras, as
mais santas, e as mais capazes de fazer felizes os povos,
quaes são as do Cliristinnismo. E não somente entrou o
pensamento, senão que, tanto o mesmo illustre Príncipe,
como os Reis Portnguezes, que cm seu tempo, e depois
da sua morte promoverão e continuarão os descobrimen-
tos, effectivamente o poserão em execução com empenho
e perseverança igual á piedade, e religiosos sentimentos,
de que erão animados.
Pelos annos de 1440, dizem os nossos escriptores, que
mandara o Infante huma armada de três nãos, comman-
niillam de pailiuni illaniiii ^'ciililuis certaiii iioliliaiii halHTcnui.s:
credens se tnaxinniiii ín hoc Dco piarslare uhsequivni, si ejiis opera
et industria maré ips7im usqiie tid ludos, qui Christi nomen rolere
dicuntur, navigahUe fieret, sicqiio ctiin eis participaro, et illos in
Christiaiiorum auxilium adversiis Sarracenos, et alios liujusniodi
fidei hosles conimovere possct, ac nonmdlos rjentiles, seu paijanos,
nefandissiiiii Malininetis secta miiiiine infectai-, popnlos, inibi médio
rxistenles nniliiino dchrllnre, cisque incoíjnition sarrutissimi Christi
nomen praedirare. ac [acere pracdicari ». tVc (froras da Historia
Genealorjica, tom. I.")
266
dadas por Antão Gonsalves, Diogo AÊfonso, e Gomes Pe-
res, com ordem de proporem aos habitantes do Rio do
Ouro o aceitarem a doutrina evangélica, e assentarem
commercio com os Portuguezes.
Pelo mesmo tempo, ou ainda antes, tendo sido desco-
berto o Cabo Verde, enviou o mesmo Infante a Fernando
AíTonso como seu Embaixador ao Rei ou Senhor daquella
costa, chamado Farim, encarregando- o de fazei'-lhe igiiaes
proposições.
E se não sabemos de outras semelliantes dihgencias
praticadas pailicularmenle por ordem do Infante em ou-
tros diversos lugares, lie porque os nossos escriptores,
contenlando-se com as noticias geraes, forão omissos em
referir por menor as circumstancias, que então lhes pa-
recião de pouco interesse para a historia : mas não po-
demos duvidar de que elle procuraria satisfazer a hum
empenho, (jue era essencialmente connexo com o seu
plano, e fazia parle delle.
E aqui tem lugar, em prova dos pios e religiosos pen-
samentos do Infante, referir as palavras de Cadamosto
no cap. IO." da sua Primeira Navegação, que por certo
honrão nmito o imuKjrtal Príncipe, e conlirmão o que
delle vamos dizendo. Fala o escriptor dos Azenegues, e
suas qualidades e costumes, e logo traz este periodo:
«A estes lie que os Portuguezes aprisionavão e vendião,
e erão us melhores escravos de todos os negros: mas
qualquer que fosse o motivo, de hum certo tempo para
cá tudo se reduzia a paz, e trato de mercancia; e não
consente o Senhor Infante que se faça damno a nenhum
delles; porque espera, que tratando com os Christãos, le-
vemente se possão reduzir á nossa crença, não estando
ainda bem fiimes na féMahumetana, senão pelo que delia
tem ouvido dizer». Aonde se vê, que o Infante não duvi-
dava sacrificar os interesses do commercio dos escravos
á vantagem, por certo mais solida, de estabelecer com
267
elles communicação pacifica, e facilitar assim a sua con-
versão ao Christianismo. Exemplo tão admirável, como
raro, e que bastaria só por si para desmentir a falsa e
caUimniosa accusação que Mr. Cliauvet faz aos primeiros
descobridores, quando diz, que elles somente tratavão
de enganar aquelles povos para mais facilmente os re-
duzirem d servidão.
Em 1481, logo que el-Rei D. João 11 subio ao throno
de Portugal, mandou fundar o castello (depois cidade) de
S. Jorge da Mina, com aprazimento de Caramanza, Senhor
daquella região, a quem convidou para abraçar o Chris-
tianismo: e postoque o Príncipe bárbaro se recusou ao
convite, nem por isso deixou el-Rei de mandar que na-
quelle estabelecimento estivessem pessoas ecclesiasticas,
por cujo ministério se propagasse a doutrina evangélica
aos lugares confinantes.
Em 1485, reinando o mesmo Soberano, e descobrindo
Diogo Cam o reino de Congo, os Portuguezes, que forão
ao interior, se houverão com tanta prudência e sizudeza,
que attrahírão a bçnevolencia do Rei, e de muitos dos
principaes senhores da sua corte, e os inclinarão a favo-
recer a religião Christãa. Então quiz aquelle Príncipe Afri-
cano que em companhia do Capitão Portuguez viessem a
Lisboa alguns negros seus súbditos, com o fim de apren-
derem a linguagem, e os costumes Portuguezes. E como
el-Rei os tratasse com grande benignidade, e os fizesse
voltar á sua terra cheios de dadivas, c favores reaes, e
mandasse ao mesmo tempo convidar o seu Rei a receber
o baptismo, elle não só aceitou o convite, admirado e
commovido do que os seus lhe dizião das cousas de Por-
tugal; mas também destinou alguns moços nobres, (jue
demorando-se por mais tempo em Lisboa, se instruíssem
na lingua, nos costumes, e na policia Portugueza: e pedia
a el-Rei, que lhe mandasse ministros da religião, oljiciaes
de alguns officios mecânicos, lavradores, que os ensinas-
268
sem a cultivar as terras, e mulheres, que os instruíssem
na arte de amassar, e fabricar o pão.
Estiverão com effeito estes Gongos na caza de Santo
Eloy de Lisboa até o anno de 1490, em que voltarão ao
seu paiz, hindo em companhia delles alguns ecciesiasticos,
com instrucções mui individuaes de el-Rei para a planta-
ção daquella Christandade, a qual foi logo crescendo com
tão notáveis augmentos, que chegou a haver nella Sacer-
dotes 6 Bispos naturaes do paiz, mestres de ler e escre-
ver, que tinhão aprendido em Portugal, e ensinavão as
primeiras letras aos filhos dos nobres, d-c.
Estes progressos do Christianismo no Congo chegarão
a tal ponto, e davão tanto gosto aos Reis Portuguezes,
que el-Rei D. Manoel mandou em 1504 novas missões de
homens letrados em theologia, e mestres de ler e escrever,
e de artes mecânicas^ com livros de doutrina Christãa, e
ornamentos, vestes, e vasos sagrados para o uso do culto
religioso naquelles paizes. O que foi de tanta utilidade
para o augmento da christandade, e civijisação do Congo,
que alguns Príncipes e Senhores daquellns terras man-
davão seus filhos moços a Portugal com o íim de apren-
derem melhor os princípios da religião, os costumes, e
as artes Portuguezas, com o que, depois de instruídos,
voltavão ao seu paiz com notável aproveitamento em be-
neficio dos seus naturaes.
Em 1508 sabemos, que vindo alguns i)arentes do Rei
de Congo, D. Afibnso. e outros nobres a Portugal para
se instruírem nas letras, forão mandados residir na caza
de Santo Eloy, aonde tinhão sido educados os primeiros,
e ahi se sustentarão, e estiverão por algum tempo a ex-
pensas de el-Rei.
Em 1516 tendo el-Rei D. Manoel mandado rever e re-
formar as Ordenações antigas do reino, e sabendo isto
el-Rei de Congo, pedio alguns exemplares delias, que
logo o Monarca Portuguez lhe mandou; e notão os nossos
269
escriptores, que com ser elle barbai'0, as mandava ler, e
considerar, e conferir com os costumes da sua terra.
Em 1535 escrevia o Papa a el-Rei de Congo, louvando-
llie muito o seu zelo pela religião Christãa, e o cuidado
que tiniia de a propagar, e fazer florecer em seus estados,
servindo elle mesmo como de missionário, e instruindo
os seus povos na santa doutrina do Evangíílho. O Anna-
lista Raynaldo, fazendo menção destas letras apostólicas,
ao referido anno de 1535, conclue com estas palavras:
« Sancta propagatio fidei catholicae in Africa referenda
est piissimis Lusitaniae Regibus » .
El-Hei D. João III continuou a mandar outras diversas
missijes áquellas terras; e no anno de 1538 se achavão
ainda em Portugal alguns nobres Elhiopes do Congo, fa-
zendo seus estudos na referida caza de Santo Eloy, aonde
também por esse tempo se recolherão quatro Paravas da
costa da Pescaria no Malabar, que vierão a este reino com
o mesmo destino, e para os quaes compôz o grande João
de Barros a sua Grammatica Portugueza, que se impri-
mio no anno de 1539.
Em tempo de el-Rei D. Sebastião, pelos annos de 1560,
sendo o Rei de Congo D. Álvaro despojado de seus estados
pelos Jaccos, ou Agages (2), que acommettendo-o com
grande multidão de bárbaros o ol)rigárão a retirar-se a
huma ilha do Zaire, e implorando este Príncipe o auxilio
de el-Rei de Portugal, el-Rei o mandou restituir ao seu
reino pelo Capitão Francisco de Gouvêa, que com alguns
centos de Portuguezes derrotou os Bárbaros, e o repôz
no throno. Acrescenta hum escriptor estrangeiro, nar-
rando este facto, que el-Rei D. Sebastião, por cumulo
de generosidade, recusara a homenagem, que D. Álvaro
(2) Estes povos, que taiiihcni se chamão Jagas, ou Giagas, \>o-
(lein considcrar-se (di/ hum geógrafo) como os Tatars da Africa me-
ridional. Dcllos se diz lerem ás vezes feito lerriveis incursões desde
o canal de Moçambique até ás visinhanças do cabo da JJoa Esperança.
270
queria render-lhe como vassallo, pelo qual procedimento,
cheio de humanidade (diz o escriptor), he que os Portu-
guezes tem ganhado a confiança daquelles povos, e os tem
em,penhado a perseverarem na religião Christãa.
No ânno de 1486 descobrindo-se o reino de Beni, e
mandando o Principe daquella região hum Embaixador
a el-Rei de Portugal D. João 11, este o recebeo com gran-
des mostras de estima e Itenevoleiícia, e o despedio com
ricos presentes para o seu Soberano, e com enérgicas per-
suasões de abraçar o Christiamsmo.
Em 1488 veio liemohi. Hei do Jalolb, pessoalmente a
Lisboa, aonde aceitou o baptismo com todos os nobres
que o acompanha vão, de que el-Rei D. João II houve sin-
gular contentamento, como refere Rezende, na vida deste
grande Principe. E vollando Remohi a Africa, lhe deo el-
Rei hum poderoso auxilio contra alguns seus súbditos
rebeldes, mandando ao mesmo tempo (de consentimento
de Bemohi) que se fundasse fortaleza na foz do Senegal,
e que fossem na armada alguns ecclesiasticos, de que era
chefe Mestre Álvaro Dominicano, e levassem, como effe-
ctivamente levarão, lodos os preparos necessários para
aquelle estabelecimento, e entre elles ornamentos sagra-
dos, livros ecclesiasticos, e moraes, vasos para o serviço
das igrejas, d-c. Esta christandade não leve consequências
ulteriores pelas razões que o citado escriptor aponta no
mesmo lugar; mas nem por isso íica menos certo, que os
Principes Portuguezes nunca perdião de vista a civilisação
dos Africanos por meio da propagação do Evangelho.
Pelos annos de 1575 começarão os Portuguezes a con-
quista de Angola, Benguella, á-c, sendo primeiro con-
quistador, povoador, e Governador o illustre Paulo Dias
de Novaes, que á custa de mui gloriosos trabalhos, fadi-
gas, e despezaSi manteve aquelle nascente reino até o
anno 1588, em que falleceo. Logo ao principio se esta-
belecerão na primeira povoação, ou villa (depois cidade)
271
de S. Paulo de Loanda cazas religiosas, cujos moradores,
bem como outros ecclesiasticos seculares, erão destinados
não só a praticar entre os Cliristãos os exercícios do culto,
mas também a tiazei- a elle os naturaes do paiz, e das vas-
tíssimas regiões confinantes. Bem conhecida he na histo-
ria daquella conquista a celebre Rainha de Matamba^ cha-
mada a Rainha Ginga (3), e pelo nome do baptismo Arma
de Sousa, a qual tendo recebido o Christianismo a dili-
gencias dos Portuguezes, e voltando depois á sua super-
stição, se tornou cruehssima inimiga delles, até que por
fim arrependida se converteo de novo com muita da sua
gente, e na fé christãa veio a fallecer. Florecia esta notá-
vel mulher pelos annos de 1622 até 1655; e forão instru-
mento de sua reconciliação com a Igreja os Padres Capu-
chinhos Italianos, a quem el-Rei D. João IV pelos annos
de 1653 havia encarregado as missões de Caho Verde^ c
Guiné: nova prova de que os Beis de Portugal nunca pef-
dião de vista hum objecto tão digno da sua piedade,
quanto conforme ás primeiras intenções do illustre auctor
daquelles descobriípentos (4).
Se da Africa occidental quizessemos passar á oriental,
fácil nos seria tecer huma longa narração das repetidas, e
(3) O seu nome era Ginga Bandy, filha do Rei de Matamba, que
também se chamava Gitifia Bandy, e de huma sua escrava. Bapti-
zou-se era 1622, sendo seu padrinho o Governador Jo5o Corrêa de
Sousa, pelo que tomou o nome de Anna de Sousa.
(4) Na menoridade de el-Rei D. Affonso VI, e tutoria de sua mãi
a Rainha D. Luiza, se erigio i.'m Portugal huma Junta das Missões,
encarregada de mandar missionários ás terras de Africa, Ásia. e Ame-
rica, sujeitas cá Coroa Portugueza. De el-Rei D. Pedro II lemos, que
fundara Missões, e Seminários, em beneficio da instrucção dos in-
fiéis nas conquistas de Portugal. Em seu tempo mandou hum Rei
Pagão, ou idolatra de Cabo Verde a hum seu filho a receter o ba-
ptismo em Lisboa, d'ondo voltou ao seu paiz enriquecido de reaes
dons. Ainda nos nossos tempos, e no reinado da Senhora I). Maria I,
forão enviados missionários ao reino de Angola, e outras terras pró-
ximas, «5cc.
272
constantes tentativas, que fizerão os Portuguezes para tra-
zerem ao seio da Igreja Romana os Príncipes, e habitantes
da Abyssinia, e para catequizarem e instruírem nos prin-
cípios do Clirístíanísmo os povos da Ethíopia baixa, ou
da Cafraria. Bastará porém lembrar que em 1560 e 1561
foi baptizado com toda a sua corte o Imperador de Mo-
nomotapa pelo Padre Gonçalo da Silveira, Jesuíta Portu-
guez, martyrizado logo depois cruelmente por instigação
dos Mouros, que em toda a parte fizerão sempre a mais
pertinaz opposição ao estabelecimento e progressos das
novas christandades plantadas pelos Portuguezes: sem
embargo do que, nunca estes cessarão de annunciar na-
quellas extensas e barbaras regiões a doutrina do Evange-
lho, editícando igrejas, fundando cazas religiosas, pondo
varões virtuosos, que as regessem, e attrahindo por todos
os modos aquelles habitantes á religião e civilisação Eu-
ropêa, como se poderia mostrar pelos estabelecimentos
Christãos de Sena e Téte, de Çofala, Moçambique, Me-
linde, árc, ác.
Á vista de tantos factos, e ainda de muitos outios, que
aqui passamos em silencio, e são constantes das historias,
como he possível, que se diga, e se escreva, que fio de-
curso de ires séculos nunca jamais os Européos tiverão
o pensamento de communicar aos Africanos alguma idéa
■moral? Porventura não foi este nobre pensamento o que
inspirou ao Infante D. Henrique, e aos Reis de Portugal
as multiplicadas tentativas, que deixámos referidas? Não
foi este pensamento o que moveo o grande Rei D. João II
a acolher e auxiliar com suas armas o Rei dos Jalofos; a
convidar ao Ghristianismo o Rei de Beni; a mandar mis-
sionários ao Congo? Não foi este pensamento hum dos que
inspirarão a fundação do castello de Arguim, os estabele-
cimentos do Senjegal, de Cabo Verde e suas ilhas, de Ca-
cheo, de S. Jorge da Mina, de Angola, e Benguella? á-c.
Bem sabemos, que alguns escriptores, incapazes (ao
27:{
que parece) de conceber idéa alguma generosa, preten-
dem persuadir-nos, que o zelo religioso dos Príncipes
Portuguezes não era mais que hum pretexto, com que
elles disfarçavão o piincipal intento de augmentar o seu
poder, ampliar os seus estados, e colher os interesses do
commercio. Nós podéramos refutar este pensamento com
muitas daquellas razões, em que costumão estabelecer-se
os factos mais bem averiguados da historia. Contentar-
nos-hemos porém de responder com as palavras de hum
escriptor Portuguez judicioso: « Concedão-fws (diz elle),
qiifí o zelo cia religião era hum dos motivos, que dirigião
os nossos Príncipes nos seus descobrimentos, e nós lhes
concederemos. <jue não era o iinicoy>. Os Príncipes Portu-
guezes não erão apóstolos, nem missionários: não tinhão
obrigação, nem missão alguma especial para hirem levar
o Evangelho a nações barbaras, infiéis, desconhecidas, e
remotas. Não admira pois, que com o zelo da religião (que
certamente os animava) misturassem a consideração dos
interesses nacionaes: e que intentando trazer aquelles po-
vos ao Christianismo, e civilisacão, se lembrassem tam-
bém de por este meio assentarem com elles, mais fácil
e seguramente, commuriicação, commercio, amizade, e
interesses recíprocos. Haverá porventura neste procedi-
mento alguma cousa, que mereça a censura das pessoas
justas, e imparciaes?
« Os missionários, que os Portuguezes mandarão ao
Congo (diz Mr. Chauvet), erão quasi tão ignorantes, como
os povos, a quem Mão catequizar. »
Seja-nos permittido dizer francamente, que só por sum-
ma ignorância da historia, ou por manifesta má fé se pôde
assim ajuizar, e falar dos Portuguezes do século xv.
Nós podéramos reconvir o escriptor Francez, e mos-
trar-lhe com muitos e graves fundamentos, que a França
não era naquelle século mais civilisada, nem estava mais
adiantada nas loiras, que os Portuguezes: mas não que-
TOMO V 18
874
remos demoiar-iios em odiosas comparações, nem o jul-
gámos necessário para o nosso intento (5).
Também não teceremos aqui com extensão a historia
(5) No armo de 1406, celebrando-se em Paris hum grande ajun-
lamento de sábios theologos e canonistas para deliberarem sobre
dar, ou negar obediência ao antipapa Pedro de Luna; hum destes
sábios, que, ao dar o seu voto, quiz exaltar a Universidade de Pa-
ris, disse « Que JuUo César a havia transferido de Athenas para
Roma; e que Carlos Magno a transplantara de Roma para Paris».
Tal era (diz Fleury, referindo estas palavras) a erudição dos maio-
res doutores daquelle tempo! E com tudo esta Universidade, em que
havia tão insignes doutores, era a mesma quenaquelles tempos queria
dar leis á Igreja, e decidir os mais importantes negócios ecciesiasti-
cos : ora a mesma que não poucas vezes concorreo para as desgra-
çadas discórdias, que tão funestas forão ao povo Christão. Pelos
annos de 144o, hindo a França o doutíssimo Hespanhol Fernando
de Córdova, de tal modo assombrou com o seu extraordinário saber
a escola Parisiense, que foi vario o juizo, que delle fizerão os dou-
tores: «Huns o tivcrão por mauo, outros sentião o contrario, e não
faltarão alguns, que dissessem, que hum homem tão prodigiosamente
sábio era impossivel que não fosse o Antichristo -k Assim o refere o
Abbade João Trithemio' no Chronicon Spanheimense, ao anno 1501.
Nos priíicipios do século seguinte, fundando el-Rei Francisco I huma
cadeira de lingua Grega no collegio, chamado de França, em Paris,
exclamava huui Monge, no púlpito, cheio de santo enthusiasmo:
«Tem-se, meus irmãos, inventado hnma nova lingua, chamada Grego,
de que devemos acautelar-nos com grande cuidado, porque ella gera,
e delia nascem todas as herezias». Assim se falava em P^ris (diz
Pouqueville referindo o facto), assim se falava em Paris da lingua
do Nora Testamento, e do idioma, em que escrevêrãx) os primeiros
Padres da Igreja! Em 1565 dizia hum advogado da Universidade
lie Paris, qu? as quatro faculdades, de que ella se compunha, consti-
tuião hum quasi concilio geral permanente (quasi generale concilium
perpetuo in ampla urbe illa pro populi sublevamine stabilitum). Re-
fere-o o Continuador de Fleury, liv. 169.°. § '.\9.° Ainda em 1629 o
Parlamento de Paris, a instancias da Sorbona, expedio hum decreto
contra os chimicos, no qual se dizia que ninguém podia impugnar
os princípios da filosoOa de Aristóteles, sem impugnar ao mesmo
tempo os da theologia escolástica recebida na Igreja. Assim o refere
o P. Renato Rapin, Alc, 6íc.
175
litteraria de Portugal naquelle século, hum dos mais illus-
trados, e gloriosos da monarquia : mas não podemos de
todo escusar-nos a fazer algumas breves e genéricas con-
siderações, em abono da nossa pátria, e da nossa gente.
Primeira: Que naquelle tempo florecêrão em Portugal
os estudos mathematicos, cosmograficos, e náuticos, cul-
tivados na Escola de Sagres, fundada pelo grande Infante
D. Henrique, auctor dos descobrimentos, do qual diz o
douto Walckenaer na sua moderníssima « Historia geral
das viagens r>, que era o primeiro mathemalico do seu
tempo; que possuía grandes conhecimentos geográficos;
e que tendo convidado para o estabelecimento da sua Es-
cola hum sábio, versadissimo na navegação, e na arte de
fabricar instrumentos, e projectar cartas náuticas, o po-
sera d frente da Academia que havia fundado, com u
fim de propagar e adiantar tão úteis e interessantes es-
tudos (6).
Segunda: Que desta Escola, do Observatório astronó-
mico, que para ella fundou o Infante, e dos trabalhos
dos sábios, que a frequentavão, sahírão importantíssimas
observações, e as cartas geográficas e marítimas, que de-
pois servirão aos posteriores geógrafos; resultando d'aqui
a grande pericia náutica dos Portuguezes, e o desenvol-
vimento de numa marinha respeitável, da qual o illustre
geógrafo moderno, Mr. de Malte-Brun não duvidou falar
com grande louvor, expressando- se nos seguintes termos :
(6) O douto Poituguez Francisco José Freire (aliás Cândido Lu-
sitano) na Vida do Infante, liv. 3.°, falando da fiequencia e gosto
com que este illustre Príncipe communicava os sábios, continua nos
seguintes termos: »Com elles tratava de setts estudos na cosmografia,
especialmente com hum Mestre Jacome de Malhorca, de cuja ilha o
mandara vir (e escreve-se, que a (jrande custo) para ensinar neste
reino a arte de navegar, e a formação não menos de instrumentos
mathematicos, que de cortas geográficas, em que era homem, que na-
quella idade ouvia os primeiros upplausos '>. Esle iie sriii duvida o
sábio, a que se refere Walckenaer.
«A marinha Porlugueza foi florentissima no tempo de
D. João I. Havia então no reino Escolas mui celebres para
os estudos da navegação, em huma das quaes acabou Co-
lombo de aperfeiçoar os seus talentos. No mesmo reinado
erão os Portuguezes reputados como os primeiros nave-
gadores do seu século, e Portugal occupava o primeiro
lugar entre as potencias maritimas. Em 141ô, em que o
Rei embarcou para a expedição de Ceuta, era a sua ar-
mada composta de trinta e três vasos de primeira ordem,
cincoenta e nove galeras, cento e dez transportes t>, &c.
Terceira: Que no mesmo século, tanto el-Rei D. João I.
como seu íilho el-Rei D. Duarte, e seu neto D. AíTonso V,
dirigido então por seu tio e tutor o Infante D. Pedro, for-
marão, prose^íuírão, e executarão o projecto de hum Có-
digo de leis nacional, compilado em lingua Portugueza
por alguns doutos Jurisconsultos Portuguezes, o qual,
além de ser o primeiro, ou hum dos primeiros que sa-
hírão na Europa moderna, he ainda hoje hum dos mais
preciosos testemunhos, e hum dos mais illustres monu-
mentos da nossa civihsação, policia, e litteratura.
Quarta: Que outrosim se emprendeo e executou, por
ordem dos mesmos Príncipes, o outro projecto de escre-
ver as Chronicas dos Reis de Portugal em linguagem, as
quaes effectivamente forão escriptas pelos dous chronistas
Fernani Lopes, e Gomes Eannes de Azurara, com grande
desempenho, merecendo o primeiro delles, a juizo de
hum critico i Ilustrado, o nome de pai da praza, e do pe-
ríodo Portuguez; e isto, quando nas outras nações da Eu-
ropa era ainda mui raro, que semelhantes obras se escre-
vessem nos idiomas vulgares.
Quinta: Que no mesmo século foi el-Rei D. Affonso V
o primeiro Rei Portuguez, que fundou no seu palácio o
útil estabelecimento de huma Bibliotheca Real, que de-
pois se foi progressivamente augmentando em riquezas
litterarias. E que tanto este illustrado Príncipe, como seu
277
augusto pai, e avô, alguns dos Infantes seus tios, e até al-
gumas das Princezas da Real Caza Portugueza, nos dei-
xarão monumentos do seu saber, e do seu amor ás letras
e estudos, em obras, que, ainda em parte, existem, e que
ainda hoje merecem a altenção dos eruditos Portuguezes.
SextUj, finalmente: Que a estas provas geraes da in-
strucção, litteratura, e civilisacão dos Portuguezes do sé-
culo XV, poderiamos ainda acrescentar (se os limites de
huma nota o permittissem) outras muitas provas particu-
lares e individuaes, fazendo o catalogo dos homens dou-
tos, que se distinguirão em algum género de erudição;
apontando as obras que compozerão; falando do estabe-
lecimento da typografia em Portugal; e mencionando tan-
tos varões illustres, que sahírão de nossas Escolas, e do
palácio de el-Rei D. Affonso V e D. João II, e que depois
muito illustrárão o reinado subsequente de el-Rei D. Ma-
noel. E aqui figurarião sem pejo, antes com grande gloria
da nação, o eloquente Bispo de Évora, D. Garcia de Me-
nezes; o insigne Ayres Barbosa, discípulo de Angelo Po-
liciano, e restaurador das letras Gregas na Hespanha; os
celebres cosmógrafos de el-Rei D. João II, Mestre José,
Mestre Rodrigo, e o Bispo de Viseo Calçadilha; o grande
geomelra Pedro Nunes; os illustres navegadores Vasco
da Gama, e Affonso de Albuquerque; os historiadores
Duarte Galvão, e Garcia de Rezende, além dos chronistas
que já notámos, ác, ác.
Mas para que nos alargaríamos mais neste assumpto?
O próprio escriptor, a quem vamos refutando, c que
nos obrigou a esta digressão, se desmente e contradiz
a si mesmo, como já apontámos, quando diz que os mis-
sionários Poituguezes, com serem gnasi tão ígnovanles
como os Africanos, íizerão comtudo numerosos proseíy-
tos, principalmente entre os chefes; e que com poucos es-
forços mais (/lie se fizessem, huma grande parle de Africa
se faria Christãa: porquanto he impossível conciliar estes
278
grandes elieitos com aqnella supposta igiioi-ancia : e posto-
que a eííjcacia da pregação evangélica dependa mais de
Deos, que dos homens, comtudo, humanamente falando,
não cabe em juizo prudente, (jue missionários tão igno-
i"antes, e tão ineptos, conseguissem tamanho fructo de
seus trabalhos.
Aqui nos será permillido reflectir sobre aquellas pala-
vras do auctor : « com poucos esforços mais que se fizes-
serrij huma grande parle de Africa seria hoje ChristãaTi»,
para se manifestar e pôr em toda a evidencia a facihdade,
6 imprudente ligeireza, de que no principio desta nota
accusâmos a este escriptor, e a outros da sua nação.
O pensamento, que Mr. Chauvet enunciou naquellas pa-
lavras, não só he falso, mas excede todos os limites da
verosimilhança, e passa a ser hum verdadeiro absurdo.
Com todos os esforços^ que effectivamente se empregarão,
e com outros muito maiores, que se empregassem, apenas
se fez, e se poderia fazer Clirislã huma pequena, e mui
pequena parte de Africa.
He esta parte do globo de huma grandíssima extensão:
o seu interior he de mui diíTicil accesso, cortado a espaços
de vastos desertos de areia, e de altíssimas cadeias de
montanhas e serranias : habitado de tribus barbaras e fe-
roces, destituídas de todos os elementos de civjlisação,
e (segundo opinião de alguns) pouco susceptíveis delia,
pela grande inferioridade de suas faculdades Intellectuaes
e moraes. Não tem mares interiores, nem grandes rios
navegáveis, que olTereção a facilidade de levar até ao cen-
tro do palz os beneficios do commerclo, da industria, e
da clvilisação. Os seus habitantes são por extremo su-
persticiosos, e tenacíssimos de suas miseráveis praticas,
que mal se podem chamar religiosas. Nos lugares, aonde
o Mahumetlsmo tem chegado, e se tem misturado com
as grosseiras superstições do paiz, partlcipão os habi-
tantes dos vícios Innatos de seus mestres, e não delxão
I
279
de mostrar por todos os modos a aversão, e ódio, que
elles lhe tem inspirado para com os Europêos, e para com
a religião Chrislãa. A opposição que os missionários evan-
gélicos encontrarão, e tem continuado a encontrar em am-
bas as Etliiopias occidenlal e oriental, e geralmente em
todas as terras, em que os Mahumetanos tem commu-
nicação e influencia, attesta isto mesmo. Finalmente os
Francezes, Inglezes, Ilollandezes, á-c, com todas as suas
artes, com todo o seu zelo e superiores talentos, não ve-
mos que hajão penetrado muito avante naquelle vasto
continente, nem que tenhão feito os milagres, que osPor-
tuguezes do século xv não poderão fazer. Os estabeleci-
mentos do cabo da Boa Esperança, fundados ha cento e
oitenta annos, não tem podido penetrar a mais de cem,
ou cento e cincoenta léguas das costas para o interior, e
isto não para as possuírem, doutrinarem, ou civilisarem,
mas sim para satisfazerem com as noticias escassas de al-
guns viajantes â curiosidade dos eruditos. Nos outros es-
tabelecimentos Europêos observa-se o mesmo com pouca
difíerença. As tentgtivas de alguns Officiaes Inglezes para
chegarem a Touibuctu tem sidoinfructuosas, e os ousados
aventureiros pagarão com a vida o seu zelo. Quando pelos
annos de 1676 o Governador de Angola Ayres de Salda-
nha e Menezes intentou abrir communicação por terra até
Benguelia, e d'ahi até á contra-costa de Sena, e encar-
regou desta pacifica, mas difficil empreza o Capitão José
da Roza, que para ella se oflerecêra, sahio este com effeito
de Massangano para o seu destino; mas a poucas jornadas
encontrou tanta difficuldade, e opposição em muitos So-
vas, ou Senhores, que lhe irnpedião a passagem, que se
vio forçado a retroceder, ficando sem effeito aquelle uti-
líssimo projecto. Como se pôde pois dizer, que compuiicos
esforços mais, que se fizessem, no século xv. hiima grande
parte de Africa estaria hoje Christãa?
Lembre-se este escriptor, e os que como elle discoí-
280
rem, que outros paizes, muito mais patentes e transitá-
veis que a Africa, visitados, e até frequentados pelos Ku-
ropêos desde huma remota antiguidade, de muito menos
diíTicil accesso, e hajjitados de povos ou menos bárbaros,
ou mais tratáveis, estão ainda lioje não só deslituidos da
civilisação, e artes da Europa, mas até ignorados, ou mui
pouco conhecidos dos geógrafos. Taes são, por exemplo,
a Turquia da Ásia, as terras situadas entre a Rússia e a
China, o celebre reino do Tibet, e mil outras regiões, im-
périos, e povos. E são os próprios escriptores, que con-
fessão isto mesmo, os (jue accusão os Portuguezes do sé-
culo XV por não fazerem alguns esforçou mais, com que
trouxessem ao Christianismo e á civilisação huma grande
parte de Africa !
Mas he já tempo de voltar ao nosso principal assumpto.
Diz Mr. Chauvet que se /iitnia grande parte de Africa se
fizesse Christãa (como elle suppõe que poderia fazer-se),
acabaria o trafico dos negros (adcos trafico! diz elle), e
que prevendo-se e temendo-se esta consequência, fora a
civilisação de Africa sacrificada ao systema colonial.
Primeiramente, nós confessámos com toda a ingenui-
dade, que não percebemos bem a ligação destas idéas de
Mr. Chauvet: « Se huma grande parte de Africa se fizesse
Christãa, acabaria o trafico dos negros )k
Christãos erão os povos da Europa até o século xiv, xv,
e ainda xvi, e huns a outros se íazião escravos, e se ven-
dião como taes. Chrislãas são as nações, que tem man-
tido ha quatro séculos, e ainda actualmente mantêm o
trafico dos negros; e Christãos são lambem os mesmos
negros, a quem se administra o baptismo, e comtudo não
vemos que o trafico haja cessado, ou esteja notavelmente
diminuído. As missões christãas nada alterarão jamais
neste ponto. Os interesses políticos, palliados talvez com
idéas filantrópicas, apenas começão agora a querer corre-
gir o que fizerão os ignorantes Portuguezes do século xy,
281
e o que seguirão depois delles, até com vergonhoso em-
penho, as outras nações da Europa : e apezar de serem as
actuaes diligencias auxiliadas das astúcias da diplomacia,
e do formidável poder das armas, nem por isso os seus
efifeitos deixão de ser extremamente lentos e vagarosos.
Não ignorámos que muitos escriptores tem attribuido
ao Christianismo a decadência, ou extincção da escravi-
dão na Europa, elogiando por esta parte a sublime moral
do Evangelho, e exaltando os effeitos da sua propagação :
e acaso foi este pensamento o que inspirou a Mr. Chauvet
as palavras que vamos analysando.
Bem longe estamos nós de pretender despojar a reli-
gião Christãa de suas nobres, e sobreeminentes qualida-
des, pelas quaes se mostra não só superior a todas as
outras religiões, ou seitas, conhecidas no mundo, mas
única verdadeira, e de origem celestial e divina. Não es-
tamos porém menos longe de pretender exaltal-a por mo-
tivos e fundamentos, que nos parecem pouco conformes
á verdade, por isso mesmo que gosando ella tantas e tão
altas prerogativas,'não necessita de estranhos, e alheios
louvores, nem o seu espirito os approva.
A escravidão e o trafico de homens durou na Europa,
como já apontámos, pelo menos até o século xiv ou xv,
e toda esta parte do mundo era christãa desde muitos sé-
culos. Os «scriptos do Novo Testamento, falando algumas
vezes de escravos e senhores, e inculcando aos primeiros
a sujeição e obediência, e aos segundos a benevolência,
humanidade, e caridade, nem huma só palavra dizem,
pela (jual se mostrem desapprovados estes dous estados
respectivos do homem na sociedade civil (7). O Evange-
lho, e (IS escriplus apostólicos, em conformidade com
elle, ensinando aos homens, e até pondo por base da lei
(7) Vej. a Epist. de S. I'aul. ad Eplies. V. o-9, ad Colossens. IV. 1.,
I. Petr., II. 18, &c.
christãa a caridade, e benevolência geral, jamais alterarão,
nem derão mostras de dever allerar-se a ordem estabele-
cida nas sociedades dos homens, nem as differenças, e
graduações civis, que estavão geralmente adoptadas.
Dizem, na verdade, estes escrii)tos divinos, que todos
os homens são filhos de Deos, e irmãos hiins dos outros,
e que como taes se devem tratar reciprocamente: mas
esta igualdade admiravelmente estabelecida como funda-
mento da moial evangélica, não he (como alguns tem pre-
tendido, ou por summa ignorância, ou por grande, e tal-
vez calumniosa malícia), não he, digo, huma igualdade
absoluta, que confundiria toda a ordem das sociedades hu-
manas, e não pôde ser concebida por espirito algum sen-
sato. O mesmo Evangelho, que a estabelece, reconhece
também pais e lilhos, Heis e súbditos, senhores e servos,
amos e criados, nobres e plebeos, capitães e soldados,
magistrados e povo; e sem destruir nem alterar as rela-
ções civis entre estes diflerentes estados, e condições, ou
graduações, prescreve a cada hum delles os deveres que
lhes cumpre observar, e que longe de contradizerem
acjuella primeira qualiíicação de filhos de Deos, irmãos
hims dos outros, e iguaes, neste sentido, entre si, muito
pelo contrario íirmão o principio estabelecido, e nelle se
fundão com singular sabedoria e coherencia.
E tanto he isiu conforme á doutrina da moral christãa,
que nós não sabemos que a escravidão em geral haja
sido condemnada, nem reprovada em algum Concilio, ou
Canon ecclesiastico, antes em muitos supposta, e ainda
adoptada como legilima.
Os moralistas, e juristas Christãos (que aqui podéra-
mos citar em giande numero) tem seguido constante e
uniformemente o mesmo systema de doutrina ; e quando
tratão dos differentes estados do homem na sociedade,
quasi sem discrepância reconhecem e sustentão que a es-
cravidão, em geral, he licita, e apontão os casos e cir-
283
cumstancias, em que ella pôde ter lugar, sem offensa das
leis naturaes, religiosas, e civis; notando tamsóraente os
outros casos, em que se abusa, ou pôde abusar deste di-
reito, e as circumstancias particulares que fazem illicito
o seu uso.
Não se pôde pois (a nosso juizo) dizer com verdade,
que a religião Christãa abolio a escravidão na Europa, se-
não por hum modo indirecto, isto he, por ser hum dos
principaes, e mais activos instrumentos da civilisação ge-
ral do mundo, e dos seus lentos, mas seguros progressos.
Porém, aindaque oChristianismo, pela excellencia de seus
princípios moraes, e pela elevada idéa que nos dà da ori-
gem do homem, e de seus futuros destinos, seja hum dos
primeiros instrumentos da civilisação; comtudo não he
o único. He necessário que com elle concorrão o esta-
belecimento de governos fixos e regulares; a justiça e
sabedoria das leis; o amor e cultura das sciencias, e
artes úteis, e em particular da agricultura, rainha de
todas ellas, e base fundamental da propriedade; a com-
municação frequente entre os povos; a pratica do com-
mercio, Ac.
Ao concurso e reunião de todas estas causas he que a
Europa deve o estado de civilisação, em que actualmente
se acha, a rectificação e melhoramento de suas idéas mo-
raes, e a modificação de suas praticas e usos antigos so-
bre a escravidão dos homens. Pelo que, ainda quando as
idéas christãas fossem estabelecidas em grande parte de
Africa, o que sô podia ser fructo do trabalho de alguns
séculos, seria comtudo necessário, que ellas ganhassem
todos os pontos, tanto das costas, como do interior, e que
obrando de concerto, e constantemente com os outros
princípios acima indicados, trouxessem todos, ou a maior
parte dos povos daquelle vastíssimo continente a hum
certo gráo de instrucção, e civilisação, para enião de todo
cessar o trafico. Entretanto sempre este existiria, como
284
tem existido no meio das missões Portiiguezas e France-
zas, e da communicação, e commercio dos Hollandezes,
Inglezes, Dinamarquezes, ác. E quando a diplomacia Eu-
ropêa chegue, com todos os seus esforços e ameaças, a
extinguir o tratico nas costas occidentaes de Africa, lia-
verá ainda muito que fazer para o vedar aos Mouros, que
de todas as partes levão os infeiices negros aos mercados
barbarescos, e d'aiii ao Egypto, á Grécia, a Constantino-
pla, a todo o Oriente (8).
Mr. Chauvet conclue o seu discurso, dizendo, que a ci-
vilisação de Africa foi sacrificada ao systema colonial,
por se antever e receiar que ella extinguisse a escravidão,
e o trafico dos negros.
Mas de que systema colonial nos quer falar este escri-
ptor? Quando os Portuguezes descobrirão as costas occi-
dentaes de Africa, e ainda por quasi cem annos depois,
não existia, nem exislio esse systema colonial, e conse-
quentemente não podia ser a elle sacrificada a civilisação
dos povos Africanos.
Depois de se descobrir a America, e de se estabelecer
nella esse chamado systema colonial, nem por isso dei-
xarão os Portuguezes de continuar suas diligencias e es-
forços a beneficio dos Africanos, como deixamos provado.
As nações da Europa, que pelos tempos adiante se apos-
sarão de diversos pontos das mesmas costas, também
mandarão seus missionários, com o fim de trazei* ao Chris-
tianismo as nações barbaras, que por ali habitavão. Não
houve pois o receio, que Mr. Chauvet suppõe, ou finge
suppor, nem essa foi a causa de se suspender, retardar,
ou esfriar o intento da civilisação Africana.
As recentes tentativas, sempre infructuosas, que se tem
empregado em beneficio daquelles povos, mostrãij quão
(8) Vej. a particular Nota, que escrevemos sobre a escravidão e
trafico dos negros, pag. 323 deste volume. •
difíicil he, e arriscado penetrar no interior de Africa, e
superar os multiplicados obstáculos, que o terreno, o
clima, a barbaridade dos habitantes, o orgulho e perfídia
dos Mouros, e outras semelhantes causas oppõem ás em-
prezas da civilisação Europêa (9). Largos séculos devem
ainda decorrer, antes que se possão destruir, ou minorar
estas causas. Será porém sempre huma gravíssima injus-
tiça (por não dizer alguma cousa mais) imputar aos pri-
meiros descobridores culpas que elles não tiverão, ou ne-
gar-lhes o merecimento de haverem começado, e ainda
dado alguns passos, em tão difficil, trabalhosa, e arris-
cada empreza.
(9) Seja-nos perinittido copiar aqui hum lugar de Pinkerton, que
faz ao noí^so propósito: «Esta época (diz o escriptor, referindo-se
ao descolirimento da índia por Vasco da Gama em 1497 e 1498),
esta época deve ser considerada a todos os respeitos como a mais
mlavel da geografia Africana: mas o interior deste continente tinha
como por destino íicar desconhecido ainda por muito tempo. He ver-
dade que desde o século xvi Leão tinha dado huma ampla descripção
das suas regiões septemtrionaes; e Alvares, que visitou a Abyssinia,
pubhcou em 1320 huma mui circumstanciada Relação deste paiz, á
qual acrescentarão novos desenvolvimentos as viagens de Lobo, e
Telles. Os Portuguezes estabelecerão a oeste diversas factorias, para
se assegurarem do commercio do ouro e do marflm; e os Monarcas
Portuguezes ajuntarão a seus antigos fitulos o de Senhor de Guiné.
As Relações dos missionários augmentárão os conhecimentos sobre a
geografia de Africa. Comtudo por hum concurso de circumstancias
particulares, estes conhecimentos tem sempre sido mui limitados;
e o seu aperfeiçoamento tem até ao presente experimentado obstá-
culos quasi insuperáveis. Estas diíficuldades tem por causas princi-
paes (note-se bem) a vasta extensão dos desertos de areia; a altura
das serranias; as guerras quasi contimias, que fazem entre si as pe-
quenas Trihus Africanas, mais animosas, e mais feroces que as da
America, e menos fáceis de se intimidarem das armas Europêas.
Mas o que ainda mais particidarmente se tem opposto ao progresso
dos descohrimenfos no interior, he a antipathia, de que são animados
iontra os Europúos os Mahumetanus dr Africa, herdeiros do resenti-
mento dos seus maiores, em outro tempo expulsos da Hespanha», &c.
MEMORIA
SOBRE A EXPEDIÇÃO DE VASCO DA GAMA
AO DESCOBRIMENTO DA ÍNDIA EM 1497
Credendnmque dccHfsimis hominibus, qu
aninim advers.orum solatmm liltfra^ptilare-
runt.
QciNTiL., Imtit. Orat., liv. 6.". Praefat.
Serra de Ossa, anoo de 1831.
MEMOKIA
SOBRE A EXPEDIÇÃO DE VASCO DA GAMA
AO DESCOBRIMENTO DA ÍNDIA EM 1497
A viagem maritima, que o grande Vasco da Gama fez
ao descobrimento da índia no anno de 1497, de mandado
de el-Rei de Portugal, navegando de Lisboa até Calecut,
foi huma das emprezas mais extraordinárias, que se con-
ceberão e executarão nos séculos modernos, ou se con-
siderem as difificuldades e os perigos, que se podião te-
mer, e effecti vãmente se encontrarão no seu desempenho,
ou se attenda á inlUiencia que ella teve sobre os progressos
da geographia , e conhecimento do globo, sobre a extensão
do commercio e communicação dos povos, sobre o adian-
tamento das sciencias e artes, e finalmente sobre a civi-
lisação geral do mundo.
Com este grande acontecimento pozerão os Portugue-
zes o ultimo remate e gloriosa coroa aos vastos planos
do immortal Infante D. Ilenriciue, e ás perseveradas dili-
gencias, e incessantes e dispendiosos trabalhos, com que
depois da sua morto os Reis Portuguezcs promoverão
seus grandiosos e ulilissimos intentos. Com este aconte-
cimento mostrarão, apesar da inveja e da ingi'ata niale-
volencia, até onde podia chegar o valor, a constância, e a
nobre ousadia de hum pov(^ (|ue em todo o tempo se dis-
TdMO V 19
290
tinguio, ou na guerra por feitos illustres, ou na paz por
actos de generosa virtude, e sempre pelo mais ardente
amor de gloria, e da grandeza da sua pátria.
Este mesmo acontecimento, porém, assim como mui-
tos outros que honrão os Fastos de Portugal, tem sido
quasi acintemenle altei'ado, e talvez destigurado com cir-
cumstancias pouco exactas, com reflexões vãas e ineptas,
e até com accessorios fabulosos, por escriptoi'es não bem
informados das particularidades da historia, ou pouco
altentos â verdade, e imparcial sinceridade, que ella deve
professar. Pelo que nos pareceo ajuntar nesta Memoria
tudo o que possa concorrer para o bom conhecimento de
tão notável successo, rectihcando os erros que acerca
delle temos notado em diílerentes escriptos, e preparando
deste modo matéria para hum dia se escrever com exacta
e sinceia verdade esta parte da historia de nossos desco-
brimentos.
AUTIGO 1.*^
Primeiros preparos da armada que foi ao descobrimeulo
da índia
El-Rei D. João II comprehendeo perfeitamente o plano
traçado por seu tio o grande e immortal Infante D. Hen-
rique, e vio que elle se não limitava ao simples c vago
descobrimento de novos mares e novas terias, mas que
tinha hum objecto mais determinado, e não menos grande
e ulil, qual era hir por meio da circumnavegação africana
debellar a potencia dos Mouros na índia, trazer os povos
idolati'as á fé christãa, estabelecer com elles ajustes do
commercio, e dai' huma nova direcção ás drogas e espe-
ciarias orientaes, cujo monopólio era então o principal
nervo do i)oder mahumetano, e o hia habilitando para
sulimetter ao seu domini(^ os estados da Europa.
O grande Rei, possuído destas idéas, que tanto roji-
29t
formavão com o seu c;ii'acter nobre e elevado, logo que
subio ao throno, não deixou na verdade de promover o
commercio Portuguez da costa occidental de Africa, de
que já se tiravão grossos proveitos; mas teve sempre em
vista o descobrimento da índia, como lim princii)al a que
devião endereçar-se seus cuidados e esforços, e com este
intuito ordenou e executou a seiie de descobrimentos,
que sabemos, desde o cabo de Santa Calbarina até além
do cabo da Boa Esperança, e logo immediatamente o des-
cobrimento da índia por aquelle caminho, já em parle ex-
plorado, e conhecido.
«Pelos grandes desejos (diz o seu chronista e criado
da sua escrivaninha, Garcia de Rezende) que el-Rei sem-
pre teve do descobrimento da índia, no que muito tinha
feito e descoberto até além do cabo da Boa Espeiança,
tinha concertada e prestes a armada para descobi'il-a,
com os regimentos leitos, e por Gapitão-mór delia Vasco
da Gama, íidalgo da sua caza. E por fallecimento de el-
Rei a armada não partio. E el-Rei D. iManuel, tanto que
reinou, mandou partir a dita armada, asbim como estava
prestes, pela mesma ordenança, e os mesmos regimentos
que estavão feitos, e por Gapitão-mór o mesmo Vasco da
Gama, que depois foi Gonde da Vidigueira, e Almirante
das índias, c^-c. »
Por onde se vê que foi el-Rei D. João II o que mandou
aprestar a armada para o descobrimento da índia, orde-
nando os regimentos para isso necessários, e designando
para a execução desta grande empreza o illustre Gama,
que depois com effeito a executou; e se mosti'a ao mesmo
tempo quaes forão os verdadeiros motivos, que iníluíião
Da resolução de el-Rei, a saber: os desi-jos que sempre
teve do descubrimettto da índia, a cuja satisfação e com-
plemento se tinhão constantemente dirigido os seus pre-
cedentes descobrimentos viesde a íiiilia equinocial alé
além do cabo da lloa Kspeidtiid.
292
Sem embargo porém da innegavel verdade destes fa-
ctos, hum. geógrafo moderno, que devera estar bem in-
struído delles, e de todas as circumstancias de hum acon-
tecimento tão importante em geografia, não só altera e
confunde algumas dessas circumstancias, mas até parece
querer attribuir a expedição da armada, ao menos em
parte, a hum motivo totalmente alheio do animo e das
intenções de el-Rei, porventura com o fim de deprimir
por este modo, ou diminuir hum pouco a gloria dos Por-
tuguezes.
« Como as informações (diz este escriplor) que se rece-
berão da-Abyssinia confirmavão a possibilidade de huma
passagem (por mar para o Oriente), que devia facilitar o
commercio da Índia, el-Rei de Portugal, estimulado aliás
pelo bom successo da viagem de Colombo a oeste, fez pre-
parar outra expedição, e Vasco da Gama foi encarregado
de a commandar. A 20 de Novembro de 1497 dobrou
o cabo da Esperança», Ac. (Pinkerton, Abregé de Geo-
graphie.)
O escriptor parece confundir neste lugar o reinado de
el-Rei D. João II com o de el-Rei D. Manoel, e a época
em que se receberão as informações da Abyssinia, e se
resolverão os preparos da armada, com a época da effe-
ctiva execução do descobrimento, e da primeira viagem
de Colombo.
No fim do anno de 1487 foi el-Rei D. João II informado
do feliz successo da viagem marítima do intrépido nave-
gador Bartholomeu Dias, que havia descoberto e dobrado
o cabo da Boa Esperança, e passado ainda além delle (1) ;
e no anno de 1489, ou quando mais tarde, no de 1490,
recebeo também el-Rei as informações da Abyssinia, em
(1) Bartholomeu Dias chegou a Lishoa em Dezembro de 1487, ha-
vendo 16 mezes e 17 dias que tinha sahido pai'a o descobrimento
do grande cabo.
293
consequência da viagem por terra, que para esse íim li-
nha ordenado e expedido (2).
Humas e outras informações, pondo fora de duvida a
possibilidade de se passar pormará índia, excitarão (como
era de esperar) grande alvoroço no animo de el-Rei, que
se via emfim tão adiantado na empreza, que sempre de-
sejara executar. E então tomou a resolução de logo man-
dar apromptar a armada para a expedição da índia, como
refere o seu domestico e verídico chronista.
Em nada disto teve, nem podia ter, parte alguma o es-
timulo, que o geógrafo estrangeiro quer suppor exalado
pela viagem de Colombo, o qual somente partio para o
seu descobrimento d'ahi a dous annos, em 1402, e so-
mente em 1493 aportou a Lisboa, já de volta da sua pri-
meira viagem.
Os pi'OJectos de el-Rei D. João II, em tudo conformes
ás idéas primitivas do illustre Infante D. Henrique, erão
muito anteriores á expedição de Colombo, e tendião ori-
ginariamente, e por huma longa serie de factos entre si
ligados, á execução do plano, de antemão sabiamente con-
certado, e constantemente seguido desde o anno de 1416.
Em continuação deste plano lie que el-Rei D. João II,
subindo ao throno em 1481, mandou logo proseguir nas
navegações de Africa, despachando para isso a Diogo Cão,
que em 1484 e 1485 descobrio o Congo, e chegou aos
22 gráos austraes.
Em continuação do mesmo plano he que este grande
Príncipe mandou em 1486 Barlliolomeu Dias (de que já
falámos) ao descobrimento do cabo extremo meridional
de Africa, a que el-Rei deo o nome da Boa Esperança,
pela que então concebeo de chegar á índia, termo de
(2) Allbiíso (lo Paiv;i, o João Perez da Covilhãa saliírão para a ín-
dia (! Etliiopia, por terra, oní 'l'i87, o segundo as circunislancias (lue
sabemos da sua viagem, não lie verosímil que tardassem mais de Ires
annos as noticias delia.
294
seus desejos. E despachou também por terra vários
viajantes, entre os quaes se nomeão especialmente os
dous, AíTonso de Paiva, e João Perez da Covilhãa, encar-
regando-os de passarem á índia, e penetrarem na Ethio-
pia soÍ3 o Egypto, como com effeito se executou. E tudo
isto he muito anterior á viagem de Colombo.
Em continuação, finalmente, do mesmo plano he que
aquelle sábio Rei rejeitou as vãas e quiméricas j)ropostas
de Colombo (3), que ainda quando parecessem exequi-
(3) Chamámos vãas e quiméricas as propostas de Coioniljo, por-
que na verdade o erão, e iião julgámos fazer com isso injuria ao
no])re Genovez, nem dotrahir cousa alguma do seu merecimento e
da sua gloria. « Colombo (diz o Tarragonez Girava na sua Cosmografia)
era grande marinheiro, c niediocre cosmógrafo '< . Este juizo nos pa-
rece exacfissimo. Colombo tinha adoptado as erradas idéas de alguns
antigos sobre a medida da circumferencia do globo, e sobre a pro-
longarão das terras orientaes a este; e consequentemente presumia
que navegando pelo Atlântico ao occidente, havia de achai', a pe-
quena distancia, as terras mais orientaes da Ásia, c que poucos dias
de navegação lhe bastarião para chegar a tocal-as. Esta idéa estava
de tal modo fixa em seu pensamento, que elle se encarregou de huma
carta de el-Rei Catholico O. Fernando para o gran-Kan dos Tártaros,
esperando dentro de pouco tempo entregar-lh'a, e comprimentar
aquelle Príncipe em pessoa da parle de el-Rei de Castella: e ainda
depois de ter achado as Antilhas, insistia, em suas Carias, no pro-
jecto ou esperança de tocar na Ásia, projecto e esperança, cm que
muitas vezes se achou enganado, mas que, segundo parece, nunca
de todo abandonou. (Veja-se sobre este assumpto o moderno escri-
ptor Anglo-Americano Washington Irving, na Historia da vida e via-
gens de Colombo. Paris, 1828, 4 vol., em 12.) E daijui vem que o
douto historiador ]\lr. Depping, analysando a obra que citámos, não
duvidou dizer, que Colombo era evidentemente visionário, e que esta
fora a razão por que os Reis Calholicos tiverão tanta difficuldade em
se decidirem a annuir a seus planos, e a fazer os gastos das expedições
que elle propunha. «E na verdade (continua ainda o mesmo escriptor)
hum estrangeiro que provava pela Biblia. e por Santo Agostinho
e S. Basílio que a Ásia não devia estar muito longe da Hespanha, e
que proraettia hir por mar ao gi-an-Kan da Tartaria para o conver-
ter, e o fazer alliado dos Reis Catholicos, não podia inspirar grande
295
veis, não satisfazião ao intento previsto, antes tornavão
em certo modo inúteis todos os trabalhos alô então em-
prendidos, e com incrivel perseverança seguidos e exe-
cutados por tantos annos.
Se el-Reí D. João II não ciiegou a expedir eífecti vã-
mente a armada, não foi porque esperasse, ou necessi-
tasse ser para isso estimulado pela viagem de Colombo;
mas sim porque logo foi com maior violência acommet-
tido da enfermidade, que desde muito tempo padecia, e
da qual veio a fallecer em Outubro de 1495.
El-Rei D. Manoel, que lhe succedeo no throno, seguio
confiança», eVc. El-Rei D. João II, e os rnathematicos e geógrafos
Portuguezes que elle consultou, tinhão idéas mais justas de cosmo-
grafia, e julgarão as idéas e propostas de Colombo, como ellas em
realidade devião ser julgadas. Os escriptores que taxão a el-Rei de
pouco avisado e prudente, e accusão os seus conselheiros de apai-
xonados e invejosos da gloria do navegador Geiiovez. julgão o pro-
jecto de Colombo, não pelo seu valor real, mas sim pelo seu re-
sultado casual, imprevisto, e totalmente inesperado. Este modo de
julgar, com ser frequente no mundo, lie tão próprio do vulgo igno-
rante, quanto alheio da razão e do bom senso. Demais, ainda que
Colombo realisasse a sua quimera, e chegasse a tocar as terras mais
orientaes da Ásia, e a celebre Zipango, de que porventura lhe tinhão
dado idéa as viagens de Marco Paulo, nem por isso el-Rei de l^or-
tugal, e os astrónomos e cosmógrafos seus conselheiros merecerião
a iniqua censura, que se lhes tem feito ; porquanto o plano Portu-
guez não tendia vagamente (como já dissemos) ao descobrimento e
conhecimento desses mais remotos paizes da Ásia; mas sim, e de-
terminadamente, a debellar o poder dos Mahumetanos na Índia, e a
arrancar das suas mãos o monopólio das especiarias e drogas orien-
taes, que os enriquecia, e os habilitava para a meditada invasão e.
conquista de toda a Europa Chrislãa. Sc os Portuguezes adoptassem
as quimeras dn Colondjo, perderião em grande parte os trabalhos
de mais de oitenta aiuios ^v. navegações, que os tinhão Itívado alé
além do cabo da Roa Esperança; não salvarião (rojuo salvarão) a
Europa do pesadíssimo jugo que a ameaçava; licaria ainda por nmito
tempo esquecida, ou abandonada a circumnavegação Africana, e só
mais tarde se aproveitarião os iinmensos recursos desta parte do
mundo, &c., &c.
296
á risca o plano que achou traçado, e aproveitando-se dos
aprestos que estavão feitos, fez sahir a armada em Jullio
de 1497.
Pelo que tudo se vê que os successos de Colombo são
totalmente estranhos a huma empreza, que em substan-
cia estava projectada havia mais fie oitenta annos, e á
qual se tinhão constantemente dirigido os esforços dos
Portuguezes em conformidade com as idéas e direcções
do Infante D. Henrique, como bem expressou o poeta
Portuguez na fala do Gama ao Çamori de Calecut, (jue
vem nos Lmiadas, cant. 8.", est. 70. "^ a 73.", e consta
das nossas historias:
Sabe, que ha muitos annos que os antigos
Reis nossos firmemente proposerão
De vencer os trabalhos, e perigos
Que sempre ás grandes cousas se opposerão ;
E descobrindo os mares, inimigos
Do quieto descanro, pretendt!>rão
De sabor que lim tinhão, e onde estavão
As derradeiras prai;is. qui' lavavão.
Conceito digno foi do ramo claro
Do venturoso liei que arou primeiro
O mar, por hir deitar do ninho caro
O morador de Abila derradeiro.
Este por sua industria, e engenho raro,
N'hum madeiro ajuntando outro madeiro
Descobrir pôde a parte que faz clara
De Argos, da Ilydra a luz, da Lebre e da Ara.
Crescendo c'os successos bons primeiros
No peito as ousadias, descobrirão
Pouco e pouco caminhos estrangeiros.
Que huns succedendo aos outros prosegúirão :
D'Africa os moradores derradeiros
Austraes, que nunca as sete flamas virão.
Porão vistos de nós, atrás deixando
Quantos estão os Trópicos queimando.
297
Assi com lirme peito, e com tamanho
Propósito vencemos a Fortuna,
Até que nós no teu terreno estranho
Viemos pôr a ultima columna :
Rompendo a força do liquido estanho.
Da tempestade horrífica, e importuna,
A ti chegámos, de quem só queremos
Signal, que ao nosso Rei de ti levemos.
&c., &c.
ARTIGO 2.°
Molívos |)or que D. Manoel mandou tão pequena armada,
c tão pouca gente ao descobrimento da índia
He constante nos nossos escriptos, que a armada, que
foi ao descobrimento da índia, constava tão somente de
quatro navios, hum dos quaes era de mantimentos, e lia-
via de ser queimado em certa paragem; e que em todos
eiles liião não mais que 160 ou 170 homens, tanto de ar-
mas, como de maiinhagem.
Deste pequeno numero de navios, e de homens tirarão
alguns escriptores a bem estranha consequência de que
el-Rei D. .Manoel tinha tão pouca esperança de conseguir
o effeito desta empreza, que não houvera por conveniente
arriscar nella maiores forças, nem sacrificar-lhe maior nu-
mero de indivíduos.
Semehiante modo porém de discorrer nos parece ins-
pirado por aquelle mesmo ciúme, que tantas vezes, e com
tanta razão, temos notado nos escriptores estrangeiros,
quando falão de nossos descobrimentos; o qual faz, que
não podendo elles de todo negar, ou occultar as acções
que nos são gloriosas, procurão ao menos desluzil-as, e
dar-lhes alguma falsa côr que as desfigure. Assim agora,
não lhes sendo possível passar em silencio a empreza do
illustre Gama, a felicidade da sua estupenda navegação,
e a incalculável impoi'tancia do seu descobrimento, pre-
298
tendem attribuil-o em certo modo ao acaso, suppondo o
próprio Rei D. Manoel, apenas com alguma leve esperança
do bom successo da expedição, e comtudo não duvidando
sacrificar a hum projecto quasi vão e quimérico (como
elles suppõem) a vida do insigne Gama, dos nobres Ca-
pitães que o acompanharão, e desses poucos Portuguezes,
que mnreavão, e guarnecião os navios.
Todo o discurso, porém, destes escriptores he fundado
em falsidade, e ignorância, como outros muitos do mesmo
toque, que podéramos apontar; e somente serve de mos-
trar o espirito que os (hrige em tão absurdas e insensatas
reflexões.
Não queremos negar que a expedição da índia fosse
arriscada, e de exilo incerto. Quem o poderia negar tendo
o juizo são? TinliHo os navegantes de passar mares ainda
pouco frequentados, e outros totalmente desconhecidos,
e nunca trilhados dos navios europèos. Não conhecião as
costas, nem os povos que as habitavão; ignoravão a di-
recção dos ventos, a^^ correntes das aguas, a influencia
dos climas, os baixos, restingas, parceis, e arrecifes, que
poderião encontrar em seu caminho; tudo emfmi para
elles era novo, e nunca experimentado.
Comtudo, no meio de tantas difficuldades, e apesar dos
riscos que ordinariamente acompanhão as grandes e ár-
duas omprezas, e que todavia somente parecem invencí-
veis ás almas medíocres; outras circumstancias occorrião
então, que desvanecendo parte dos temores e medos po-
pulares, inspií-avão animo e confiança, assim ao ventu-
roso Bei que resolveo e ordenou a expedição, como ao
hwoico Gama, <; aos itlustres Capitães, que delia se en-
carregarão.
Largos annos havia ipie os Portuguezes estavão acos-
tumados a supportar as fadigas fio mar, a affrontar os pe-
rigos de temerosas navegações, e a descobrir e praticar
costas, ilhas, e povos até então desconhecidos. Já o grande
299
navegador Bartholomeu Dias linha descoberto e dobrado
o cabo Tormentoso, que logo se chamou da Boa Espe-
ronça, e observado os mares que o banhão, e a nova di-
recção, que d'ahi começa a tomar a costa de Africa. Não
faltavão informações, postoque ainda vagas e confusas,
dos povos daquelle Oriente, das suas riquezas, e do grande
commercio que fazião de differcntes c mui remotos pontos
da Ásia pelos golfos Pérsico, e Arábico. Já também se sa-
bia pelas relações de Covilhãa, que era possivel a nave-
gação desde a costa oriental de Africa até á índia pelo
Oceano. Havia finalmente entre os Porluguezes grande
instrucção de cosmografia, geografia, e náutica, a que se
applicavão com particular esmero c curiosidade, e sobre
tudo levavão os ousados navegantes o animo heróico, de
que erão dotados, o amor invencível da gloria, e aquella
incontrastavel obediência, que os Portuguezes sempre ti-
verão ás ordens e vontades dos seus soberanos.
Era pois a empreza (outra vez o dizemos) difficil e ar-
riscada; mas não era impossível, nem quimérica, nem
temerária. E se q grande animo de el-Rei D. Manoel a
não julgasse praticável, quem o obrigaria a emprendel-a?
Muitas pessoas distinctas da sua corte, e até do seu con-
selho, a desapprovavão e a havião por impraticável, nem
duvidavão dar seus votos em conformidade com esta
opinião. El-Rei porém desattendeo estes votos, desat-
tendeo os temores e clamores populares, ainda mais con-
trários ao seu projecto (4). E diremos, ou poderá al-
(4) El-Rei resolvei) esfa expedirão, não nhstnvte as muHiu ad-
moestações de seus vassallos, que o contrario lhe persuadião : nem
os medos e carrancas, que de tão lonqa nareíjacão, de tão prorellosos
mares, de tão incógnitos c perigosos cursos lhe erão cada dia com
muita vehemencia representados. São os termos de que usa Mariz no
dial. 4.°, cap. 14." Veja-se tanilieni Camões, nos Lusiadas, canl. 4.",
est. 8!).' a lOi.", e especialmente a admirável fala do Velho, na est. 94."
e seguintes, aonde o poeta exprimio os rec(Mos e temores do povo do
reino sobre aquella navegação. Ainda ao tempo da segunda viagem
300
guem cora razão dizer que o íizeia, não tendo elle mesmo
esperança de feliz successo? Como encarregaria elle huma
empreza, que reputasse quimérica, não a algum atrevido
aventureiro, mas sim ao illustre Gama, a hum varão tão
hábil nos conhecimentos náuticos, tão experimentado no
mar, cheio de préstimo, e dotado de tão superiores qua-
lidades? Como caberia aliás na piedade, e nos benignos
sentimentos de el-Rei sacrificar a huma ruina quasi certa
(como se quer suppor) os seus vassallos, ainda os de in-
ferior condição, e menos úteis?
Mas venhamos já ao ponto, e digamos a verdadeira ra-
zão por que el-Rei mandou a huma expedição de tão alta
importância tão poucos navios, e nelles somente loO. ou
•170 homens. Este pequeno numero de navios e de ho-
mens, longe de nos dar alguma idéa da pouca confiança
de el-Rei no deserapenho da sua empreza, nos parece,
pelo contrario, huma nova prova do seu grande discer-
nimento e consummada prudência, e do serio desejo que
tinha de chegar ao fim do seu intento.
Sabia el-Rei D. Manoel, que a chusma dos navios, com
que Bartholomeu Dias aíTrontára pela primeira vez o cabo
Tormentoso, tinha chegado a enfastiar-se da longura da
sua navegação, e quasi o forçara a retroceder para Por-
tugal. Sabia mais recentemente, que a tripulação dos na-
vios de Colombo se tinha revoltado contra o seu Capitão,
e estivera a ponto de frustrar seus gloriosos trabalhos.
Sabia quanto he raro achar para as grandes e arriscadas
facções hum considerável numero de homens ousados,
do Gama, em 1502, fazendo el-Rei conselho, muitos dos Conselheiros
(diz o citado Mariz, no mosmo dial., cap. 15.") apontavão mil incon-
venientes para se proseguir poderosamente com força de armas a
conquista e commercio de terra tão remota. Pôde ver-se Barros,
dec. 1.% liv. 4.*', cap. 1.°, e liv. 6.°, cap. 1.°, tVc, Góes, Chronica de
el-Rei D. Manoel, part. l.'\ cap. 2.3.°, e os outros nossos cscri-
ptores.
301
fortes, destemidos, sofredores de traballios, superiores
aos perigos, e de animo intrépido e constante. Sabia flnal-
mente, que em hum grande numero de navios seria
mais diíTicil unir as vontades e os votos dos capitães,
quando porvenluia fosse necessai-io consultal-os; conser-
var a unidade e harmonia, que he indispensavelmente
necessária ao desempenho dos grandes e extraordinários
projectos: e manter entre a marinhagem e os homens de
armas a quietação, a prompta obediência, a subordina-
ção devida, e o exacto e fiel cumprimento dos deveres
de cada*hum.
Por outra parte o fim daquelia expedição não era con-
quistar terras, nem fazer guerra a povos alguns; mas tão
somente descobrir o caminho maritimo da índia, denotar
nas cartas os seus principaes pontos, e tomar todas as
informações que ao diante podessem ser úteis; para o
que não concorria tanto o numero dos navios e dos ho-
mens, quanto a sua qualidade, o seu valor, a sua expe-
riência, e a sua união e perseverança.
Por todos estes motivos pois resolveo o prudentíssimo
Príncipe mandar ao descobrimento da índia huma armada
de poucas velas, que podessem auxiliar-se reciprocamente
nas necessidades do mar, sem que pelo seu numero cau-
sassem embaraço, confusão, ou desordem nas operações
do serviço.
Nomeou para chefe da expedição o grande Vasco da
Gama, cujos superiores talentos erão conhecidos, e para
cuja abonação sobejava o ter merecido a escolha de el-Rei
1). João ÍI, e poz em suas mãos
a chave
Deste cornmettimerito grande e grave,
como diz o immortal poeta (5). Deu-lhe por companhei-
ros, a seu aprazimento, Paulo da Gama, seu irmão, que
(ri) íjimidas, caiil. 4.°, est. 82."
302
se offerecêra para o acompanhar, e que pela obrigação
do caigo, e peio aílecto do sangue se uniria sempre com
eile, e faria todo o possivel por que fosse bem succedido
na sua empreza; e Nicolau Coeliio, varão
De trabalhos mui grande sofredor,
e que também merecia o conceito de el-Hei, dos quaes
dous Capitães diz Camiões :
Ambos são de valia e de conselho
De experiência em armas e furor (G).
A marinhagem e gente de armas foi escolliida còm igual
discrição. Alguns erão criados dos Capitães; alguns ou-
tros criados de el-Rei; todos acostumados ás navegações,
e nellas experimentados, homens de animo esforçado e
constante, como mostrarão em todo o decui'so da sua via-
gem. E assim mesmo pareceo tão admirável, e tão digna
de louvor a sua obediência aos cabos, e a sua tolerância
nos trabalhos daquella prohxa e perigosa navegação, que
o poeta Portuguez, a quem não escapou género algum de
gloria nacional, que não deixasse immortalisada no seu
Poema, julgou também esta digna de ser commemorada
e honrada naquelles versos do cant. 5.°, est. 71.° que põe
na boca do próprio Gama, falando a el-Rei de Melinde :
Crês tu, que se este nosso ajuntamento
De soldados não fora Lusitano,
Que durara elle tanto obediente
Porventura a seu Rei, e a seu regente?
E logo depois na est. 72.*:
Grandemente por certo estão provados,
Pois que nenhum trabalho grande os tira
Daquella Portugueza alta excellencia
De lealdade firme e obediência.
(6) Lusíadas, cant. 4.", est. 82.*
303
E por aqui se vê quão errado conceito tiverão desta na-
vegação alguns escriptores nossos antigos (7), e depois
delles modernamente Mr. de La Clede, que no liv. xiv da
sua Historia Geral de Portugal, diz que Vasco da Gama
forcejando por dobrar o cabo da Boa Esperança íôra con-
trastado pelas tormentas, escolhos, nevoeiros^, e ventos
contrários, sendo tamanho o perigo da armada, que toda
a equipagem, e os próprios ojficiaes delia começarão a
perder as esperanças de vida, e a pedir a Vasco da Gama
que voltasse atrás; que o grande Capitão os exhorlára a
arredar de si estes vãos temores; mas que suas exliorta-
ções Ibrão inúteis; e que os Portuguezes possuídos do
medo conspirarão para a sua morte; finalmente, que
sendo o conluio descoberto por Paulo da Gama, mandái'a
Vasco carregar de ferros os auctores delle; tomara elle
mesmo o leme da sua náo, e que depois de sofrer por
muitos dias horrível tormenta, mudara o tempo e a ar-
mada dobrara o cabo.
Todas estas circumstancias nos parecem destituídas de
fundamento, e verdadeiramente fabulosas. Os nossos dous
escriptores mais antigos, Castanheda, e Banos não fazem
delias menção alguma, antes positivamente as desmen-
tem (8), e Camões, que estava mui particularmente in-
formado da viagem, e successos do seu heroe, e que nos
pontos essenciaes descreve os acontecimentos conforme
a verdade histórica, não só não faz menção alguma da
supposta conspiração, mas até louva e engrandece a con-
(7) Osório, De Rebns Emmanuelis, «kc, e o Padre Mafeu, Rer.
Ind., &c.
(8) Castantieda, Uisíoria da Índia, liv. 1.°, cap. ll.°, aDobrou e»tf
caho (Vasco da Gama) indo ao longo da costa co)n vento á popa, com
muito prazer de foliai, e tanger de trombetas cm toda afivla^, tSíc.
Barros, liv. 4.", cap. 4.° <i Passou aquelle grão rabo de Boaesperunça
com menos tormenta e perigo do que os marinheiros esperarão, pela
opiniUo que entra elles nndava. donde lhe ctiamaváo o Cabo das Tor-
mentas".
304
staricia, obediência e lealdade da gente dos navios, com
as encarecidas expressões, que deixamos allegadas.
O que porém acaba de refutar completamente esta fa-
bula, he que a armada Portugueza nem sequer experi-
mentou tormenta alguma notável ao dobrar o cabo da
Boa Esperança, como já vimos pelos lugares citados, e o
notarão outros escriptores Portuguezes como cousa digna
de admiração (9). O próprio Camões, que neste lugar in-
troduzio o immorlal episodio de Adamastor, desvanece,
em sua mesma poética ficção, a idéa de grandes tormen-
tas, que os navegantes experimentassem naquella para-
gem ; porquanto o fero gigante, depois de os atemorisar
comavistadehuma«Mvew?we</rfl, temerosa, ecarref/ada,
e com os grandes bramidos do mar (cant. 5,°, est. 37.° e
38.°), se limitou ás terríveis ameaças de futuras vinc/an-
ças, e com isto
Súbito d'ante os olhos se apartou;
Desfez-se a nuvem negra, e c'hum sonoro
Bramido muito longe o mar soou (10).
Pelo que entendemos que os escriptores que falarão de
grandes tormentas, e conspirações na cabo da Boa Espe-
rança, ou se equivocarão com as viagens de Colombo, e
Magalhães, ou julgarão realçar a gloria do Gama, ornando
a sua narração com huma circumstancia semelhante (H).
(9) Góes, Chronica de el-Rei D. Manoel, part. 1.», cap. So." Ma-
riz, dial. 4.", cap. 14.°, ÒiC.
(10) Cant. 5.°, est. 60.»
(11) Agora, que de apontamentos escriptos ha alguns annos ti-
rávamos a hmpo esta Memoria, chegou ás nossas mãos o Roteiro da
viagem de D. Vasco da Gama á Índia em 1497, impresso na Typo-
graphia Commercial Portuense no presente anno de 1838. Os doutos
editores na sua nota 17, pag. 143, concordão no que temos dito da
conspiração contra o Gama, e apontão breve, mas judiciosamente,
os argumentos que a fazem inverosimil, sendo hum delles o silencio
do próprio Roteiro acerca das suppostas tormentas no cabo da Boa
Esperança.
305
ARTIGO 3.°
Corri (jera-se algiiniiis equivociHÕes de hum esciipldr l*(nlu(|iiez
sobre esta viagem
Em outro escripto nosso descrevemos succintamente a
viagem da armada Portugueza, notando os ptincipaes pon-
tos das costas que ella tocou, e os dias em que os tocou,
6 seguindo nisto o que nos pareceo mais provável no meio
da variedade, que se observa nos escriptores acerca destas
particularidades. Assim, por exemplo, posemos a sabida
do Gama de Lisboa no dia 8, e não 9 de Julho de 1 497,
porque notando alguns antigos que fora em hum sabbado,
esta condição se veiificou naquelle anno no dia 8. Pose-
mos a chegada a Melinde no dia I o de Abril de 1498, por-
que também achámos notado que era dia de Páscoa (42),
a qual efiectivamente cahio naquelle anno a 15 de Abril.
Posemos a chegada á costa do Malabar a 20 de iMaio, por-
que lemos em alguns antigos, que fora em domingo, e
esta nota se verificou naquelle anno no dia 20, ác.
Aqui somente pretendemos agora notar algumas equi-
vocações, que padeceo o benemérito auctor da Historia
Genealógica da Coza Real Portugueza; porque sendo
escriptor domestico, sincero, e verídico, pôde a sua aucto-
ridade induzir em erro os leitores desprevenidos.
Diz elle (13) que a armada de Vasco da Gama andara
no cabo da Boa Esperança os mezes de Agosto, Setembro
e Outubro^ padecendo tormentas, e tendo avistado a ilha,
a que se paz o nome de «Santa Helena)^, e que finalmente
dobrara o cabo a 2~> de Novembro.
(12) A este dia do 1'ascoa alliule Camões, cant. 2.°, est. 72.» Ve-
ja-se Góes, (Ihnmka de ol-Rri ]). Manoel, part. l.", cap. 35.° e se-
guintes.
(13) No artigo em ipn' (rala de el-llei l). Manoel.
TOMO V 20
306
Porém o próprio escriptor nota, que o Gama sahíra do
Tejo com a armada a 8 de Julho de 1497, e como assim,
bem claro he que não podia estar, e andar no cabo da
Boa Esperança em Agosto, Setembro e Outubro (14).
Os nossos escriplores dizem que era o quinto mez da
navegação (15), quando os navegantes avistarão terra, e
nella sahírão, que foi na angra de Santa Helena, onde o
Gama quiz íãzer aguada, e tomar a altura do sol. Alguns
nolão que era sabbado 4 de Novembro. Camões diz que
erão passadas cinco luas, quando a armada chegou e se
demorou aqui; e logo suppõe, que tendo continuado via-
gem, e passados mais cinco soes (isto he, cinco dias) se
avistara o grande cabo (16), e nenhum destes escriptores
faz menção de toi-mentas algumas, que os navegantes so-
fressem nestas paragens, como já mostrámos no artigo
antecedente.
Também o escriptor se equivocou em dizer que a ar-
mada avistara a ilha de Santa Helena. Esta ilha foi des-
coberta por João da Nova. em 1302, ao voltar da índia.
O douto escriptor parece ler confundido a ilha de Santa
Helena com a angra de Santa Helena, que foi, como aca-
bámos de dizer, a que Gama descobrio, e aonde sahio em
(14) O douto esciiplor equivocou-se, porvíMitura, na inteliigeií-
cia das palavras de Dainiâo do Góes, que diz: « Assique, seguindo
Vasco da Gama sua viaqein, passou a vista das ilhas de Canarea,
p d'alii foi ter ao porto de Santa Maria na illia de Santiago aos 28
dias do mez de Jiútío, donde seguindo seu regimento, começou de cor-
tar a leste em busca do cabo da Bouesperança, no que andou (não
no cabo, mas em busca e demanda delle) os mezes de Agosto, Se-
tembro, e Outubro, com muitas tormentas, e tempos contrários, até
que Deos se houve por servido lhes mostrar terra. .. e acharão ser
huma terra baixa, em que ha livma grande bahia, a que poserão o
nome a Angra de Santa Helena «.
(15) O quinto mez, ou ao quinto mez de navegação, e não depois
de passados cinco mezes, como alguns disseram pouco exactamente
(16) iMsiddas. ranl. "i.". esl. 24." e 37/
307
terra. A angra ou r»aliia de Santa Helena lie situada quasi
na extremidade de Africa : mas ainda na costa occidental,
antes de chegar ao rosto do cabo. As Cartas a denotão
em pouco mais de 3á'\ ao mesmo tempo que a ilha de
Santa Helena está em l(j", ou 10° 40' segundo a compu-
tação dos nossos antigos marinheiros, e dista alguns 16"
em latitude do lugar, aonde Gama tomou terra (17).
A passagem do Cabo da Boa Esperança a 25 de Novem-
bro he ainda outra equivocação do escriptor. Alguns di-
zem que os navegantes o passarão a 20, outros a 22, e
que a 25, dia de Saeta Catharina, chegarão á angra ou
aguada de S. Braz, já 00 léguas alem do cabo. Nós jul-
gámos que o dia 22 tem melhores votos a seu favor, e
conforma mais com as notas precedentes e subsequentes
da viagem (18).
ABTIGO 4.°
Da pessoa do tíama
São uniformes os nossos escriptores em dizer que Vasco
da Gama era homem fidalgo, natural da villa de Sines, e
filho de Estevão da Gama (19); mas não temos achado
notado o anno do seu nascimento, nem a idade que tinha
quando foi mandado ao descobrimento da índia, sendo
que todas as particularidades são dignas de memoria,
quando se trata de homens, que por suas grandes e il-
lustres acções se fizerão acredores da immortalidade.
Mariz, falando da expedição da índia, diz que Vasco da
(17) Veja-se o Roteiro da viagem de Vasco da Gama (de que jú
acima falámos) recenteiaente dado á luz da imprensa na cidade do
Porto, not. 11, pag. l.'{9.
(18) Ibidem, not. 17, pag. 142.
(19) Moreri diz : «Filho de Estevão da Gama, e de Isabel Sodré,
fdha de João de Rezende, Provedor, ou, Director dos diques do Tejo,
Provedor das rallas de Santarém ». Grand. de Portugal.
308
Gama era então mancebo solteiro, e de idade e disposição
para sofrer todos os trabalhos (20). Mas que idade era
esta? E até onde alargava este escriptor a denominação
de mancebo? Isto he o que elle nos não diz; e somente sa-
bemos que em 1478 já Vasco da Gama tinha passado a
Tangere em companhia de Fernam de Lemos, mandados
(como he verosimi!) por el-Rei, e encarregados de alguma
importante commissão, pois consta que havendo passado
pelos reinos de Castella com direcção áquella praça, forão
munidos de salvo-conducto, dado pela Rainha D. Iza-
bel (ál): e em 1402, mandando el-Rei D. João II pôr em-
bargo em todos os navios Francczes. que estavão nos portos
de Portugal, encarregou de executar esta ordem em Setu-
val, e no Algarve a Vasco da Gama, por onde entendemos,
que já então devia ter idade e prudência para commandar
alguns navios, e dar, como deo, cabal satisfação ao que
el-Rei lhe encarregara (22).
Diz mais o mesmo Mariz: «Que D. Vasco da Gama era
homem de meãa estatura; hum pouco envolto em carnes:
cavalleiro de sua pessoa; ousado em commelter qualquer
grande feito; em mandar áspero, e muito para temer em
qualquer paixão; sofredor de trabalho, e grande execu-
tor no castigo de qualquer culpa em cumprimento da jus-
tiça y>; e em outro lugar: «Que Vasco da Gama era do-
tado de hum animo grande e incançavel, curiosissimo da
arte marilima, e tão douto e diligente nella, que podia
competir no entendimento e cuidado de suas cousas com
os mais experimentados pilotos da Europar» (23): quali-
dades que lhe merecerão o conceito e a estimação da-
(20) Góes diz: «Homem solteiro, e de idade para sofrer os tra-
balhos de Imma tal viagem».
(21) Navarrete, Viages y descobrimientos de los Espaíioles des de
fines dei siglo av. Madrid 1825, loin. 3.°, pag. 477.
(22) Garcia de Rezende, Chronica de D. João II.
(23) Mariz, dial. 4.", cap. 14.°, o dial. o.°, cap. l."-
3U9
quellc grande Rei, tão bom conhecedor dos homens, e tão
justo avahador do merecimento, que não só o encarre-
gou da commissão que dissemos, mas lambem o rleslinou
para a árdua empreza do descobrimento da índia, logo
que começou a ai)restar a armada que lá (jueria iii.iii-
dar(2i).
Alguns escriptores nossos, e entre elles Góes, e o mes-
mo Mariz, dizem que el-Rei D. João II tinha dado a ca-
pitania da armada do descobrimento da Índia a Estevão
da Gama, pai de Vasco da Gama; e que por eile ser fal-
lecido ao tempo que el-Rei D. Manoel mandou executar
a empreza, escolhera el-Rei o filho para esse fim (25).
Esta noticia porém he desmentida pelo testemunho de
Rezende, que no principio desta memoria deixamos ci-
tado, o qual por ser escriptor contemporâneo e veridico,
e ter sido do intimo serviço de el-Rei D. João lí nos me-
rece mais credito; além de nos parecer provável que Es-
tevão da Gama tivesse já então mais idade do que convi-
nha para tão diíBcil e laboriosa empreza.
O illustre Gama fez a viagem da índia da maneira (}ue
referem nossas Historias, e nós tocámos em outro es-
cripto; e voltando a Portugal, teve o desgosto de deixar
sepultado na ilha Terceira seu irmão Paulo da Gama,
que ali veio fallecer, e chegou a Lisboa a 29 de Julho de
449Í) (26), pouco mais de dous annos depois da sua sa-
(21) Rezende, Chrunica de D. João II, cap. 146." e iHio."
(2o) Góes, Chronica de el-Rei D. Manoel, part. 1.', cap. 23." —
Mariz, dial. 4.", cap. 14." — Moreri acrescenta mais alguma cousa, e
diz: «Que Estevão da Gama lóra nomeado por el-Rei D. João II;
mas (jue não executando a empreza por el-Rei fallecer, nomeara el-
Rei D. Manoe! a Paulo da (iama, o (jual recusara aceitar a conunis-
são com -pretexto de fulta de saúde; mas que depois quizera hir com
seu irmão para mostrar que não temia a incerteza da viaçiem. Isto
nos parece inverosímil. Nós preferimos, neste ponto, a narração de
Rezende a todas as outras.
(2G) Gocs e Mariz dizem, ijue JSicolao Coelho ciiegára ao Tejo a
310
hida, sendo recebido com applausos e admirações, que
facilmente se podem presumir (á7).
Muitos escriptores notão, e estranhão (jueVasco da Gama
não tivesse hum premio correspondente a tão relevante
serviço. Eu não sei se ha nisto alguma exageração,, ou al-
guma confusão de tempos. He certo que alguns serviços
nunca podem ser recompensados de liuin modo conve-
niente, e com premio que os iguale; e laes erão os que
Vasco da Gama fez ao Estado naquella viagem: mas
também he certo que a avaliação dos serviços, e a es-
timação dos prémios são cousas mui varias no juizo e
conceito dos homens, e dependem muitas vezes de con-
siderações parliculares, que nem sem{)re podem ser uni-
formes.
Gomo quer que seja, Vasco da Gama teve de el-Rei a
mercê do prenome Dom para si e seus irmãos, e descen-
dentes, e a honra de pôr no centro do escudo das suas
armas o escudo das Quinas Reaes (á8). Estas distincções,
postoque meramente honorificas, tinlião naquelle tempo
muito maior valor do que hoje se lhes daria. Teve mais
)iOO)$ÍOOU réis annuaes de juro, u herdade para si e para
10 de Julho, e o Gama a 20 de Agosto. Castanheda diz que chegara
em Setembro a Belém, havendo dous annos e deus mezes que d'ahi
partira. Outros dizem que entrara em Lisboa a 29 de Julho: e Bar-
ros a 29 de Agosto. Nós seguimos o que tivemos por mais verosí-
mil, parecendo-nos, que nem o Gama se d(Mnoiaria quarenta, qua-
renta e nove, ou cincoenta e tantos dias na ilha Terceira, nem el-Rei
deixaria de mandar algum navio em busca delle, se tanto se demo-
rasse.
(27) Além das festas e alegrias publicas (juc houve em Lisboa,
escreveo el-Rei a todas as cidades e villas notáveis do reino, parti-
cipando-lhes a chegada de Vasco da Gama, os trabalhos que tinha
passado, e o descobrimento que deixava feito, e encommendando-
Ihes que solemnisassem este successo tão prospero, e de tanta gloria
e utilidade para a nação com acções de graças ao Ceo, e com de-
monstrações de piedade e alegria. (Mariz, dial. 4.". cap. 14.°)
(28) Severim de Faria, Noticias de Portugal, disc. 3.°, § 16."
seus descendentes, impostos na (lizinin nova do pescadd
de Sines, o de Villa Nova de Milfontes, nas sizas de Sines
e de Santiago de Cacem, e no Faço da Madeira de Lisboa;
e a faculdade de poder empregar na Índia cada anno 200
cruzados, os qiiaes regularmente, na especiaria que lhe
vinha do emprego delles, no tempo de João de Barros,
respondiam cá no reino 2:8006000 réis (29).
Alguns acrescentão aqui o officio hereditário de Almi-
rante da índia, e também (com pouca exacção chronolo-
gica) o íilnlo de Conde da Vidigueira; mas este titulo so-
mente foi dado ao Gama vinte annos depois, como logo
diremos; e emquanto ao officio de Almirante, diz Casta-
nheda, que el-Rei lhe fizera delle mercê depois da se-
gunda viagem á índia em 1503 (30). Nós vimos hum tras-
lado authentico do Regimento do Almirante destes reinos
tirado do liv. 1." das hordenações antyguas, dado, em
pergaminho, a pedido de D. Vasco da Gama, em 12 de
Fevereiro de 152 i, pouco antes da sua terceira viagem
ã índia, e quando já tinha o titulo de Conde.
Vasco da Gama foi mandado segunda vez á índia no
anno de 1502 com vinte nãos, parte das quaes havião de
licar em guarda daquelles mares. Fez tributário o Rei de
Quiloa, e trouxe a el-Hei o ouro das páreas, que aquelle
Príncipe prometteo pagar, e que erão as primeiras que
vinhão da Ethiopia Oriental. Assentou novos ajustes de
commercio e amizade com os Reis de Cochim, e Cananor;
castigou severamente a perfídia e trato doble do Çamo-
(29) Míiriz, (liai. '^.^ t;i|». 14." Conf. Ikiros, liv. 4." e 11."
(30) As palavras de Caslaiilxnia são t>stas, no liv. 1.", cap. 48.»:
" Cheqou a Lisboa hn primeyrb de Setembro do iiwsiiio anno {úe lo03).
c todos os (irandes da corte delUeij dom Manuel lio foráo receber ao
cays, e ho levarão ao paço onde lio ellley recebeo com muita honra,
e lhe fez mercê do almirantado do mar Indico, e o fez Conde da viUa
da Vidifiueira » : mas como a ulliiiia clausula não lie verdadeira, re-
ceiàinos que também na precedente houvesse equivocarão.
312
rim de Calecut, e recollieo-se a Portugal com treze náos
carregadas de ricas mercadorias, que acabarão de desva-
necer todas as desconfianças, que ainda havia contra o
commercio do Oriente.
Destes novos, e mui relevantes serviços he que parece
não ter tido Vasco da Gama premio algum, que nos conste,
até o anno de 1519, salvo se dissermos com Castanheda,
que então lhe foi dado o almirantado.
Em 1519, o Duque de Bragança D. .layme, que esti-
mava o Gama, sabendo que este grande homem estava
queixoso da pouca remunerarão de seus serviços, não só
lhe facilitou a venda das duas villas da Vidigueira, e Villa
de Frades (que erão dos Duques), mas também interveio
com el-Rei para que o fizesse Conde da Vidigueira, o que
tudo se effeituou no mesmo anno, sendo a Carta do titulo
passada a 29 de Dezembro (31). Com este titulo conti-
nuou a sua caza até o tempo de el-Rei D. João IV, em
que o Conde Almirante foi elevado a Marquez de Niza,
pelos bons serviços que fizera á Coroa na embaixada de
França (32).
O Conde D. Vasco da Gama foi ainda mandado terceira
(31) Historia Genealógica, no artigo do Duque D. Jayme. — Faria
e Souza, Europa Portwjueza, tom. 2.°, part. 4.', cap. 1.°, § 52.°, diz
quo (^1-Rci deo a T). Vasco da Gama o titulo de Conde, menos instado
da gratidão Renl, que de sen valido D. Álvaro da Costa. Pôde ser
que o Duque e o valido concorressem ambos para o despacho do
Gama. A venda das duas villas foi feita pelp Duque por escriptura
celebrada em Évora a 17 de Novendtro de 1519. O Gama deo por
ellas quatro mil cruzados em dinheiro, e quatrocentos mil réis de
juro. (Ckronica do Carmo de Fr. José Pereira de SanfAnna.)
(32) D. Vasco Luiz da Gama, 5.° Conde da VidigUíúra, e 3." neto
do nosso heroe, do Conselho d'Estado, e Embaixador a França, foi
feito Marquez de Niza por Carta de 18 de Outubrf) de 1646 : e a
seu fdho fez el-Rei Conde da Vidigueira de juro e herdade, conce-
dendo que os primogénitos da sua caza tomassem este titulo, sem
necessidade de nova Carta, ou Graça.
313
vez á índia em 1524, com o cargo de Vice-Rei (33); mas
chegando a Goa em Setembro, foi fallecer em Cochim,
com cousa de três mezes e vinte dias de vice-reinado, a
24 de Dezembro do mesmo anno.
He bem notável, que Mr. de la Glede, fazendo menção
desta terceira viagem do grande Gama, no liv, 16.° da sua
Historia Geral de Portugal, não só lhe dê nesse lugar
constantemente, e por muitas vezes, o nome de Lopo Vaz
da Gama (34), mas também nos dê a nós a noticia de
que o Gama era então já velho, e quasi caduco.
Acima dissemos que ignorávamos a idade do Gama
quando foi a primeira vez á índia ; e he provável que Mr.
de la Glede não tivesse disto melhor conhecimento : mas
dado que o Gama tivesse então quarenta annos, teria agora
sessenta e sete, que nem he grande velhice, nem he idade
que faça o homem caduco. Muitas vezes temos observado
e notado, a outros respeitos, quão pouco exacto he este
escriptor, e quão propenso a ornar com fabulas a historia
de Portugal! Não duvidando ás vezes de nos dar as suas
fantasias por factos históricos (35).
(33) Em Évora, a 28 de Fevereiro de lo24 fez D.Vasco da Gama
homenagem a el-Rei pela Capitania-mór, e governança da índia,
como consta do auto que disso se lavrou, e está no Real Archivo,
110 Corpo (^hronolofiico, part. 1.% maç. 30, num. 90, sendo testemu-
nlias o ÍAmiU' do Vimioso, e Bartlioloineii. de Paiva, amo de S. Alteza.
(34) Já precedentfiniMite, no mesmo liv. iô.", descrevendo Mr.
de la Clede o acto da acclamação de el-Rei 13. João 111, nomêa en-
tre os fidalgos ([uc o acompanhavão, o famoso Conde da Vidigueira
Lopo da Gama, que foi o primeiro que entrou nas hidias! E o tra-
diKítor deixou passar tudo isto sem correcção!
(35) Como a accusação que aqui fazemos a Mr. de la Clede pôde
parecer grave, havemo-nos por obrigado a dar delia algumas pro-
vas, e serão escolhidas, entre muitas outras, dos próprios factos que
pertencem á historia dos nossos descolirimentos (> conquistas:
1." No liv. H." toda a narração (]ue o escriptor ahi faz do prin-
cipio dos (l<'scohrimentos iiiariliiiios dns l'ortiiguezes he escriptacom
extrema negligcsncia e cheia de erros. Noiaremos porém somente, que
314
Os nossos Heis não costumavão mandar ã índia para
governar aquelles estados homens caducos, nem D. Vasco
lalando de Gil Eanuex (a quem na tradticrão se dá o nome de Gil
Annio, e ás vezes simplesmente de Ânnio), que dobrou o cabo Bo-
jador, diz que elle chegáfa até Serra Leoa, e que depois por espaço
de cincoenta annos mnQuem ousou dobrar o cabo de Serra Leoa.
Mas tudo isto he falso: porque nem Gil Eannes chegou a Serra
I.eôa, nem em Sei ra í^eóa havia cabo algum' que demorasse ou dif-
ficultasse a ulterior navegação, nem nos descobrimentos houve essa
interrupção de cincoenta annos, imaginada pelo escriptor. Desde que
(iil Eannes dobrou o Bojador, toda a costa para o sul se foi desco-
brindo successiva e progressivamente por espaço de trinta annos, e
por dilTereiítes descobridores, em vida do immorfal Infante D. Hen-
rique. Logo depois da sua morte, que foi em 1460, mandou el-Rei
D. Affonso V Pedro de Cintra á costa de Africa, e este foi o que
descobrio Serra Leoa em 1461, e a correo em toda a sua iongura de
oO milhas, passando ainda alem delia cousa de 240, ou 2oO milhas
até o cabo Mesurado, em quasi o gráos meridionaes, &c.
2." No liv. 17.". escrcvenilo iMr. de la Clede a historia do pri-
meiro cerco de Diu, dá constantemente ao insigne capitão, que de-
fendeo níjuella fortaleza, o nome de Heitor da Silveira, sendo bem
sabido de todos, que se chamava António (e não Heitor) da Silreira.
Heitor da Silveira. t]\w lambem se assignalou muito em feitos mili-
tares na Índia, já i-va fallicido ao tempo do primeii'0 cerco de Diu.
3." No mesmo liv. 17.", referindo Mr. de la Clede a vinda de Nuno
da Cunha para o reino, depois de ter governado a índia por dez an-
nos, e como falleç(^ra no mar, acrescenta o gr.ande conceito que el-
Rei fazia deste excellenie capitão, o muito que aeidio a sua perda,
(' as lagrimas que pur ella derramou. Mas o certo he que na ilha
Terceira estava bum Ministro de el-Rei esperando por Nuno da Cu-
nha para o trazer em ferros a Lisboa, e Barros diz, que cala por
credito da nação as festas e apercebimentos, (jue esperavão a Nuno
da í^unha com Portugal, se cá chegasse.
4." No liv. 18.". diz la Clede, que D. João de Castro era Gover-
nador de Ormuz quando iecebeo*a patente de Governador Geral dos
índias. Mas D. João de Castio nunca foi Governador deOrnjuz, nem
estava na índia, m is sim em Portugal quando lhe foi dado aquelle
governo.
5." No niesnio liv. 18." refere ao tempo de el-Rei D. João III o
estabelecimento dos Portuguezes na ilha de S. Thomé, sendo que a
ilha foi mandada povoar em 1493, como o mesmo la Clede reco-
315
da Gama mostrou no decurso desta ultima viagem mere-
cer essa qualificação. El-Rei não só o mandou para res-
taurar as cousas da índia que já então ameaçavão deca-
dência, mas também lhe confiou huma poderosa armada,
em que hião 3:000 homens de armas para servirem na-
quelles estados debaixo do seu mando. A armada nave-
gou prosperamente até á vista das terras de Cambaia,
aonde, estando o mar em calm.i, se sentio repentinamente
nas náos hum espantoso tremor que pôz toda a gente em
confusão, cuidando que naufragavão. Huns acudião ao
leme, outros á bomba, outros a prevenir algum modo de
salvação, todos em grita, todos em grande perturbação
e desordem. Senão quando o illustre Gama se levantou
intrépido, e adiantando-se ao meio do convés, bradou:
« Eia, amigos, não temaes, que o mar he o que treme de
nós-»; as quaes palavras, ditas com grande acordo e se-
guridade, alentarão a gente, e dahi a pouco cessou o ter-
remoto que elle mui bem conheceo que era a causa da-
quelle fenómeno. Acaso será isto prova de que Vasco da
Gama estava quasi caduco? Não o julgou assim Camões,
que a esta palavra do Gama alludia, (juando disse no
cant. 2.°, est. 47.'^:
Vereis este, que agora pressuroso
Por tantos medos o Indo vai buscando,
Tremer delle Neptuno de medroso.
Sem vento suas agoas encrespando.
E logo :
Ó gente fortt' e de altos pensamentos.
Que também delia lião medo os elementos.
O mesmo que os escriptores. e com elles Mr. de la
Clede, referem acerca das providencias, que o Gama logo
nhece no liv. 14."; e em 1550, que lie o anno que assigna áquelle
estabelecimento, já na ilha liavia grande commercio, como nos consta
da Navegação de Lisboa a S. Thomé. escripta no snno de 1551 por
hum piloto Portuguez, (fiie lá tinha hido cinco vezes, como elle mesmo
diz, ÒLC, Ac.
316
deo nesse pouco tempo de seu vice-reinado, das expedi-
ções que ordenou, dos effeitos que a sua chegada á índia
produzio, tanto nos Portuguezes, como nos estrangeiros,
á-c, desvanece a idéa de caducidade, mui imprópria, e
desattentadamente introduzida porJMr. de la Clede na sua
narração. O fallecimeiito de D. Vasco, aos três mezes e
pouco mais do seu governo, podia acontecer, ainda que
elle estivesse no vigor da mocidade.
As respeitáveis cinzas deste grande liomem vierão tras-
ladadas para Portugal, e forão depositadas no convento
carmelitano da villa da Vidigueira, em hum caixão collo-
cado no presbyterio da igreja ao lado do Evangelho, em
cuja parede se metteo huma lapida com esta inscripção:
AQUI JAZ O GRANDE ARGONAUTA D.
VASCO DA (;ama, primeiro conde da
VIDIGUEIRA, E ALMIRANTE DAS ÍNDIAS
ORIENTAES, E SEU FAMOSO DESCOBRIDOR.
Parece cousa mui verosímil, que Vasco da Gama escre-
vesse a Relação ou Diário da sua primeira navegação á
índia, para o apresentar a el-Rei D. Manoel, ou pelo me-
nos o mandasse escrever debaixo da sua immediata di-
recção e nota. Este devia ser (ao que parece) hum dos
primeiros cuidados, se não rigorosa obrigação, que in-
cumbia aos capitães das expedições marítimas, maior-
mente quando hião a descobrir novos mares, costas, e ter-
ras; tanto para que por suas observações se verificassem
os pontos já denotados nas cartas, ou se demarcassem os
que novamente se hião descobrindo, ou se determinasse
e corregisse a projecção das mesmas cartas, como para
se notarem os differentes povos que habitavão as costas,
os seus costumes, Índole, linguagem e trato, e emfim to-
dos os accidentes que podesseni servir ao conhecimento
dos lugares e da gente, e fossem de utilidade aos futuros
navegantes, que fizessem o mesmo caminho. A viagem de
Vasco da Gama era de tal novidade e importância, e de
317
tanto empenho de el-Kei, e expectação dos Portuguezes,
que temos por absolutamente incrivel, que elle não satis-
fizesse aquelle cuidado e obrigação. Comtudo não temos
achado a este respeito noticia alguma mais positiva que a
que nos dá Ortelio no seu Theatrum orhis Terrarum, im-
presso em Antuérpia, em 1612, na breve nota que pre-
cede á taboa 4.^ de Africa, aonde apontando alguns au-
ctores, que desci-evèrão esta parte do globo, diz: aExre-
centioribus consnle Aloysiiim Cadamostum, Vascum de
Gama, Franciscum Alvarez, giii Áethiopiam perlustra-
vit)^, de; donde parece colligir-se que Ortelio tinha co-
nhecimento de alguma Relação feita por Vasco da Gama,
ou que corria com o seu nome. Hum escriptor nosso, mo-
derno, diz: «Ha tradição que escrevera a sua primeira
viagem ^K E Moreri: nDizem que publicara a Relação da
sua primeira viagem d índia » ; e cita huma fíibliotheca
Lusitana (manuscripto). E eis-aqui tudo o que a este res-
peito tínhamos achado até 1838, anno em que se fez a
publicação do Roteiro mencionado a pag. 304 e 306, not.
num. M, e 17. •
Na Colíecção das Cartas de Américo, publicada por
Bandini em 1743, vem no art. 3." a Relação de huma ex-
pedição feita por ordem de el-Rei de Portugal pelo cabo
da Boa Esperança a Calicut, dirigida a Lourenço de Me-
dicis, que Bandini chamou inédita. Desta Relação, diz Ca-
mus, que he a da viagem de Vasco da Gama, escripta por
Américo Vespucio. (Vej. a Memoria de Mr. Camus sobre
a Colíecção das grandes e pequenas viagens, ócC. Paris,
1802, em 4.")
ARTIGO 5.°
Dos Poi-lii(|ii('zes que acuiiipuiiliárão a Vasco da Gama
na sua viagem
(^omo este nosso trabalho, e outros que temos empren-
dido acerca de nossas navegações, viagens, e descobri-
318
mentos tenha por hum de seus principaes fins renovar a
memoria de tudo quanto possa ser glorioso á nação Por-
tugueza, e vindicar os nossos compatriotas do injusto e
ingrato desprezo dos estrangeiros, bem quizeramos no-
mear aqui hum por hum os heróicos companheiros que
forão com o Gama na expedição da índia, e dar a todos,
até ao mais inferior, a porção de gloria que a todos indu-
bitavelmente compete. Mas a historia somente nos con-
servou escassa memoria de poucos, e com essa nos de-
vemos contentar.
Já nomeámos os dous illustres Capitães, Paulo da Gama,
da náo S. Rafael, e Nicolao Coelho, da náo Berrio. O pri-
meiro que era (como dissemos) irmão de Vasco da Gama,
ficou sepultado na ilha Terceira, aonde falleceo, vindo de
volta para Portugal.
De Nicolao Coelho, diz Severim de Faria (Noticias de
Portugal, disc. S.**. 1 16.°) que era fidalgo de grande va-
lor, e que se houvera na exi)edição com singular esforço
e prudência. Na volta da armada ao reino apartou-se da
capitanea, e chegando á bahia de Cascaes a 10 de Julho
de 1499, e sabendo que o Gama ainda não era vindo, di-
zem alguns, que quizera voltar ao mar a procural-o, mas
que el-Hei o não consentira, e o mandara entrar; pelo
que foi o primeiro que informou a el-Rei de tudo o suc-
cedido.
El-Rei D. Manoel enti^e outras mercês (diz o mesmo Se-
verim) lhe deo por armas em campo vermelho hum leão
rompente entre duas columnas de prata, que estão sobre
huns montes verdes, e em cima de cada hum, fmm escudo
com cinco dinheiros, e ao pé o mar, que significava os pa-
drões que deixou postos no novo descobrimento do mar
e terra do Oriente, e no leão o valor, com que neste des-
cobrimento se houve.
Faria e Souza diz que Nicolao Coelho fora premiado
com o foro de fidalgo, e lOU escudos de tença annual.
319
Este nobre Capitão foi segunda vez á índia, governando
huma das náos que forão na armada de Pedro Alvarez
Cabral em 1500, e com elle aportou á Terra de Santa
Cruz (Brazil), então descoberta, e dahi o acompanhou ca-
minho da índia.
Fez ainda terceira viagem no anno de 1503, em huma
das náos da armada de Francisco de Albuquerque, e o
ajudou com grande valor a castigar os rebeldes de Co-
chim, e a restituir ao Rei as terras que lhe pertencião.
Mas vindo Francisco de Albuquerque para o reino, e com
elle Nicolao Coelho, em Janeiro de 1504. ambos se per-
derão na viagem, sem se saber onde, nem como, diz Góes.
E a isto se reduzem as noticias que poílémos alcançar de
Nicolao Coelho.
Da outra gente da armada do Gama, adiámos nomea-
dos os seguintes :
1.° Gonçalo Nunes, Capitão do navio em que hião os
mantimentos. Delle diz Faria e Souza, com Barros, que
era criado dos Gamas (36).
2.° Pedro de Alemquer, celebre Piloto que já tinha
Ilido com Bartolomeu Dias ao descobrimento do cabo da
Boa Esperança, e agora foi na capitanea S. Gabriel.
3.° Gonçalo Alvarez, Mestre da mesma náo capitanea
(Barros, 1. 4, 4).
4."" João de Coimbra, Pilolo da náo S. Rafael, de Paulo
da Gama.
5.° Pedro deEscobar, Piloto da náo Herrio, de Nicolao
Coelho.
6.'' Fr. Pedro da Covillíãa, Trinitaiio, Prior do convento
de Lisboa, Confessor de Vasco da Gama (37).
(36) Escusado paivci' advertir, qui* criado não tinha iiaquelie
tempo a significarão que hoje se lhe dá. Chamava-se então criado
o que criava e educava, c vivia nas cazas dns fidalgos, e era ás ve-
zes seu parente. &c.
(37) Nos mais antigos t^scriptores nossos, que tratarão da expe-
320
7.° Fernam Martins de Lisboa, que falava bem o ará-
bico, e que mereceo por isso ser commemorado de Ca-
mões naquelles versos dos Lusíadas, cant. 5.", est. 77.*:
Pela arábica lingua, que mal falão,
E que Fernam Martins mui bem entende. &c.
do qual diz Faria e Souza, que tivera de el-Rei os privi-
légios do seu foro, e os mesmos para seu filho mais velho.
S.° Martim Monso, que sabia muitas línguas dos ne-
gros (diz Castanheda), e que achámos nomeado com Fer-
nam Martins línguas, e lambem pilotos.
9." Diogo Dias, irmão do inUvpido Bartolomeu Dias,
Escrivão da náo capitanea.
10." João de Sá, Escrivão da náo S. Rafael. Voltou á
índia na armada de Cabral, e foi depois Thesoureiro da
Caza da índia.
H .° Álvaro de Braga, Escrivão da Berrio, e depois Es-
crivão da Alfandega do Porto.
li.° Fernam Velloso, mancebo valente e ousado a
quem succedeo a aventura que Camões refere no cant. 5.",
est. Zi.^ e seguintes, e de quem torna a falar no cant. fi. ",
est. 41.*
I3.° Leonardo, lembrado pelo Poeta no cant. C",
est. 40.% de quem diz Manoel Corrêa, que se chamava
Leonardo Ribeiro, e que assim lh'o dissera Camões.
dição do Gama, não temos achado o nomo deste Religioso Trinita-
rio. Faria e Souza lhe dá o nome de Pedro de Cohillones, e diz que
fora com effeito por confessor de Vasco da Gama ; mas este escriptor
não nos merece grande credito de exacção. O moderno Chronista dos
Trinitarios também dolie fala com o nome de Fr. Pedro da Corilhãa,
e refere a hida com o Gama, ajuntando circumstancias que nos pa-
recem pouco verosímeis, especiahnente a de ser martyrisado na ín-
dia, em 1498, ás lançadas, estando ensinando e explicando o myste-
rio da Santissima Trindade, pelo que lhe chama o protomartrjr da
Índia, e diz que iôra enterrado no campo por alguns Catholicos, &c.
O leitor fará desta narração o conceito que lhe parecer razoável.
321
14.° Gonçalo Pirez, marinheiro, da criação de Gama,
e que o acompanhou á visita do Çamorim.
15.° Álvaro Vellio, soldado.
16.° Pedro de Faria e Figueiredo.
17.° Francisco de Faria e Figueiredo, irmão do ante-
cedente, e ambos nomeados por Faria e Souza.
TOMO V
NOTA
SOBRE A ORIGEM DA ESCRAVIDÃO E TRAFICO
DOS NEGROS
Serra de Ossa, aiiim do 1829.
NOTA
SOBKE A ORIGEM DA EScr.AYIDÃO E TRAFICO
DOS NEGROS
Na obra intilulada Histnive abrefjéo des Trailcs depaíx
entre les puissances de lEurope depuis la paix de West-
phalie, par F. Schoell, Paris, 1818, em 8.°, no tom. 11. °,
pag. 171, tratando o escriptor das negociações entre di-
versos gabinetes paivi a abolição do trafico dos negros,
começa o seu discurso por este solemne paragrafo, que
aqui fielmente traduzimos em Portuguez:
«A origem do trafico dos negros remonta ao principio
do século XVI. Os Portuguezes tem a triste Itonra de o ha-
verem imaginado. Em 1503 forão elles os que introdu-
zirão nas colónias Hespanhoias da America os primeiros
negros comprados em Africa. Bartholomeu de las Cazas,
julgando que este trafico seria hum meio de preservar os
indígenas das Antilhas da destruição, de que os amea-
çava a cubica dos colonos, propoz ao Cardeal Ximenes
legalisar este commercio, e dar-lhe forma legular. O mi-
nistro rejeitou o [)rojecto; mas Caiios V o auctorisou for-
malmente em 1517, e concedeo ao seu valido Bresa o mo-
noi»olio da inlrodncção annual de 4:000 negros, o qual
elle traspassou aos Genovezes. Em Inglaterra foi o trafico
auctoiisado em tempo da Hainha Isabel, e em Fiança so-
mente o foi em tempo de Luiz XIII », Ac.
326
Se alguém lesse este paragrafo sem outro algum prévio
conhecimento da historia do mundo, não deixaria, por
certo, de censurar com merecida severidade o procedi-
mento dos Portuguezes, inventores ,de hum trafico tão
deshumano; de os julgar destituidos naquelle tempo dos
princípios da verdadeira civilisação: e de votar á execra-
ção dos séculos futuros hum povo, que assim calcava aos
pés os direitos sagrados da humanidade.
Comtudo, quem assim discorresse erraria gravemen-
te, e faria manifesta e atroz injuria aos Portuguezes,
seduzido pela ignorância, e ousada temeridade do es-
criptor.
A historia de todos os povos, que conhecemos, nos
mostra estabelecido por toda a parte, desde os mais re-
motos tempos, o trafico debomms, havidos por escravos,
comprados, e vendidos como taes por seus chamados se-
nhores, tratados talvez com barbara e cruel deshumani-
dade, e reduzidos a huma condição ainda mais vil e mais
infeliz, que a dos mais vis animaes brutos.
Os livros de Moisés, que, ainda pondo de parte a sua
origem divina, são os que temos mais antigos (3 mais res-
peitáveis em matéria de historia, e de legislação, fazem
frequente menção dos escravos, que havia entre o povo
Hebreo: huns, que volunlariamente se fazião taes, obri-
gados da necessidade ; outros vendidos por seus próprios
pais; outros, que não podendo pagar suas dividas, ou
restituir os bens roubados, davão por elles a própria li-
berdade; outros captivados na guerra, À-c; e referem
muitas leis, dadas por J)eos ao mesmo povo, já para re-
gular os direitos, e obrigações dos senhores e dos es-
cravos, já para adoçar de algum modo a infeliz sorte
dos segundos. (Vej. Gems. XXXV II, 26-i.>8, XIMl,
18-22; Exod. XXI, 2-7; Levit. XXV, 39-54; Deute-
ron. XV, 12-18; ác, ác.)
Esta escravidão era praticada naquelles antigos tempos,
327
e o he ainda hoje [mv todos os povos orientaes, sem ex-
cepção alguma, que nos conste, e seria perder inutilmente
o tempo, se quizessemos demonstrar liuma verdade tão
constante em todas as historias.
E não somente erão sujeitos á escravidão os homens
captivados em guerra justa, ou injusta, ou aquelles que
forçados da cruel necessidade, ou de outras causas se su-
jeitavão a tão miserável condição; senão que também era
frequente a pratica de os apanhar, e arrebatar violenta-
mente, e adoptado o trafico, isto he, a compra e venda
destes infelizes, passando-se de huns a outros o dominio e
senhorio delles, talvez em mercados públicos, por preços
ajustados, bem como se costumava, e costuma fazer com
os outros objectos, que entrão no ordinário commercio
dos homens, e das nações. Os próprios Hebreos nos sub-
ministrão a este respeito o notável exemplo de José, ven-
dido por seus irmãos aos mercadores Ismaelitas, e re-
vendido por estes no Egypto. (Genes. AXVÍ7/.^
Os Gregos e Romanos, tidos ainda hoje como as nações
mais illustradas, mais civilisadas, e mais polidas entre as
antigas, e cujos frequentes atlentados contra a justiça e
a humanidade pai'ece que ainda hoje são respeitados, e
talvez admirados dos nossos eruditos, não só praticavão
a escravidão, e tinhão hum [)rodigioso, e quasi incrível
numero de esciavos, mas até os tratavão com huma bar-
baridade e ferocidade de que apenas haverá poucos exem-
})los entre os povos modernos.
Todos sabem qual era entre os Gregos Lacedemonios
a condição dos ilotas. Os outros estados da Grécia todos
tinhão seus ilotas com differentes nomes, e todos prati-
cavão com os miseráveis escravos as mesmas deshuma-
nidades.
Que diremos dos Romanos? Lúcio Floio attribue a le-
volta, que na Sicília fizerão os escravos c;ipitaneados por
Euro Syro, ao bárbaro tratamento, que se dava a estes
328
infelizes, obrigaiido-os alavraras lerras, encadeados huns
aos outros, como animaes brutos (l). Séneca, no tratado
De ira, liv. 3.°, cap. 40.°, nos dá noticia de humVedio
Pollion, que mandava lançar luim escravo no tanque em
que se cevavão as lamprêas, por lhe ter quebrado hum
vaso de cristal. Bandos numerosos daquelles miseráveis
erão forçados a se matarem huns aos outros nos chamados
jogos do Circo, para recreação de hum povo cruel, que
ousava chamar bárbaros os outros povos, de. O virtuoso
Catão não se pejava de ser mercador de escravos; e Tra-
jano, este Priucipc admirável, que somente teve a fra-
queza dos grandes corações, o excessivo amor da gloria,
dava ao povo Romano festas publicas, em que se dego-
lavão dez mil gladiadores, e onze mil animaes. (Diodor.,
liv. 48.")
Quando Paulo Emilio conquistou a Macedónia, diz Pli-
nio, que decretou n'hum só dia a ruina de setenta e duas
cidades (2). Cento e cincoenta mil Epirolas, e Macedonios
forão então vendidos em Roma, em hasta publica, no
mesmo lugar, aonde depois forão postos em almoeda os
restos, não menos desgraçados, do povo Hebreo, á-c. Fi-
nalmente pelas obras de Séneca nos consta, que em seu
tempo havia em Roma armazéns de escravos, aonde os
mercadores desta fazenda os guaidavão, para d'ali serem
levados ;i praça publica, e nella expostos á venda como
vis animaes (3).
(1) Lúcio Floro, Historia Romana, liv. 3.", cap. 19." «Terra íru-
í,'Uiii forax, et quoclammodo suburbana prnvincia latifundiis eiviuni
latinoruni tenebatur. Hic ad cultum agri frequentia ergastula, cale-
natique cultores niateriam bello pracbuere».
(2) riiaio, Historia Natural^ liv. 4.", cap. 10." «Ilacc eadeni est
Macedónia, cujus, uno die, Paulus Aemilius, Imperalor noster, se-
ptuaginta duas urbes direptas vendidit».
(3) Séneca de Const. Sapioit., cap. 13.<* «Num moleste feram si
milii non reddiderit nomen aliquis ex his, qui ad (^astoris fórum
329
Os povos, que desmembrarão o império Romano, e se
apossarão de suas proviíicias, coiilimiárão a usar do tra-
fico de liomens, que adiarão estabelecido, e que a elles
mesmos não era estranho. O Cliristianismo, postoque
muito concorresse para suavisar a sorte dos escravos, e
fosse pelos séculos adiante, pela tendência de seus prin-
cípios eminentemente sociaes, huma das mais poderosas
causas da diminuição e decadência deste inhumano com-
mercio, não abrogou comtudo a pratica geralmente ado-
ptada, nem o seu divino Auctor alterou, nem quiz alterar
directamente a ordem estabelecida nas sociedades huma-
nas, ou as diíTerentes graduações, e respectivos estados
civis, que as leis, e usos dos povos tinhão adoptado (4).
As igrejas e mosteiros tinhão escravos : as antigas doa-
ções fazem a cada passo menção delles entre os bens
doados. Os concílios de differentes séculos e nações estão
cheios de cânones relativos a escravos, suppondo a exis-
tência da escravidão, sem a reprovarem, nem condemna-
rem. Em huns se prohibe dar as ordens sagradas a es-
cravos, ou admittil-os a qualquer ministério ecclesiastico:
em outros se dão providencias para serem restituídos a
seus senhores os escravos, que buscavão a protecção da
igreja com o fim de se subtrahirem á servidão : em outros
se ordena que os .ludeos não possão ter escravos Christãos :
em outros se estabelecem regras para a manumissão dos
escravos, que pertencião ás igrejas, ócc.
Os mercadoresVcnezianos commerciavão no século vm
em escravos Chrislãos. A hisloria nos deixou em lembrança
a religiosa piedade do Papa /acharias, que pelos annos
de 7iS, sabendo que aquelles mercadores tinhão com-
piadn cm \Vn\\\\ nuiitos escravos de ambos os sexos, i»ara
nogotiantur, iiciiuaiii niniicipia imikmiIi^s, \(MiiI('iiI('S(|iii\ (|ii()riiiij ta-
liernae pessiiiioriiiii seivoíiim lurba roferlai^ sunl?"
(4) Vej. «a Ei)ist ad lOphos.. VI, 5-9; ad Colosscns, IV, I; ad
Philern., I, í^pist.. 11: INlr., I[. 18». ísn\
330
OS hirem vender, depois de mutilados, aos infiéis de Africa,
resgatou grande numero destes infelizes, a quem deo a li-
berdade.
No anno 785 lançou Carlos Magno dos seus estados os
Gregos, que alii vinlião comprar escravos Christãos, para
os hirem vender aos Mosselemanos da Hespanha, e do
Oriente. Comtudo no século seguinte, pelos annos 820,
ainda os negociantes de Verdtm se empregavão naquelle
trafico, vendendo seus próprios concidadãos, depois de
mutilados, aos Kaiifas e Mouros, para serem empregados
na guarda dos seus serralhos (5).
Em hum concilio de Londres de 1102 se determinou,
que ninguém vendesse homens como animaes brutos, cousa
(jue (Kantes se {indicava em Inglaterra, dizFleury(6). Sem
embaigo porém dcsla jii-oliibição, consta que pelos annos
1171, tendo Heiíiiijuelí conquistado a Hibernia, celebra-
rão os Bispos íiesta ilha hum concilio, em que se ordenou
que fossem reslitiiidos á liberdade todos oslnglezes, que
ali eslavão em cst ravidão, [loiípianto (diz o escriptor con-
temporâneo) (^slavão os Padres persuadidos que a divina
justiça os siijeilava (aos Ingle/.cs) em pena de seus crimes,
e especialnieidc iiorr/ur (iiihão por costume comprar a
mercaâores e piratas ns homens da nação Ingleza, para
os reduzirem d c ser a vidão (7).
No século xiM. no meio da Europa, entre nações Chris-
(5) Luitpraiiilo, CUroniva. A esles escravos davâo os negociantes
o nome de carsamatia , á tnaiioira dos Gregos. Luitprando explica
esta denominação: « Carsainatium autem (diz elle) Graeci vocant,
amputatis viriliiius, et viiga, cnnuchum, quos Verdunenses ob im-
iiiensimi liicruni facerc soleiít, et in Hispaniam ducrre». (Vej. Mc-
vioire liisloriqne et diplouintiqne siir Ic commerce, et les étahlissemcnls
Franriiis nu l:rnnt , lida na sessão publica do Instituto, anno 1827.
(G) Fleuiy, Historia Ecciesiastica, liv. 6o.", § 22." «Ut nemo ho-
mines ut bruta animantia vcnumdet. Quod in Anglia ad ea usqiie
têmpora tieri solebat».
(7) Ibid., liv. 72.°, § 38."
.331
tãas, se vendião não só os prisioneiros de guerra, Rias até
ás vezes os iiabitantes pacíficos, e inermes das cidades,
ou praças expugnadas. A carta que o Papa Gregório IX
escrevia ao Arcebispo de Estrigonia em 1^31, estranhando
algumas cousas indignas, que se praticavão em Hungria
com menoscabo da religião, nota, que os Sarracenos hião
lá comprar escravos Christãos, de que abusavão a seu ar-
bítrio; e que os Christãos, forçados da pobreza e inópia,
vendião aos infleis seus próprios filhos (8).
O Papa Gregório XI, nas suas Letras Apostólicas de 20
de Abril de 1376, dadas contra os Florentinos, sobre ou-
tras graves penas e censuras, que contra elles fulmina,
acrescenta a de serem reduzidos a escravidão por quem
quer que os apanhasse: e diz a historia, que muitos del-
les, em Inglaterra, forão effectivamente feitos escravos do
Rei, e os seus bens confiscados. Ainda no século xvi o
Papa Júlio II, no seu Monitorio contra a republica de Ve-
neza, dava a qualquer pessoa o poder de occupar os bens
dos republicanos, e de reduzil-os a clles mesmos d es-
cravidão, prohibinflo dar-lhes acolhimento, ou soccorro.
E S. Pio V por Bulia de 2G de Fevereiro de 1569, man-
dando sahir dos seus estados (excepto de Roma e Ancona)
todos os Judeos no espaço de três mezes, commina aos
que não obedecerem a perda de todos os bens, e o fica-
rem em escravidão perpetua.
Finalmente extincta já na Europa a escravidão domes-
tica, se conservou ainda em algumas nações, até os nossos
dias, outro género de servidão não monos ignominiosa.
(8) llaynald., Annaes: «Sanaconi (dizia o Santo Padre) iiianci-
pia Christiaiia crnunt: iis ul lubel abuluntur. . . inlerduni (^lirisliani,
suadcnte inópia, liberos sues ethnicis venumdant», &c. Huifi (Con-
cilio de Valladolid. em 1322. proliiltio seAeiatiienIe a pratica do al-
guns niáos (Christãos, que rouhavão homens lambem (Christãos, e os
vendião aos Sarracenos. O mesmo se confirmou no Concilio de To-
ledo de 1324, e no de Falência de 1388.
332
« Os paizanos servos (diz hum escriptor, descrevendo o
governo, e os costumes de Raguza, laes como elle mesmo
os observou em 1805) erão reputados mais como parte
dos bens de raiz, do que como homens pertencentes d so-
ciedade. Se o pejo tinha feito cessar o uso, em outro
tempo praticado, de os vender no mercado, nem por isso
os senhores deixavão de os considerar como propriedade
sua. Dispunhão delles. quando aiienavão as terras, bem
como se dispije dos instrumentos da lavoura, ou dos ani-
maes de trabalho, estipulando a quantidade de gado hu-
mano, macho e fêmea que havia de passar ao dominio do
comprador», á-c. (9).
Por todos estes factos, que summariamente havemos
referido, e a que poderíamos acrescentar muitos outros,
de (jue a historia nos dá frequentíssimos testemunhos, já
se deixa entender, que ainda que os Porluguezes preten-
dessem a triste honra de haver inventado o trafico dos
negros da Africa, não poderião conseguir o seu intento,
pois muitos outros povos mais antigos, e mais famosos na
historia, e mais admirados, elogiados, e exaltados pelos
escriptores, lhes poderião com toda a justiça disputar
neste ponto gloriosa preferencia; salvo comtudo se al-
guém quizer dizer, que ha alguma substancial diíferença
entre trafico de escravos negros, e trafico de escravos
brancos: e entre comprai" aquelles em. Africa para os le-
var d America, ou comprai' estes em França, Veneza, c
(9) Pouqueville, Voyage dans la Grèce. Paris, 1820. Na Histo-
ria do império da Rússia, em tempo de Pedro o Grande, diz ]\Ir. de
Voltaire, que dos vinte e (luatro milhões de habitantes, que entiio
tinha aquelle império, « a maior parte erão escravos, como na l^olo-
nia, e em muitas partes da Allemaniia, e como antigamente cm toda
a Europa». Só nos conventos de homens e mulheres, que não erão
muitos, se contavão entre as suas propriedades setecentos c vinte mil
servos destinados para a cultura das terras. A civilisação geral tem
hido diminuindo, ou modificando este resto da antiga barbaridade,
que todavia não sabemos se está hoje mesmo de tcdo cxfiiicta.
333
Roma para os transportar d Hespanha, a Africa, ou ao
Oriente.
Nós não sabemos descobrir esta diíferença ; mas se al-
guma ha, ousamos dizer, e não duvidaríamos sustentar,
que seria hum pouco mais desculpável, ou menos odioso
o trafico de escravos negros, do que o de escravos bran-
cos. Sem entrar porém nesta matéria, que nos distrahiria
do nosso assumpto, procuremos indagar com alguma di-
ligencia, e quanto nos permittir o silencio das antigas his-
torias, se na verdade a origem do especial trafico dos ne-
gros remonta, como diz o nosso escriptor, an principio
do século xvr, e se ha algum fundamento para se dizer
tão decisivamente que aos Portuguezes cabe a triste glo-
ria de o haverem imaginado.
A escravidão e trafico dos negros, em geral, pôde di-
zer-se com toda a certeza e segurança, que he tão antigo,
como o conhecimento que houve das nações negras: pois
sendo por todos, em toda a parte, e em todos os tempos
usada a escravidão, e o trafico de homens, nenhuma ra-
zão havia para que as raças negras fossem exceptuadas
da commum sorte, logo que houvesse opi)ortunidade de
captivar, vender, e comprar os seus indivíduos. Os factos
da historia confirmão este pensamento:
1.° Duas Peleiades, ou negras Ethiopezas, vindas do
templo de Osiris no Egypto, instituirão (dizem) entre os
Pelasgos o culto de huma divindade estrangeira, a saber :
huma delias no Oásis de Ammon, e a outra no Epiro,
aonde fora vendida por alguns navegantes que ali apor-
tarão. Nós não ficaremos por fiadores da veracidade desta
narração; mas qualquer que seja o juizo que delia se faça,
he pelo menos certo, que antiquissimos escriptores fala-
rão de huma escrava negra, vinda do Egypto, e vendida
na (jrecia, como de luiin facto, que não causava estra-
nheza, nem })aivcia inverosimil. Ainda hoje concorrem ás
feiras (panegyris) da Grécia conlialadores de negros de
334
Africa, que provavelmente não aprenderão dos Portu-
guezes a fazer este trafico, e que nunca jamais (diz o es-
criptor a quem devemos esta noticia) hão de renunciar a
elle. Tão antiga lie a sua pratica, e tão inveterado, e tenaz
o costume, alias inspirado, conservado, e roborado pela
avareza, e pela barbaridade (10).
2," Hum dos relevos, que Mr. Champollion Júnior lia
I)oucos ânuos observou no templo de Isambul na Núbia,
re[)resenta o carro triunfal de hum dos Pharaós acompa-
nhado de grupos de negros prisioneiros da Núbia: o que
prova, que os negros de Africa erão já naquelles remo-
tissimos tempos sujeitos ás mesmas leis da servidão, que
se praticavão com os povos brancos em todo o mundo (11).
3." Joseph, Hebreo, na sua obra das Anliguidades Ju-
daicas, liv. 8.'^, falando das frotas de Salomão, diz, que
entre os objectos, que ellas importavão era o ouro, a prata,
o marfim, escravos Ethiopes, e bugios, aprorebnsexpor-
tatis aurmn, argenfum, regi referebant, multumque ebo-
ris, et mancipia aetliiopica, et simiasr>.
Os Uomanos, depois da destruição de Carthago, se forão
apossando de toda a costa septemtrional de Africa, e he ve-
rosímil, que penetrando pouco a pouco nos paizes ao sul,
praticassem com os povos negros, que os habitavão, o
mesmo que antes delles havião feito os Berberes, os Nu-
midas, os Persas, e os Fenícios, e que depois delles íizerão
os Árabes, dos quaes lodos diz com razão hum escriptor
moderno, « que possuindo desde tempos immemoriaes, e
successivamente, as margens septemtrionaes de Africa,
não cessarão jamais de lhes impor hum tributo de san-
gue»: maiormente porque sabemos que os Romanos es-
(10) Pouqueville, Observ. siir Dodone, Voyage, tom. 5.'', o liv.
de i821.
(H) Constou esta noticia por carta do 1.° de Janeiro de 1829,
escripta pelo douto viajante em Ouadi-Halfa, cujo extracto se pu-
blicou no Morning -Journal de 24 de Abril do mesmo anno.
33fi
tabelecérão iia vasla extensão do tenilorio, que decorre
até o Niger, algumas florentes colónias, e que o mesmo
rio Niger não foi de todo desconhecido aos seus historia-
dores, e geógrafos (IÍ2).
Deste período da dominação Romana, em »|ub entra
o dos Wandalos, acliâmos alguns factos, que mostrão a
escravidão dos negros de Afiica já naqueiles remotos
tempos.
O primeiro vem nas Vidas dos Padres, escriptas por
Palladio, Bispo de Helenopole, nos fins do século iv, ou
princípios do v, aonde descreve a vida de hum Moisés,
Ethiope, negro, que sendo escravo, e lançado da caza de
seu senhor por suas maldades, veio por fim a converter-se,
e se fez monge, e foi pai de monges no Egypto (VA).
O segundo he do século vi, e acha-se era huma das
(12) Gossellin, Géogruphie des Gi'ecs analysée, &c. Paris, 1790,
part. 2.*, pag. 114: « As expedições de Septirnio Flacco, e de Jiilio
Materno, que á frente dos exércitos Romanos penetrarão até os Ga-
ramantes, e até á região Agizyrnba, occupada pelos Ethiopfs, suIj-
ministrárão grandes cojiliecinieiitos sohre o interior de Africa. Estas
expedições comtudo (diz o inesino escriptor a pag. 129 e 130) não
erão as primeiras tentativas dos Romanos. Debaixo do reino de Au-
gusto, Suetonio Paulino tinha franqueado o Atlante, que até então
passava por inaccessi\ el. Cornelio Balbo linha penetrado até o paiz
dos Garamantes, e esta expedição lhe grangeou as honras do triunfo,
não obstante ser estrangeiro. Elle fez notar as correntes dos i-ios, e
as representações das montanhas, das cidades, e dos povos, que ti-
nha conquistado, em numero de vinte e sete. Juba, o Moço, tinha
feito indagações sobre o interior de Africa. A direcção do ISiger de
occidente a oriente, e a sua gi'ande longina foi provavelmente o (jue
fez crer a muitos auctores, c em particular a Juba, que este rio não
era mais que a parte inferior do Nilo, que depois de ter atravessado
Africa, voltava ao norte, e bia fertilizar o Egypto», &c. (Vej. Plí-
nio, liv. o.", cap. 10."; e coníira-se Séneca, Quaest. Natur., liv. 4.°,
cap. 2.°) O mesmo Plinio, no cap. 8.", citado por Malfe-Brun, nota
o uso que linhão os Garamantes de hirem á caça dos ncijros.
(13) Vit. PP., cap. 22.", apud Uosweid. Kuil quidam, Moyses lio-
mine, aethiops genere, niger, servus cujusdam, &c.
336
Epistolas de S. Fulgencio, Bispo de Africa, escripta ao
Diácono Ferrando, na qual se faz menção de hum moço
Ethiope (juvenis nigro corporis colore), que era escravo,
e por seu senhor fora convertido ao Ghristianismo (14).
No século vn se apossarão os Árabes de toda a costa
septemtrional de Africa desde os limites do Egypto até
ao Oceano Atlântico, e sabemos que pouco a pouco se
forão também alargando para o interior do paiz, e para
as terras habitadas pelos negros, aonde os viajantes mo-
dernos tem achado a religião de Mahomet, ou estabele-
cida, e dominante, ou misturada com as superstições gen-
tílicas, bem como a lingua Árabe, e muitos dos costumes,
que parecem próprios destes povos.
No anno 741, levantando-se os Mouros de Africa con-
tra o governo dos Kalifas Árabes, e mandando o Kalifa
hum exercito para os reprimir, refere a historia, que os
Mouros invocarão o auxilio dos Nigritas, que coníinão
pelo sul com o reino de Marrocos, os quaes lhe derão
effectivamente hum considerável soccorro de gente negra
em tanto numero, que á sua côr e figura se attribuio a
desordem da cavallaria Árabe, e a consequente derrota
do exercito do Kalifa (15). Por onde se prova que os ne-
gros não só erão conhecidos, mas também linhão relações
com os povos estrangeiros, que dominavão os paizes se-
ptemtrionaes de Africa, e os auxiliavão em suas guerras,
ficando consequentemente sujeitos ás contingências e suc-
cessos da guerra, e a serem prizioneiros, e como taes re-
duzidos á escravidão, segundo a pratica daquelles tempos.
No século antecedente, em que os Mosselemanos fize-
rão a sua primeira expedição á conquista da Núbia, re-
ferem os escriptores Árabes o Tratado ajustado entre o
Emir Abadallah-ben-Saad-ben-Aby-Sarali de huma parte,
(14) Ep. S. Fulg. Rusp., epist. 11, em Fleury, Historia Ecdesias-
Uca, continuada, liv. 32.°, § 36.°, ao anno 533.
(15) Ferreras, ao anno 741.
Mil
tí o !{(M o [tovus (la Niihia da uutra, pelo (iiial os Nul)ienstíS
se obiágárão a dar cada armo aos Árabes 860 escravos
dos dons sexos, escolhidos entre os melhores do paiz,
isentos de defeito, em que não entrarião nem velhos de-
crépitos, nem mulheres velhas, nem meninos abaixo da
idade da puberdade, os qaaes serião entregues ao tjo-
vernador d'Asuan, para serem enviados ao Itnam dos
Mosselemanos (16).
Do celebre Mostanser-Bitlah, Kalifa Fatimita, que vivia
pelos aimos 429 da Heg. (século xi), referem os escripto-
res Árabes, que era filho de huma escrava negra, que ti-
nha pertencido ao mercador Judeo Abu-Said-Sahal, e por
elle tinha sido vendida ao Kalifa Daher, pai de Mostanser.
Desta Princeza dizem, que logo que vio seu filho no throno
mandou vir á côrle o seu antigo senhor, e o escolheo para
seuVisir, e conselheiro intimo; e acrescentão, que era tão
alfeiçoada aos seus compatriotas, que com empenho com-
prava os muitos, que de diversas parles lhe trazido, a
ponto de chegar a ajuntar no Egypto mais de cincoenta
mil negros (17).
Este uso dos escravos negros propagou-se para a Eu-
ropa pelo tempo das cruzadas, como nos consta da his-
toria de hum Gaudri, Normando, leferendario de llenri-
(jne í de Inglaierra, que sendo elevado á Sé de Laon,
tinha no seu sei^vico 'Jium destes escravos negros, que
os grandes senhores, á volta da primeira cruzada (llotí)
começarão a pôr em moday> (1(S).
Aci'Cscentemos ainda, que muito antes dos descobri-
(16) Quatremere. Mènioin' snv la Nnbic, na collecção de Memo-
rias ijeo<)rajit:as c lilsluriras sohre o Efuipta. Paris, 1811, (oiii. "2°,
pag. 45.
(17) lliidciii, Méniuire hhloriquc sur la vic dii Kalifc. FatiinUe,
Mostaiisoi-liillah, iio incsino loiíio, paj?. 296 c 355.
(IS) A. Tlii(!rrv. Letlrcs sur rillstoiír (h> Franrv. Icl. \\i.
pag. 240 da 5." edirãd.
TOMO V t'l
338
mentos Portuguezes, era a malagueta conhecida na llalia,
e por consequência levada de Guiné pelos Mouros, que atra-
vessa vão o reino de Mandinga, e os desertos da Libya, até
o porto de Barkali, sobre o Mediterrâneo, o que prova qu*j
este caminho lhes não era desconhecido, e que por elle tra-
zião á costa scptemtrional os géneros do interior, e entre
elles os escravos negros, que depois erão transportados
e vendidos na Grécia, na Asia-menor, na Syria, á-c.
Cadamosto, na Relação que escreveo da sua primeira
viagem, feita em 1445, falando do trafico, que os Mouros
fazião nas terras dos negros, diz : « Igualmente comprão
sedas Mouriscas fabricadas em Granada, e em Tunes de
Berbéria, prata, e muitas outras cousas, e recebem pelo
seu resgate quanlidadedencgros, e alguma somma de our» ).
Estes escravos (continua elle ainda) chegão á escala e lugar
de Guaden (Huadev, ou Oaaden), e ali se dividem, hindo
parte delles aos montes de Barkah, d"o!ide chegão a Sicilia,
e alguns a Tunes, e depois se estendem por toda a costa de
Berbéria: íiualmenle a outra porção he conduzida a este
lugar de Aiguim, e vendida aos Portuguezes», de.
Ainda hoje as caravanas de Daríur, e Sennaar (Núbia),
fornecem escravos negros aos mercados do Cairo, que
d'ahi são levados a Constantinopla, bem como de Constan-
tinopla se levão aos mesmos mercados escravos brancos
Circassianos, e Georgianos. Ainda hoje as caravanas, que
vão dos estados Berberescos á grande feira de Tombu-
culu, trazem d(?lla, entre outras mercadorias, escravos
negros, vindos de Ouangara, Houssa, e outras terras do
interior. O intrépido viajante Árabe do século xiv, conhe-
cido pelo nome de Ben-Batuta, sahindo das terras do
grande Stidan para se recolher ao seu paiz, atravessou o
deserto em huma caravana, em que hião seiscentos es-
cravos. E tudo isto era anterior aos descobrimentos dos
Portuguezes, e muito antes que elles podessem lembrar-
se de inventar o trajico dou negros.
339
Mas venhainus eintiiii a factos mais chegailus a nós, e
tomados da nossa historia.
Quando os Portuguezes continuavão os seus descobri-
mentos nas costas occidenlaes de Africa, hindo Nuno Tris-
tão, e Antão Gonçalves, criados do Infante D. Henrique,
no anno de 1440, ao posto já descoberto, cliamado dos
Lobos Marinhos, sahirão ern terra, e tomando alguns
Mouros bárbaros, com elles voltou Antão Gonçalves ao
reino, d'onde (diz a historia) tornou á costa de Africa
em •i442, levando alguns dos captivos, porque estes lhe
lizerão promessa de dar negros em seu resgale- Os Mou-
ros cumprirão o que tinhão prometlido, e derão com
effeito ao navegante Portuguez dez escravos negros, de
differentes terras, que forão os primeiros, que vierão de
África a Portugal.
Este, e outros acontecimentos semelhantes, que peio
tempo adiante se forão succedendo, moslrão que já entre
os Moui'OS era praticada não só a escravidão dos negros,
mas também o comrnercio e trafico delles, pois os [»ro-
mettião, e davão como preço do resgate de suas próprias
pessoas e liberdades, do mesmo modo que davão o ouro,
o marfim, e outras mercadorias do seu paiz: e mostrão
também, que a origem do trafico nem remo?ita aos prin-
cipios do século xvr (como affirma o escriptor que refutá-
mos), nem he devida a invenção Portugueza.
A Chronica de el-Rei D. João II nos subministra outra
jirova desta verdade: ponpianto, descobrindo-se em seu
tempo, e uo anno de 1480 o i'eiiio de líeni, refere o verí-
dico Rezende, que o Rei daquella terra, ouvindo grandes
louvores das virtudes, j)eifeições, e grandezas de el-Rei
de Portugal, lhe mandái-a hum rico e grandioso presente,
de que fazião paite cem escravos negros: por onde se vê
que o Rei linha escravos negros, dos ipiacs (li>|iuiilia como
de jtropiicdade sua, i! (|ue iia(|ui'lla> icgincs era pralicado
o uso de os vendei', ou doai', ainda antes que os Portu-
340
guezes podessem Icmbrar-se de inventar o Uatico com u
lim que se lhes nuer attiibuir.
Finalmente todos estes argumentos recebem nova loira
e luz, reílectindo-se sobre iium lugar do immorlal poema
dos Lusíadas, que parece não ter sido até agora altenla-
mente lido, com respeito ao nosso assumpto.
Bem sabido he, e muitas vezes tem sido notado, (juam
grande era a exacção, e fidelidade de Camões nas suas
descripções geográficas, nas quaes se não desviava hum
só ponto da verdade em seu tempo conhecida, caractcri-
sando os reinos, cidades, ou povos, não segundo a lan-
tasia poética, mas segundo as idéas geralmente recebidas
e adoptadas.
O poeta pois no canto v descrevendo a derrota do grande
(lama, desde Lisboa até Melinde, nota a passagem do he-
roe pelas ilhas de Porto Santo, Madeira, de, novamente
descobertas: pinta em huma excellente estancia:
de Massilia a estéril costa.
Onde seu gado os Azeuegnes pastão:
Nota a passagem do trópico; fala das Canaiias, e du
Cabo Verde, e diz finalmente na est. x:
Por aqui rodeauilo a larga parte
De Africa, que ficava ao Oriente,
A província Jalolo, qite reparte
Por diversas nações a negra gente, (5c c.
Aonde o poeta maniíeslamente allude ao trahcd dos
negros das teiTas de Jalofo, e á extracção que delles se
costumava fazer para dimrsas fiações, não se podendo
commodamente entender a frase, « Que reparte por di-
versas i/arões a neijra gejite», senão da pratica geral que
os Mouros tinlião, de (irar dos Jalofos, Fulas, Mandingas,
e outros paizes circumvisinhos negros escravos, para os
hirem levar, e vender, como ainda hoje vão, c lorão em
todos os temi)Os, aos mercados da costa septemtrional.
341
(Tõnde depois se espalhão [lor diversas nações, como diz
o i)oeta. Af> qual coslumc dos Mouros, até hoje conser-
vado, e poi' certo não recebido, nem aprendido dos Por-
tuguezes, allude hum escriptor moderno, que tendo ex-
pressado o horror que lhe causava este trafico deshumano
feito poi' povos Christãos, logo acrescenta: « O trafico que
fazem os Momos he acompanhado dos mesmos crimes: as
aréas do deserto conservão, e mostrão por toda a parle
ao viajante os vesligios sinistros das caravanas, que ar-
rastão os miseráveis escravos aos mercados berberescos.
Sempre a raça branca se tem mostrado inexorável para
com a raça negra, lanto ao norte, como ao occidente de
Africa y> (19).
(19) Quando lançávamos os primeiros traços a este discurso, che-
gou mui casualmente á nossa mão tiuiii catalogo de livros da livraria
do illustre typograf o Firmino Didot, impresso em Julho de 1828. no
qual vem annunciada huma ohia com titulo: Précis historique de la
traite des noirs, et de Vesclavage colonial. Paris, 1828, 8."; e logo
dando o editor do catalogo huma breve idéa da obra, diz assim:
"O auctor, depois de ter dado algumas noticias novas sobre a es-
cravidão domestica dos antigos povos, e sobre a que ainda existe
na Ásia, combate a opinião geral, que attribue ao celebre las Gazas
a invenção do traíico, e faz remontar a origem deste commercio ao
(empo da dominação dos Árabes na Hespanha. muitos séculos antes
da época de 1443, a que commummente se assigna a introducção
dos primeiros escravos negros em Lisboa. Mostra depois por hum
grande numero de factos, que o trafico, com ser inhumauo. im-
moral, e contrario ás leis de Deos e dos homens, tem continuado
em França até o presente », àc. Foi para nós de grande satisfação
ver, que as idéas, que hiamos lançando no nosso discurso, se con-
formavão no essencial com as do auctor daquella obra. E dizemos
no essencial, que consiste em remover dos Portuguezes, dos Hespa-
nhoes, ou de quaesqucr outros povos modernos, a triste honra de
terem imaginado o ti-alico dos negros : poi-quanto, no que respeita
á verdadeira, e primitiva origem de.ste trafico, nós a suppomos, e
mostrámos mais antiga que a dominação dos Árabes nas Hespanhas,
e fundados em fados históricos, temos por certo, que olla se con-
liiiiilr \\:\ oh^ciiridadi' (lo< inai^ iimiihIos scciíins. c lie da iiirsnia dala
342
Tenhamos pois por certo, e fora de toda a duvida:
1.° Qiio o trafuu) dos not^ros ?iíio remonta aos princi-
pios do spciílo XVI. como prelende Mr. F. Sclioell. mas \\v
muito mais antigo.
2." Oue a sua origem não !ie do invenção Porttigtieza,
nem de neiíliuuui nação moderna.
3.^ Que a origem do ira/ico de homens vem da mais
alta antiguidade, a qne a liisloria pode subir.
4." Que o trafico de homens negros he tão anligo como
o conhecimento das antigas nações negras; praticado a
respeito dos negros de Africa desde tempos antiquissimos,
e até introduzido na Eurí)pa Occidental pelo tempo das
cruzadas.
5.'' Finalmente, que no século xvi não houve nisto nada
de novo, senão a direcção do trafico dos escravos negros
da Africa para a America: e que as declamações exage-
radas, e aíTectadamenttí palhelicas dos fdantropos moder-
nos contra este trafico, nem são tão sinceras nos seus
motivos, como elles nos querem fazer crer, nem tão des-
interessadas na sua tendência politica, como seria de es-
perar; nem tão justas em suas circumstancias históricas,
como pede a natureza e importância da matéria, e a boa
fé do escriplor sizudo e imparcial.
Mas continuemos a vei' se Mi". Sclioell lie mais fiel á
verdade, e mais exacto no que ainda acrescenta á sua
proposição principal, e como em prova delia.
nKm lõOS (diz elle) forão os Porlugnezes que intro-
duzirão nas colónias JJespanholas da America os pri-
meiros escravos negros, comprados em Africa. »
lie falso, lie moralmente impossivel, que fossem os Por-
ttiguezes os ijiie introduzirão os primeiros' negros nas co-
lónias Hespanholas. O escriplor que assim o aífirma mos-
tra pouco conhecimento da historia, ou pouca attenção á
que a escravidão i\c lioinens. p o conliocimento das nações, ou raçaa
nefirax.
543
verdade delia. Todos sabem quanto era naquelles tempos,
e ainda nnaita depois, o ciúme dos Ilespanlioes e Portu-
guezes a respeito dos seus descobrinnentos, e conquistas,
e commercio das novas terras, Huns e outros vedavão
com grande vigilância aos estrangeiros commerciantes a
entrada em suas respectivas conquistas: huns e outros
pedião aos Papas a confirmação destas prohibições, e ex-
clusivas. Por onde podemos com segurança aíTirmar que
não succedei), nem podia sucreder o que o auctor tão li-
geiramente suppõe : maiormente constando-nos pela his-
toria, que logo depois do meio do século xv, em que Lis-
boa (por assim dizer) se encheo de escravos negros de
Africa, começou também a exportal-os por venda para
Sevilha, d'onde pelo tempo adiante sahírão provavelmente
os primeiros que vio a America.
Emquanto á época precisa, em que começou o trafico
para a America, mui diííicil nos parece averiguar hoje
este ponto histórico, aliás não muito importante, em que
os escriptores tem sido tão vários e incoherentes. E como
por outra parte o ríosso escriptor não apresenta testemu-
nho, ou razão alguma que verifique a sua época de lo03,
e o temos achado menos verdadeiro em designar a ori-
gem e os inventores, ou imaginadores do traíico, bem po-
demos, sem lhe fazer injuria, duvidar também desta época.
Diz o escriptor, seguindo a outros muitos « Que o pio e
rcspeilavel varão Bartholomeu de las Cazas foi o que in-
ventou o transporte dos íier/ros para a America, com o
fim de arrancar os Índios aos trabalhos das minas, e os
negros á morte». Esta opinião, que tem sido adoptada
sem reflexão e sem exame, não pôde sustentar-se de ma-
neira alguma, referindo-se aquelle transporte dos escra-
ros ao anno de lõOS, como assertivamente refere o es-
criptor.
He constante que las Cazas nasceo pelos annos de 1474:
(|U(' foi com seu pai na primeira viagem de Colombo em
344
1492; e que linha entíio dezoito para dezennve annos de
idade. Voltou á Euiopa i^m I4Í)S a conlinuar os seus es-
tudos, e acabados elles. tornou a navegar para a Ame-
rica, aonde em 4510, ordenado já de sacerdote, esteve
por algum tempo paroquiando em liuma das ilhas recen-
temente descobertas, até que movido do seu zelo pelo
bem dos índios, deixou a paroquia, para se consagrar in-
teiramente áquelle objecto, a que o convidava a sua pie-
dade e humanidade.
Á vista destes factos, e destas datas, não parece vero-
símil, que las Gazas podesse ter adquiiido em laOli, nem
na America, nem na Europa, o credito, e influencia, que
se requeria, para que o seu voto fosse altendido, e as
suas diligencias fossem efficazes a favor dos índios: antes
podemos conjecturar, que só depois do anno de lolO co-
meçaria a desenvolver-se o seu ardente zelo, e os seus
trabalhos em beneficio delles.
Vem aqui a propósito o que achámos em Imm escriptor
llespanliol antigo (20), a saber: que Vasco (Blasco, ou
Vflasco, dizem os Ilespanhoes) Nunes de Valhoa, saliindo
em 1513 de Darien com 190 Hespaiihoes, chegara a Que-
reca, terra de que era senhor hum índio, por nome To-
reca, e que ahi acharão escravos negros; que fucnm (diz
o escriptor) los primevos, que los nuestros vieron cn las
índias: e continua narrando como Valboa sul)indo depois
a huma alta montanha, avistara o mar do sul a 25 de Se-
tembro, e descendo ao golío de S. Miguel, tomara |)osse
daquellas terras i)or Castella em 29 de Setembro, de.
Desta nari-ação julgámos poder tirar duas consequên-
cias: 1.* Que também entre os índios Americanos havia
escravos negros, antes que lá os levassem os Europeus,
o que confirma a nossa opinião sobre a generalidade desta
(20) Caroliti Enchiridhn. Viihi tJc Cnrlos V. imprfss;) em ]Á<-
boa, iTiSS, pari. I.", em íVil.
345
pratica; i.' Qiifi no anno de ir>|l! ainda na America não
existião escravos liansporlados de Africa, visto serem
aquelles de Quereca us primeiros que os Hespanhoes de
Valboa virão nas regiões Americanas, como diz o escri-
ptor citado.
Adiantemos alguma cousa mais. Alguns escriptores são
de opinião (e Mr. Schoell também a segue) que o com-
mercio dos escravos negros para a America fora aucto-
risado formalmente em 1517 em virtude de huma patente
de Carlos V, obtida a instancia de las Gazas. Mas também
esta época nos pai'ece duvidosa.
Carlos V aportou nas Astúrias naquelle anno de 1517,
em Setembro, vindo tomar posse dos estados Hespanhoes.
Entrou em Valladolid no mez de Novembro, e nos annos
logo seguintes de 1518, 1519 e 1520 celebrou Cortes em
Castella, Aragão, Cataluna, e Galliza; e não teve pouco
que fazer para acalmar as inquietações publicas, conciliar
a seu favor os ânimos dos Hespanhoes, firmar-se no tliro-
no, e approvar ou illudir as condições, que os povos lhe
impunhão. Em totlas estas Cortes não achamos que se to-
casse huma só palavra acerca das possessões das índias
Occidentaes, ou do seu governo (til).
Carlos V passou immediatamente a Allemanha, a rece-
ber a coroa do império, que neste meio tempo lhe fora
defeiida, e no entretanto se suscitarão na Hespanlia os
levantamentos chamados í/as Communidades, que dinárão
até 1522, cm que o Imperador voltou a llespanha.
Nos annos de 1 520 c 1 524, diz hum geógrafo moderno,
que Lucas Vasqu(!z de Sillon, e outros Hespanhoes sal-
tearão a Florida, para ali roubarem homens que fossem
trabalhar nas minas de S. Domingos: o que parece in-
dicar que ainda o tralico dos negros não estava eslabele-
ciilo, ao menos de hum modo legal.
(21) Saiiilov;il. Vida dr Ctiflofi V.
346
Os escriptores da Vida de las Cazas referem ao anno
de 1522 a sua primeira vinda á Europa, eom o particular
fim e intento de advogar a causa dos índios; e parece
que então lie que se começarão a dar algumas providen-
cias a favor delles, sem todavia se fazer ainda menção al-
guma de substituir áquelles miseráveis os escravos ne-
gros de Africa.
Rem vemos que não são estes argumentos taes, que
por elles se possa decidir e terminar a duvida, e incei"-
teza que ha sobre a í'jwca precisa, em ([ue teve principio
o transporte dos escravos negros para America. Com-
tudo. emquanto não adiarmos testemunhos authenlicos,
ou factos bem provados, teremos por mui veiosimil, que
aquella pratica começou hum pouco mais tarde do que
commummenle se suppõe.
Nem se pôde admittir sem provas o que diz o nosso
auctor, isto he, (jue las Cazas proposera ao Cardeal Xi-
menes a legalisação do trafico: porquanto o Cardeal só-
uienle regeo a Hespanha depois da morte de Feinando o
(Jatholico até á vinda de Carlos V, isto be, cousa de dous
annos; e este seu breve governo foi Ião inquieto, etão
pouco independente, que mal haveria lugar á supposta
proposição de las Cazas, e ainda menos a (|ue Ximenes to-
masse sobre si o resolver definitivamente ijualquer cousa,
a favor, ou contra, em matéria tão ponderosa.
O ([ue diz a este respeito Gomes de Castro na Vida de
Ximenes he, que o Cardeal desejando occorrer aos trata-
mentos bárbaros, que se praticavão com os índios, man-
dara á America alguns magistrados, que conhecessem
deste objecto: e acrescenta, que pelo mesmo tempo (1317)
intentando o celebre valido do Imperador Mr. de Chevres
comprar na Aquitania ÔOO negros para os fazer trans-
portar a S. Domingos, e communicando este seu projecto
ao cardeal, este se oppozera a tal pretenção, escrevendo
a Chevres, ponderando-lhe quão perigoso era transportar
347
negros á America, sendo elles, como erão, repugnantes
aos incommodos úo tr:iballio, e de génio inquieto e in-
domável, de maneira que do seu grande numero se podia
receiar alguma sedição. Oponde podemos inferir que já
então havia lembrança de transportará America escravos
negros; mas que este traíico e transporte ou ainda se não
tinha realisado, nem iegalisado, ou pelo menos ainda não
tinha ganhado fundas raízes.
He verdade que se apontão humas Instrucções de el-
Rei Catholico para Nicoláo Ovando, dadas em 1500, or-
denando-lhe que permittisse a importação de escravos
negros nascidos em reinos de Cliristãos. Diz-se, que o go-
verno Hespanhol prohibio em 1506 o transporte dos es-
cravos negros de Levante, e dos que tivessem sido criados
com Mouros. Refere-se, que já em 1501 e 1503 erão trans-
portados para as possessões Ilespanholas da America al-
guns poucos escravos, d-c.
Isto tudo prova (a nosso parecer) a incerteza que por
ora ha, e que porventura haverá sempre acerca da ver-
dadeira época precisa do estabelecimento deste trafico,
maiormente se quizermos falar de hum trafico extenso,
generalisado, e formalmente auctorisado, e Iegalisado.
O que nesta matéria nos parece natural e provável he
que as pessoas que tinhão interesse na exploração e tia-
balhos das minas, e que na Europa possuião alguns
escravos, começassem desde logo a mandal-os para a
America, em peijueno numero, para serem empregados
naquelles tiabalhos, e talvez a compral-os com esse des-
tino: e que crescendo cada vez mais o numero de escra-
vos vindos de Africa, seguindo-se as gi'aves questões a
favor dos índios, e occorrendo talvez outras circumstan-
cias, se foi generalisando o transporte, até que a auclo-
ridade publica se viu obrigada a legalisal-o, e a regular
por leis, e providencias a sua pratica.
I
i
EM QUE SE COLLIGEM AEGUMAS NOTICIAS
SOBRE OS PROGRESSOS DA MARINHA PORTUGUEZA
ATÉ OS princípios DO SÉCULO XVI
AIKMOIUA
ÍM qUE 6E COLLIUL.M ALGUMAS XUllClAb
íiOliKE OS ]'KOGKESSOS DÍ MAlílNlIA VOIiTUGUEZA
ATÉ OS princípios DO SECCLO XVI
Depois (Ih liaveiiiios iioladu iio índice Cfnoi/oloí/io). ao
anuo cli' 1415, a gcande aimada, que el-Rei D. Juãu I le-
vou á expugnação da praça de Ceuta, bem (juizeramos
ajuntar nesta nota algumas noticias, que mostrassem por
que gráos a Marinha Portugueza chegou ao quasi p!'odi-
gioso desenvolvimento em que a vemos no século xv, e
servissem hum dia á historia deste importante ramo da
pubhca administração: mas forão Ião descuidados nesta
parte os nossos antigos, que quasi nos sentimos desani-
mados de proseguir na execução do pensamento, que tí-
nhamos concebido. Colligiremos o que se offereceo â
nossa curiosidade, e outios farão mais, e melhor.
Considerando-se este objecto na sua mais ampla gene-
ralidade, parece não poder duvidar-se que os povos das
Uespanhas, e mais especialmente os habitantes das re-
gi(3es litloraes, fossem, desde os mais i'emotos tempos,
dados á arte da navegação, da maneira que o ilidia con-
sentir o atrazamento da civilisação, e a imperfeição das
artes.
He a Hespanlia banhada em Ioda a sua circumferencia,
pelos dous uiares Atlântico, e Mediterrâneo, á (íxcepção
tamsómente do pequeno espaço dccupado pelos montes
Pyieneos, que a unem ao conlineiile da Europa. As suas
352
costas em hum e oulro mar oiferecem IVequeiites ensea-
das, bahias, surgidouros, e portos excellentes, aptos pára
a segurança dos navios de qualquer grandeza, porte, e
dimensão. Os seus povos são industriosos, e ousados:
muitas das suas montanhas e serras erão nos antigos tem-
{)os, e algumas são ainda hoje, cobertas de óptimas ma-
deiras de construcção. A mui pequenas distancias tem as
costas de Africa, Itália, Sicilia. Sardenha, França meri-
dional, Córsega, e Baleares, habitadas nos mais antigos
tempos por povos industriosos, dados ao commercio e á
navegação. Nós não conhecemos quasi nação alguma, que
em semelhantes circumstancias não tivesse algum uso,
mais ou menos perfeito, mais ou menos extenso, da arte
de navegar.
As Hespanhas forão antigamente frequentadas pelos
povos, de que temos noticia, que mais peritos fossem na
navegação, como erão indubitavelmente os Fenícios, os
Gregos, os Carthaginezes, e os Romanos. Os próprios Cel-
tas, que antes destas naçijes estavão estabelecidos na Lu-
sitânia, Galliza, e outras pai-tes da llespanha, não erão
estranhos á arte de navegar. Festo Avieno celebra a pe-
rícia, e industria dos Celtas Artabros no commercio, e na
pratica náutica, quando descrevendo aquella costa, e as
ilhas, que chama Oestrimnides, diz (jue erão os seus ha-
bitantes dotados de animo ousado, de eílicaz industria,
e dados geralmente ao negocio, e commercio, e nota com
admiração o artificio de suas embarcações, e as largas
viagens, que com ellas fazião (1).
(1) Avien., V. í»8.-
Multa vis Jiii' (jentis est_.
Stiperbus onimm, ejjicax solertia,
Negotia)tdi cura jwjis omnihns.
E loiío :
yokisijue ctiinhis litrbidum lale frciíun
Et bellkosi qurfjiteni oceani sccanl.
353
Eslrabão (liv. '3.") também mencionou o mesmo uso,
que os povos Hespanhoes da costa septemtrional fazião
em outro tempo de barcos formados das pelles, e couros
dos animaes : « Coriaceis (diz) usi simt navigns ».
Esta pericia, e uso da navegação dos povos da Hespa-
nha se mostra não menos por algumas expedições, que
elles íizerão em tempos remotíssimos aos paizes estran-
geiros ultramarinos.
Na parte montanhosa da Gran-Brelanha, chamada hoje
paiz de Galles, habilavão os SUures, de origem Hespa-
nhola, cuja capital era Vcnla, hoje Caervenl. A Hibernia^
chamada pelos Gregos leme, também se julgava ter sido
antigamente povoada, em parte, por nações vindas da
Hespanlia (2). Os Hibernos (dizia hum escriptor do sé-
culo xii) parecem-se com os Vascões, tanto nos corpos,
como nos vestidos, armadura, e costumes (3). A Sicília
foi primeiro povoada pelos Hespanhoes Sicanos (4) ; e na
Non hi carinas qiiipe pinu texere
Fecere morem, non ahiete, ut usu est,
Ctirvant fasello : sed rei ad miracuhim
ISavifjia junctis semper aptant pellibus.
&c. '
(2) Barbié du Bocage, Geograf. antiq.
(3) Valesio na Noticifi das Gallias, palavra Lapnrdum, cila liuiu
escriptor do século xir, que escreveo sobre a topografia da Hi}»eriiia,
do qual diz : « Ait eniin Basclenses de Hispaniarum partibiis classe
in Hibrrniam insulam venisse, ibique habitavisse. Et Basdensiuni
Hiberniensium corpora, vestes, armaturam, moresqne describit».
(4) Deniz de Halicarnasso, Antiq. lioman., liv. 1.", falando da
chegada dos Sictdos á Sicilia, diz: « Sicani tum eam tenebant, gentis
Hispanicum, quod [ngatimi a Liguribus paulo ante ibi habiiare coe-
perant, Sicanianique suo nomine vocaverant, qiiae prius Trinacria
dicebntnr a forma triangula ». E Silio Ital., de liello Punic, liv. 14.",
vers. Si.", fazendo menção dos campos Sicutos, diz:
Vomere verterunt primo nova rura Sicani:
Pyrene misit populos, qui nomen, ab ainne
Ascitwn pátrio, terrae imposuere vacanti
&c.
TOMO V á3
354
Córsega, ainda em tempo de Séneca se reconhecião ves-
tígios de Hespanhoes na linguagem, e em alguns usos po-
pulares (5).
No tempo dos Fenícios, Carthaginezes, e Romanos to-
das as costas das Hespanhas erão cheias de povoações
marítimas, cujos habitantes por cei-to, que não olharíão
com índififerença para os mares, que banhavão seus domi-
cílios, nem deixarião de tirar delles, á imitação daquelles
povos estrangeiros, algum útil partido, ao menos para sa-
tisfazerem por meio da pesca a quotidiana necessidade do
seu alimento.
Cadiz era então hum dos principaes empórios do com-
mercio dos Fenícios, e o foi, depois, dos Carthaginezes.
Hannibal fundou, ou deo o nome ao porto, que delle se
chamou Porto de Hannibal, hoje villa de Alvor, na costa
meridional da Lusitânia. Ossonoba, cidade na mesma
costa, foi mui conhecida dos antigos geógrafos Gregos, e
Romanos, sem duvida, pela sua situação littoral, e pelo
seu commercio. Balsa, e Lacobriga tinhão a mesma po-
sição. Na costa occídeulal estava Merohriga, e logo Ceto-
briga, notável pelo culto da Deosa Salada, mulher de
Neptuno Deos do mar (6), e pelas pescarias, e salgações,
que nella se fazião, e de que ainda em tempo de Rezende
existião alguns vestígios (7). Olisipo sobre o Tejo tinha
(5) Séneca, de Consolai, ad Helviam, cap. 8.", referindo alguns
povos, que tinhão vindo habitar a Córsega, diz : « Transienmt deinde
Ligures in eam; transierunt et Hispani, qiiod ex similitudine ritus
appnret: eadem enim tegwnentacapiturn, idemqiie genus calceamenti,
quod Cantabris est, et rerba quuedam; naiii totus sermo conversa-
tione Graecoriím, Ligunimque a pátrio descivit ».
(6) Camões, Lusíadas, cant. 6.°, est. 16.* :
Tritão, que de ser filho se gloria
Do Rei, e de Salacia veneranda.
(7) Rezende, De antiquit. Lvsil., iiv. 4." : « Quoniam vero in tirbe
hac celebris est piscatio, et salsura tfdium piscinm. . . Cetobriqa vo-
3S5
hum porto capaz, segundo Estrabão, de grandes na-
vios (8). Langobriga era situada sobre o rio Vacca, hoje
Vouga. Cale, á foz do Douro, era tão fi-equentada de nar
vios, e de gente dada aos trabalhos do mar, que por esse
motivo deo origem á fundação da cidade fi'onteira, que
d'ahi se chamou Portus-Cale, e depois Portucale. Ao
norte do Douro até o cabo de Finisterrae he a costa
cheia de portos, e povoações já conhecidas nos antigos
tempos, a sabei": a foz do Ave, do Neiva, do Lima, do
Minho, de Iria (hoje Padrão), de Brigando, ou Coru-
nha, de. (9).
Muitas das antigas moedas, que se conservão daquelles
remotos tempos, talvez com legendas de caracteres desco-
nhecidos, mostrão symbolos allusivos á navegação, como
são peixes, proas de navio?, ancoras, ác, e indicão por
isso mesmo terem sido batidas em cidades littoraes, e
versadas naquella arte.
cata civitas est. Durant adhuc in Ceiobrigensi littore ipsa cetaria,
signino opere antiquitus fabricata».
(8) Rezende, ihideiu, liv. 2.°: « Latitiidinem ostis (Tagi fluvii)
Strabo stadiorum esse viginti tradidit; altitudinem vero permag^iam ,
ut a navigiis milita decem vectantibus navigari facile possit».
(9) Os Romanos chamavão magnus portus ao porto em que hoje
está a cidade da Corunha na Galiiza, e ahi se levantou no tempo
delles o celebre Faro para atalaia do mar, e guia dos navegantes,
fabricado pelo Lusitano Gayo Sevio Lupo, arquitecto, que era em
Aguas-flavias (hoje Chaves); o qual Faro se conserva ainda, e delle,
denominado columna, tomou a povoação o nome de Corunha. Deste
faro, ou torre faz menção o douto Bracarense Paulo Orosio (no
liv. 1.", cap. 2.°) quando diz, que em Brigantia (nomo antigo da
cidade) se levanta hum altíssimo faro, destinado a vigiar o mar
Britânico : « secundus angiilus (diz) circmm intendit, ubi Brigantia,
Gaíleciae civitas, sita altissinmm farum. et inter paucu mcmorandi
operis, ud specnlani liritaniae erigit». A este porto se dirigio Julio
Gesar com a sua armada, depois que vindo de (>adiz subjugou os
Lusitanos do monte Hermínio, refugiados om huma ilha, que pa-
rece seria Peniche; e então se assenhoreou de Brigando (Corunha)
de que aqui falámos.
356
Lançando ora a vista ás outras costas da Hespanha, e
discorrendo ligeiramente pela oriental, e meridional, achá-
mos mui notável nos antigos tempos por seu porto, fre-
quência de navios, e commercio, Empórios, ou Ampn-
rias, que do mesmo commercio tomou o nome : Tarra-
gona, aonde existem ainda vestigios de hum magnifico
templo, erigido em honra de Neptuno, Deos do mar:
Dianium (hoje Denia, no reino de Valência), que era aco-
lheita das esquadras de Sertório, como diz Estrabão (10):
Carthagena, fundada por Hasdrubal, arsenal marítimo
dos Carthaginezes, e grande deposito das riquezas de
Africa, e Hespanha, notável aliás pelos excellenles ferros
de flechas de suas fabricas : Málaga, d'onde se fazia grande
commercio com a fronteira costa Africana, transportando-
se para ella as salgações, que ali se fabricavão, como ou-
trosim refere Estrabão (11): Hispalis (hoje Sevilha) não
menos notável pelo seu commercio, e que em tempo dos
(10) Strab., liv. U.°: uQno ad res maritimas rccept anilo nsus est
Sertorius» Huma das primeiras acções de Sertório, depois que to-
mou o mando dos Lusitanos, foi a victoria naval, que alcançou con-
tra Cotta no Estreito Hercúleo, aonde o general Romano andava cru-
zando para impedir a passagem de algum soccorro Africano. D'ahi
entrou Sertório no Guadalquivir (antigo BetisJ, e achando em suas
margens alojado o exercito do Pretor Romano Didio, o derrotou com
morte de 2:000 Romanos. A Historia ainda faz menção de outra
expedição naval de Sertório destinada a hostilisar as cidades mari-
timas, em que havia presídios Romanos, e diz que discorrendo pelo
Mediterrâneo derrotara, e tomara muitos baxeis inimigos. E já antes
de Sertório, e ainda antes da guerra de Viriato, notão alguns escri-
ptores, que pelos annos de 151 antes de Christo, sendo Lúcio Mum-
mio Pro-pretor na Lusitânia, e sendo os Lusitanos commandados
por Cancheno, emprendi^ra este capitão a conquista de algumas ci-
dades da Mauritânia, e mandara fabricar, e apparelhar baxeis para
a passagem do Estreito, e chegara a render Tangere, &c.
(H) Estrab., liv. 3.°: «In hac ora prima urbs est Malaca, tanto
a Calpe, quantum ab hac Gades, intervallo. Ea habet emporium, qiio
utuntur, qui in opposito littore vivunt; multumque ibi conficitur sal-
samenti», &c.
357
Romanos era hum grande empório (12): Calpe, que Es-
trabão menciona i)roxinia ao monte do mesmo nome, ca-
racterizando-a de antiga, e memorável, e notando que
era em outro tempo ancoradouro dos navios Hespa-
nhoes (13); e que ainda em seu tempo se via o grande
circuito de seus muros, e os estaleiros (14): finalmente
Belon, outra cidade nomeada por Estrabão, e da qual
diz, que era lugar de salgações, e que delia se fazia cora-
mercio para a Mauritânia Tingitana (15).
He pois fora de duvida, que nos antigos tempos, in-
clusos os da dominação Romana, tinhão os povos das
Hespanbas grande uso da navegação, pesca, e commercio
marítimo, em toda a circumferencia de suas costas.
Os povos do norte, que no principio do século v inva-
dirão a Península, e vierão a extinguir nella o império
Romano, erão pouco exercitados na arte de navegar, por-
que o seu estado precedente lhes não havia dado (ao que
parece) opportunidade de muito praticarem esta arte.
Comtudo, vinte annos depois da sua entrada nas Hespa-
nbas, os Wandalos passarão da Betica a Africa em nu-
mero de mais de 80:000 pessoas, e esta passagem de-
mandava grande numero de navios, e alguma pericia da
navegação (16). Pouco depois vemos os mesmos Wanda-
los, debaixo do reinado deGenserico, fazer descensos so-
bre as costas da Itália, da Sicilia, das Gallias, das Balea-
res, ác. ; destruir frotas numerosas do império, e dispu-
tar-lbe a superioridade náutica, e o dominio do mar (17).
(12) IJetii, iljidciii : « /Vr has Hispalis claret, ipsa quoqiie Ro-
luaiiorum rolunia, ac uiinc quklem emporium ibi ãurat».
(13) Idem, ibidem: «OUm statio varibus Hispnnorum».
(14) Marpium murorum circuitKui, et navnlia.
(lo) Lib. 3. Belon iirbs el lliwius. Hinc maxime ad Tingim Mau-
rituniae Irajicitur, mercatusque ibi sunt et salsametita.
(10) Idar. Chvnn.. da edição de Florez, na Espana Sagrada, ao
aiino 429.
(17) Ihidcm. ans annos iio, 4-")6, io7, i6o, 467, kc.
3S8
Nos princípios do século vi (diz hum escriptor moderno)
as imicas potencias marítimas erão o império Romano,
e o reino dos Wandalos. . . Os Godos da Itália também ti-
fíhão Marinha, mas pouco co?isideravel (18).
Os Godos das Hespanhas, que ao ptincipio se davão
pouco á navegação, vieião em tempo do Rei Sisehuto a
fazer-se peritos nesta arte, chegando a domar por mar e
terra os próprios Romanos, a quem d'antes tinhão obe-
decido, e servido, como nos informa Santo Izidoro na his-
toria destes povos (19).
Pelos annos G73, preparando o Rei Wami^a a expedi-
ção contra o rebelde e tyranno Paulo, e contra a provin*
cia das Gallias, que o seguia; diz S. Julião, na historia,
que escreveo desta expedição, que se destinara também
hum e.rercHo varal coiítra os mesmos rebeldes (20). Ou-
tra armada do Wamba combateo, e venceo no anno de
677 a dos Sarracenos de Africa, que constava, dizem al-
guns escri[)tores, de 270 vasos, entre grandes e peque-
nos (21). E em 006, tendo-se os Árabes já apossado das
Mauritanias, e tomendo-se el-Rei Egica de algum insulto
sobre as costas da Hespanha, mandou sahir ao mai' a
(18) Ml", le Comte du Buat, Histoire ancienne. des Peiíples de l'Eu-
ropc. Sidónio Apolinar. enumerando no Panegírico de Majoriano,
os diversos géneros, com que cada naeão servia ao Imperador, diz :
«SaMiliia nrçjentnm, naves Hispânia deferi»; e era isto na segunda
anietade do século v. (Vej. o Chron. de Idac, ao anno 462.)
(19) Isidor., Ilistor. Gothor. «Hac sola tantum armorum expe-
rientia hncusque carehant (Gothi) qíiod clássica hella in mari (jereré
non stndebant: sed postquam Sisebntus Princcps, celesti gratiã, re-
gni suscepit sceptra, ejus studiis aã tantam felicitatis virtutevi pro-
fedi sunt, nt nrni solum terras, sed et ipsa maria suis armis adeant,
subactusque serviat illis Bomanus miles, quibus servire tot gentes et
ipsa Hispânia vidit».
(20) S. Julião, Historia d<t expedição de Wamba, edição de Flo-
res, na Espana Sagrada : << Alium exercitam destinans, qni narali
praelio bellaturus accederet».
(21) Ferveras, ao anno 677; Chronic. Sebastianí, § 2."
359
armada Goda, que afugentou e dispersou a dos inimi-
gos (22).
Durante este periodo, que compreiíende desde o prin-
cipio do século V até o principio do vin, em que os Ára-
bes effectivamente invadirão, e soi)jugárão as Hespanhas,
e destruirão o império Goliiico, se nos ofíerecem ainda
alguns outros argumentos da pratica da navegação entre
os povos Hespanlioes, que nos pareceo não ommittir neste
lugar.
Da provincia da Galliza, que comprehendia huma parte
do actual reino de Portugal, e da própria Lusitânia, pa-
rece que sahião por aquelles tempos alguns navios para
as costas de Africa, e para o Oriente, como se faz mani-
festo pela viagem do celebre e douto Presbytero Braca-
rense Orosio a Hipona, dos dous Avitos, e Idacio, da
mesma província, e de S. João de Valclara, Lusitano, ao
Oriente.
A historia dos dous Bispos de Merida, Paulo, e Fidel,
Gregos de nação, e ambos metropolitanos da Lusitânia,
de que temos noticia pelos escriptos do Diácono Emeri-
tense Paulo (23), mostra que naquelle tempo vinhão na-
vios Gregos ao Anãs (Guadiana) por causa do commer-
cio. No século vi acudião á Tarraconensc, e a outras
províncias das Hespanhas, Clérigos Gregos, expulsos ou
fugitivos do Oriente, como se vê da carta do Papa Ilor-
misdas, dirigida, no anno de 317, ao Bispo de Tarragona,
em que lhe dá instrucções sobre o modo de receber os
Clérigos Gregos, e de examinar, e reconhecer a sua or-
thodoxia. Idacio, Bispo de Aqiias Flavias (hoje Choves,
em Portugal) metteo no seu Clironicon algumas noticias
das Igrejas orientaes, que lhe havião sido communicadas
por Presbyteros, e outros Gregos. (|ue aijorlavãd á Gal-
{±2} ísidor. Pacen?., (jliran. I''orrei'as.
{tli) Vitae Patrum Einerilem., edição de Floros, na Equina Sa-
grada.
360
liza (24). S. Martinho Dumiense e Bracarense aportou á
Galliza vindo do Oriente (23), ao mesmo tempo que che-
gavão as relíquias do Turonense, trazidas das Gallias,
também por mar, pelos enviados de el-Rei Suevo Carra-
rico. Tudo isto suppõe não só communicação de navios
estrangeiros nos nossos portos ; mas também alguma pra-
tica de navegação, propriamente nossa; pois não he ve-
rosímil, que a nossa gente fosse meramente passiva no
commercio, nem isso se compadece com o exercício, e
pericia de multas artes, e fabricas, que por aquelles an-
tigos tempos havia na Península, como erão os cxcellentes
tecidos de hnlio de Setabi; os vasos de bano de Sagunto;
as salgações da costa meridional e occidental da Betica, e
Lusitânia; as obras de madeira do antigo lugar marítimo,
onde hoje está Sines, na Lusitânia; as de ferro, e aço de
Carlhagena, de Toledo, e da Galliza, e outras de que, pôde
ser, falaremos em lugar opportuno.
Os Árabes, que como já dissemos, se apossarão de quasi
toda a Península no principio do século vni, derão-se á
navegação com grande ardor, segundo as proporções, que
o paiz lhes oITerecia, e a necessidade, que elles tinhão de
manter suas communlcações com a Africa, e Oriente. Não
só a praça de Ceuta era liuma das princlpaes. acolheitas
de suas esquadras, d'onde faxião frequentes descensos
nas Hespanhas, e sahião a saltear as costas da Europa
occidental, e mediterrânea; mas também dos próprios
portos da Hespanha, por elles dominados, sahião multas
destas expedições, como he íiequente na historia daquel-
les tempos. A Historia Compostcllana faz menção de al-
gumas delias, que do porto de Lisboa, e de outros das
(24) Idac, Chron.. anuo 43o.
(25) Diz o seu epitáfio:
Panonils qenitns, transcendens aequora vasta,
Galliciae in ijremma divinis nutibus actus
étc.
361
Andaluzias fazião frequentes saltos nas costas da Galliza
desde o Douro até o cabo de Finisterrac, com o fim de rou-
bar, e captivar os habitantes de Portugal, e Galliza (26).
Os povos indígenas do norte da Hespanha, aonde come-
çarão a levantar-se as novas monarquias nacionaes, for-
çados a combater quasi de continuo com os seus inimigos
no continente da Península, não poderião dar-se com igual
empenho á navegação. As frequentes invasões dos Nor-
mandos nas costas da Galliza, Lusitânia, e Andaluzia pa-
rece mostrarem, que não havia forças marítimas, em acção
permanente, bastantes a rebater os seus insultos. Com-
tudo havia algumas, e não faltava de todo a perícia náu-
tica, como se collige dos lugares citados da Historia Com-
postcllana, e de outros monumentos. E logoque o Bispo
de Santiago, D. Diogo Gelmirez, mandou vir de Piza, e
Génova constructores, que fabricassem galeras triremes.
conseguio varrer as costas, e reprimir a ousadia dos bár-
baros (27).
(26) Historia Compostei.,, Iiv. 1.°. cap. 103."; liv. 2.°, cap. 21." e
75.°; liv. 3.°, cap. 28.0
(27) Vejão-se os lugares citados na nota antecedente. Em906 man-
dava el-Rei D. Affonso Magno navios seus aos portos da França, como
SC vô da carta, que escreveo ao Clero, e Povo Turonome, copiada en-
tre os documentos do tom. 19.° da Espana Sagrada. Em 1111 que-
rendo o Bispo de Santiago tomar alguns castellos. que se tinhão re-
bellado contra a RainliaD. Urraca, e seu lilho (D. Allbnso VII), diz
a Compostellana, que mandou que os vassallos littoraes da sua Igreja
apromptassem a aiwnada, e fossem cei'car pela parte do mar os re-
beldes. E acreiícenla, que alguns erão peritos nas artes inaritimas,
e acostumados a e\ercitar-se nellas. Iricnses (diz) hand mora cias-
sem aptant; armis el fjwhnsrpie neressariis tiares suas onerant ; et
praeter caslelhim Honesti remvjantes. homines de Sancta Maria de
Lanchata adeunt ; ii eteniin ejusdeni dxtis periti, in littore maris se-
debant, et in narali exercitio studere solitierant_, &c. (Cornpostellana,
liv. 1.", cap. 7.').") E note-s? que já então dizia Gelmirez. que lhe
pertencia o (|uinto das prezas íeilas aos inimigos, o (jue suppõe al-
gumas leis navaes.
362
Por esse mesmo tempo era frequentíssimo o commer-
cio em alguns portos da Hespanlia, como nos informa em
especial de Barcellona Benjamin de Tudela no seu itine-
rário (28): e outro tanto se deve presumir dos outros
muitos excellentes portos, de que he cercada toda a Pe-
nínsula. Por onde se faz manifesto o uso constante da na-
vegação nos povos Hespanhoes, em todos os tempos, e
circumstancias, de que faz menção a historia.
Os nossos primeiros Reis, tão valerosos na guerra,
como providentes na paz, não desprezarão este impor-
tante meio de defender, e engrandecer os seus estados,
nem deixarão de dar ai tenção i\ Marinha, tanto para apro-
veitarem as utilidades do comme.rcio, como para rebate-
rem, quando fosse necessário, as forças dos Mouros:
cousa tanto mais indispensável, quanto a posição geográ-
fica de Portugal, esleiulido ao longo do Oceano, oíferecia
mais fácil preza aos insultos das esquadras, e dos piratas
Sarracenos,
Assim vemos que logo nos princípios do governo de el-
Reí D, Aftonso Henriques havia em Portugal algumas for-
ças navaes; porquanto pelos annos 1133, sendo tomado
pelos Castelhanos, e prezo no castello de Aguilar o Conde
D, Gonçalo, que se havia rebellado contra D, Afíbnso VII,
mandou este Príncipe, que o Conde fosse posto em li-
berdade, mas que logo sahisse de seus estados : e nota a
historia, que o mesmo Conde viera offerecer-se a el-Rci
de Portugal, para (jtierrear por mar a Galliza, e Astú-
rias (29). O que suppõe em Portugal algumas forças ma-
rítimas, que elle commandasse.
(28) Oppidum cst j)arrum (diz), attamen elegans, ét in maris lit-
h)re sihtm, ijuo negotiatioitis ergo mermtores ex omnibu8 locis con-
flunnt; e Graecia. P/.s/.s-. Ge)iua. Sicilia. Alexandria, Aegypto, Terra
Israehs, confiniisqiie omnibus ejm.
(29) Chronka de D. Affonso VIL era 1171: «Ut inde (aceret hei-
lum per maré in Astúrias, et in Gallaeciam».
363
Mui verosímil he taml3em, que el-Rei D. AíTonso Hen-
riques, conquistando Lisljoa no anno de 1147, augmen-
tasse a sua Marinha, apossando-se de algumas das forças
navaes, que os Mouros coslumavão ter naquelle porto;
pois com esse fim cercou a cidade por mor, e terra,
como dizem as antigas chronicas, valendo-se opportuna-
mente do auxilio da frota estrangeira, que passava á Terra
Santa, e cujos cabos o ajudarão em tão gloriosa, e feliz
empreza.
O certo he .que el-Rei cuidou logo em augmentar, e
pôr em boa ordem a sua armada, nomeando para a com-
mandar, como Capitão do mar, o celebre D. Fuás Roíipi-
nho, do qual sabemos, que tomou aos infiéis algumas ga-
lés, junto ao cabo de Espichei :
levando a gloria
Da primeira maritiina victoria,
como cantou o immortal poeta Portuguez (30), e que de-
pois outra vez os combateo, postoque com adversa for-
tuna, na costa do Algarve, segundo referem as antigas
chronicas do reino (31). Nem se pôde presumir, que hum
Príncipe, que com tanto valor e constância tinha guer-
reado os Sarracenos, libertado Lisboa, e muitas praças
visinhas, e levado suas victoriosas armas aos campos do
Alemtejo, deixasse de attender á defeza, e segurança das
costas marítimas, e de prevenir todos os meios, com que
(30) Lusíadas, cant. 8.", est. Ki." Chronica de Galvão, cap. 51."
6 52."
(31) Historia de Portugal, traduzida do luglez, edição de 1828,
tom. l.", pag. 142: «E vindo depois (D. Fuás) commandar a frota
destroçou huma esquadra de Mouros, da qual enviou 9 fjalés a Lis-
boa, e foi acommeller a dos infiéis , que era de oi guleaçaa, com sós
21 (lalés. Mas esta temeridade saliio-lhe cara; porque, eereando-thc
os Mouros os navios, de tal sorte o combaterão, que veio a servir-lhe
de sepultura agnelle mesmo mar, que fora theatro de suas tictof ias».
364
podesse rebater os insultos, e invasões das esquadras, e
piratas Barbarescos.
Também se não pôde duvidar de que já por este tempo
houvesse em Portugal alguma Marinha mercante, por
meio da qual se fazia commercio com as nações do norte.
Os cazamentos de alguns filhos, e filhas dos primeiros Reis
Portuguezes em Flandres, e Dinamarca, parece confirma-
rem esta reflexão, e mostrarem, que havia relações com
aquelles paizes, as quaes sem duvida erão resultado, ao
menos em parte, das frequentes communicações, e cor-
respondências commerciaes (32).
No reinado de D. Sancho I, filho do grande D. AíTonso
Henriques, sabemos peio testemunho dos antigos, que
aproveitando-se este Príncipe (como já fizera seu pai) do
auxilio de huma esquadra do norte, jiara conquistar do
poder dos Mouros a importante cidade tle Silves, na costa
do Algarve, ajuntara ás forças estrangeiras a sua própria
armada, na qual havia (diz a chronica) 40 galés e galeo-
fas, afora outras narios. em que hião aimas, engenhos,
artilherias, bastimentos (33), cV-c.
D. Afifonso II chegou a esquipar huma armada para a
guerra da Terra Santa (34), e D. AíTonso III não só fez
contínua guerra aos Mouros com as suas armadas; mas
também soccorreo por mar, e terra com grandes forças
a seu sogro el-Rei D. AíTonso, o Sabío, quando acommet-
tido por inumerável multidão de Mouros de Africa, e lícs-
panha; auxilio tão eíficaz, e de tanta utilidade, (|ue o Rei
(32) D. Tliereza (que os Flamengos cliamánlo Mathikle), filha de
D. AlTonso Henriques, cazou com Filippe, Conde de Flandres. D. Fer-
nando, íilho de D. Sancho I, cazou com Joanna, herdeira do mesmo
condado de Flandres. D. Berenguella, filha do mesmo D. Sancho I,
cazou com Valdemaro, 2." do nome, Rei de Dinamarca. D. Leonor,
filha de D. Aífonso II, cazou com outro Valdemaro, 3." do nome, e
também Rei de Dinamarca, àc.
(33) Chronica, cap. 9.°, Faria e Sousa, epit., part. 3.% cap. 3."
(34) Faria e Sousa, ibidem, part. 3.% cap. 4." La Clede, liv. 6.»
365
de Gastei la e Leão, contente da victoria, e cheio de agra-
decimento, cedeo então do direito, que por precedentes
Tratados havia reservado ás rendas do Algarve, e a 30
lanças Portuguezas durante a sua vida (33).
A conquista, que D. Affonso III fez das terras do Al-
garve, e de quasi todas as suas praças maritimas, o pu-
nlião também nn forçosa necessidade de huma força res-
peitável, que as defendesse de novas invasões dos ini-
migos: e sabemos, que el-Rei se não descuidou deste
dever (36j.
Este mesmo illustre Principe nos he recommendado nas
antigas historias Portuguezas como grande favorecedor
do commercio, tanto interno, como marítimo.
Do primeiro são boa prova os privilégios, e franquezas,
que concedeo a diversas villas, e lugares, com o íim de
multiplicar, e facilitar as feiras: e o cuidado, que teve de
assignar o justo valor ao ouro, prata, e outros metaes,
que são como certas medidas da estimação das cousas,
que andão no commercio dos homens.
Do segundo nos dão abonado testemunho, por huma
paite a fundação, restauração, ou povoação de lugares
littoraes, accommodados á pratica da navegação, e com-
mercio, como forão Silves, Tavira, Faro, Vianna do Lima,
Villa Nova de Cerveira, Caminha, á-c. : e por outra parte
o notável documento, que existe no Real Arquivo, e vem
transcripto nas Dissertações Chronologicas e Criticas do
(;{5) La Clede, liv. 7.°, traducção Portugueza, not. 8.
(36) A chroilica antiga, cap. 12.", diz: «E destes lugares do Al-
gaiTe, depois que os el-Rei D. Affonso houve a sen poder, e senhorio,
se acha, que com suas galés, e outros muitos navios fez sempre de
continuo crua guerra aos Mouros de Africa, que em seus corpos e
fazendas recehião grandes damnos». E Mariz, no dial. 2.°, cap. 15.",
t(Mulo referido a conquista das principais praças do Algarve por
D. Aflbnso III, concluc: «Todo o mais tempo de sua vida gastoti el-
Rei D. Affonso em continua guerra, que com suas armadas fazia
aos Mouros de Africa».
366
Dr. João Pedro Ribeiro, datado da era 1291, anno de
Christo de 1253 (37).
Por este documento sabemos quão extenso era, na-
quella remota idade, o commercio marítimo Portuguez, e
quanto o consummo, que no reino se fazia de varias fazen-
das de Londres, Ruan, Abeville, Bruges, Ipres, Tournay,
Montpellier, e de outi"os muitos portos da grande e pe-
quena Bretanha, da Flandres, da Normandia, doLangue-
doc, de. O que suppõe a producção Portugueza de objectos
de permutação: o consequente progresso da agricultura,
artes, e fabricas nacionaes; a pratica da navegação, e final-
mente a existência de forças navaes adequadas á guarda,
e defensão dos portos, e navios Portuguezes (38).
A estes tempos julgamos se devem attribuir as relações
dos Portuguezes com as cidades Hanseaticas, de cuja liga
fez parle a cidade de Lisboa : e de tudo isto resultavão tão
consideiaveis direitos, que el-Rei, fazendo seu testamento,
julgou bastante applicar para satisfação das mandas, e le-
(37) Dissertações Chronologicas e Criticas^ tom. 3.°, append.
n.» 21, pag. 59.
(38) Quando da avnaltada iraporlação de fazendas estrangeiras de-
duzimos a existência, e fabricação de géneros, e fazendas nacionaes,
não nos fundimos somente na mera probabilidade desta consequên-
cia. As nossas chronicas, e os antigos códigos de nossas leis estão
cheios de ordenações, que vedavão a saca do dinheiro, e dos nietaes
preciosos; e hum dos fins desta providencia era obrigar os nego-
ciantes a fazer o saldo do commercio com eíTeitos nacionaes. Por
este motivo, não menos que para evitar o descaminho dos direitos,
se estabelecerão os lealdamentos. pelos quaes erão os estrangeiros
obrigad-os a manifestar os géneros importados, e os retornos, que
levavão em fazendas do reino : e os nacionaes sofrião igualmente
varejos, e balanços, em que se medião, e calculavão as fazendas exis-
tentes, e as vendidas, conferindo tudo com as que se lealdavão, e
manifestavão nas alfandegas, e portos, para deste modo se ver se
algumas se introduzião por alto, e descaminhadas, e se a exporta-
ção correspondia á importação, de sorte, que não houvesse saca de
moeda, ouro, ou prata, &c.
367
gados, que nelle deixava, os redditos da cidade de Lisboa,
e seus termos, com as dizimas de mar, e terra, que alii
lhe pertencião (39). De maneira, que bem podemos dizer,
que no tempo de el-Rei D. Afíunso III he que se lançarão
os mais largos, e sólidos fundamentos á Marinha Portu-
gueza, a qual logo no seguinte reinado de el-Rei D. Diniz
seu íilho se levantou a maior luzimento pela sabia poli-
tica, e acertadas providencias deste Príncipe, a quem não
escapou cousa alguma, que podesse elevar a hum alto grão
a grandeza, e gloria da sua nação (40).
Foi elle o primeiro Rei Portuguez, que deu forma es-
tável, e regular ao importante cargo de Almirante, no
anno 1322 (41), conferindo-o debaixo de certas con< li-
ções, e com grandes honras e interesses a iMisser Manoel
Peçanha, nobre Genovez, mui perito nas cousas maríti-
mas. O qual bem he de crer, que poria em grande me-
lhoramento a armada naval, tanto no que respeita ao nu-
mero, e foiça dos navios, como á manobra náutica, e á
disciplina da gente da marinhagem; para o que se criarão
também os oíTicios necessários, e se determinou a ordem,
e os limites de suas jurisdições, e auctoridades: obri-
gando-se alem disso o Almirante a ter em Portugal 20
Geno vezes, homens do mar, para governarem os navios,
como alcaides, e arraizes, quando a armada sahisse con-
tra os inimigos, por serem os Genovezes, naquelle tempo
(39) Provas da Historia Genealógica, tom. l.° : «Et dizimas omnes
tam maris quam terrae, et omnia qiiae pertinent ad me in eadem
civitate, et in ter minis siiis, tam in mari, quam in terra».
(40) Teve particular cuidado na conservação da sua frota, de
sorte, que eniquanto viveo foi senhor do mar. (Historia de Porlu-
(jal citada, tom. 1.°, pag. 253.)
(41) Vej. o contracto feito com o Almirante Peçanha, no tom. 1.°
das Provas da Historia Gcnealorjica. do (jual consta, que o primeiro
ajuste tinha sido feito na era 13.^5, que he anno de (lliristo 1317,
postoque somente fosse reduzido a escriptura na era 13()0. aiuio
de Christo 1322, que he a data do referido contracto.
368
mui experimentados, e peritos nas cousas navaes. Com o
que attendia também el-Rei a ter no reino huma como
escola, em que os Portuguezes se fossem cada vez mais
exercitando, e aperfeiçoando naquella importante arte.
Foi também el-Rei D. Diniz o que, conhecendo quanto
convinha para o augmento deste ramo da força publica
ter madeiras de construcção de boa qualidade, em abun-
dância, e em lugar accommodado ao fácil transporte para
os estaleiros maritimos, mandou semear o grande pinhal
de Leiria, do qual ainda hoje tira grandes proveitos a Ma-
rinha Portugueza, e sem o qual (como avisadamente re-
flecte hum escriptor) seria impossivel conservar-se depois
a navegação da índia, pelas grandes embarcações, que
para ella erão necessárias, e que se não podião fazer, se-
não de muitas, grandes, e antigas arvores (4^).
Nem este zelo, que el-Rei D. Diniz mostrava pelo au-
gmento da Marinha, era de mera ostentação, e apparato.
As chronicas antigas, bem que pouco solicitas de nos in-
struírem sobre hum objecto tão importante, dizem com-
tudo, que el-Rei trazia continuamente suas galés nas cos-
tas do Algarve, a fim de as guardar dos saltos do inimigo,
e de embaraçar, ou interceptar os soccorros, que os Mou-
ros de Africa mandavão aos de Granada (4íi) : e com este
mesmo intuito obteve do Papa João XXll os dizimos eccle-
siasticos, para melhor poder costear as grandes despezas
de suas armadas : alem de nos constar pelo contracto, que
se fez com o Almirante Peçanha, que a este se concedia a
(42) Mariz, dial. 3.°, cap. 1.°, no liiii.
(43) Idem, ibidem, refere de el-Rei D. Diniz, que fizera sempre
cruel, e continua guerra com suas poderosas armadas aos Mouros de
Africa, vendo que os de Portugal já erão lançados fora delle. E hou-
ve-se (diz) com elles tão asperamente, que se não acha posto em me-
moria, que alguma hora lhes concedesse tréguas, ou com elles fizesse
pazes. (VeJ. a Historia de Portugal, traduzida do Inglez, edição de
1828, tom. 1.», pag. 257, not. 1, &c.)
no9
quinta parle do que cabia a el-Rei de todas as prezas to-
madas aos inimigos^ tirando navios, armas, e prizionei-
ros de mercê, o qual, quando el-Rei o queria tomar, era
obrigado a dar 100 libras Portuguezas, e delias tinha
também o Almirante a quinta parte, de. (ii); por onde
se vu, que a armada não estava ociosa, nem as suas em-
prezas erão sem proveito.
As mesmas chronicas nos inCormão, que pelos annos
129o, rompendo-se guerra entre Portugal, e Castella,
fizera el-Rei de Castella esquipar no porto de Sevilha al-
gumas galeras, com as quaes D. Sancho de Ledesnia, en-
trando subitamente no Tejo, e achando desprevenida a
armada Portugueza, levara vários navio-;, (jue naquelle
rio estavão ancoi^ados: mas que o Almirante Porlnguez
ai'mando, e aparelhando com grande celeridade, e sa-
hindo logo ao mar, íôra alcançar os Castelhanos jimto ao
cabo de S. Vicente, aonde pelejando com elles, não só re-
cobrara a preza, que levavão, mas também lhes tomara
muitos dos seus navios, com o que se recolhera victorioso
a Lisboa ('45).
Nem he alheii» do nosso propósito reflectir aqui, que
substituindo el-Hei á extincta Ordem dos Templários a
outra Ordem Militar da Cavallaria de Nosso Senhor Jesu-
Christo, destinou com prudente advertência para sua ca-
pital, e para residência do Mestre a villa de Castro Marim,
situada na extremidade do reino do Algarve, á foz do Gua-
diana, sobre a costa do mar: como dando a entender, que
sendo os Cavalleiros da nova Ordem incumbidos de fazer
guerra aos intieis, convinha que assentados em hum lu-
gar marítimo, e fronteiro aos Mouros, se habilitassem nos
exercícios náuticos, c na guei"ra do mar. e augmentassem
assim as forças da Marinha Portugueza.
(44) Consla do cuiilraclo acima cilatlo. E vrj. Sovoriín ilc l\ii'ia.
Noticias de Portugal, disc. 2.*», § 13.°
(4'j) Chronim. v:\\). (i."
TOMO V -2'i
370
Outra grande prova do estado florente, a que ella tinha
chegado, se deduz das extraordinárias riquezas de el-
Rei, procedidas em grande parte do extenso commercio
maritimo, que então fazião os Portuguezes. Os auctores
da Historia de Portugal, escripta em Inglez, fazem a este
respeito algumas reflexões, que nos pareceo não ommittir
aqui (46).
« Suas riquezas (dizem elles, falando das deel-ReiD. Di-
niz) erão o espanto daquelles tempos: porque o povo,
vendo que elle quanto emprendia tudo acabava, dizia vul-
garmente, e ainda hoje se repete: (íEl-Rei D. Diniz fez
tudo quanto quizy>. Mas isto prova, que em Portugal de-
via de haver então muitos commercios. O que também se
pode deduzir da grande armada, que el-Rei sempre teve,
e lhe servia de conter os Mouros, e de proteger as costas
de Portugal e Andaluzia. Acresce a isto dizerem os his-
toriadores Portuguezes, que el-Rei nunca usou de cousa
estrangeira em seus vestidos, moveis, e meza, d'onde se
deixa entender, que elle nisto era singular, e queria ani-
mar as manufacturas do reino, dando-lhes valor aos olhos
dos seus naturaes, e dos estranhos: o qual meio era hum
dos mais efficazes para attrahir ao seu reino as riquezas
dos visinhos, porque ellas costumão acompanhar sempre
o commercio, se no luxo se sabe guardar huma certa tem-
perança.
« Nós falámos disto (continuão ainda os auctores) con-
jecturalmente, porque os historiadores Portuguezes não
dizem nada a este respeito; mas fundàrao-nos nas cir-
cumstancias, e damo-nos a crer, que o grande commercio
se faria com as frequentes visitas das armadas dos Cru-
zados, que de toda a Europa passavão á Terra Santa, e
tocavão nos portos de Portugal, e da correspondência,
(46) Historia de Portugal, traduzida, edição de 1828, tom. i.°,
pag. 255.
í
371
que daqui nasceria com as illias do Arquipélago, e com
os portos da Grécia, Syria, e Egypto. Destes receberão
os Portuguezes as luzes, (jue depois os guiarão nos des-
cobrimentos, de que não tinlião idéa alguma: mas já en-
tão experimentavão os prósperos successos do commer-
cio, e da navegação, que os fazia ricos e poderosos a
respeito de seus visinhos. »
Finalmente temos ainda hum testemunho notável do cui-
dado, com que el-Rei D. Diniz se applicava ao augmento
da Marinha do reino, na exposição, que os enviados de
seu filho e successor el-Rei D. AfTonso IV fizerão ao Santo
Padre Benedicto XII, quando no anno de 1341 forão pe-
dir-lhe em nome deste Principè a concessão das decimas
dos benefícios de Portugal e do Algarve para a guerra
contra os infiéis.
Dizião os Embaixadores, que el-Rei D. Diniz, para
mais facilmente quebrantar as forças dos Mouros fi-
zera aparelhar huma numerosaxirmada, e nomeara hum
Almirante, e com ella alcançara algumas victorias dos
Sarracenos. E acrescentava o, que desejando ora el-Rei
D. Affonso seguir as pizadas de seu pai, tinha augmen-
tado a armada, e de tal modo havia feito exercitar a sua
gente na maiinhagem, que nenhuma nação lhe levava
vantagem na pericia náutica, d-c. Pelas quaes palavras
não só se confirma o que deixámos dito acerca de el-Rei
D. Diniz, mas também se vê o progressivo augmento, que
no governo de seu filho hia tomando a Marinha Poitu-
gueza, e quanto os Poi'tuguezes começavão já a sobresa-
hir ás outras nações no exercício, e pericia da marinha-
gem (47).
Com elleito ao tempo deste Rei D. AíTonsoIVse devem
sem duvida refeiir as [irimeiías emprezas iilliamarinas
(47) Yel.oPontificiar. Conslituliuniim Kpiloint'. abAloijsio (luerra
edit. 4." vnl., foi.
372
dos Portuguezes, que no seguinte século se fizerão Ião fa-
mosas.
Já em outras partes, e a outros respeitos temos mencip-
nado a resposta, que este Principe mandou dar ao Santo
Padre Clemente YI, quando D. Luiz de Lacerda, investido
no domínio das ilhas Canárias, pretendia hir apossar-se
delias, pelos aimos 1344, e pedia para isso por interven-
ção do Papa, o auxilio de Portugal, e de outros Soberanos.
A resposta de el-Rei foi : « Que aquellas ilhas lhe perten-
cião, pelas haver descoberto, e mandado a ellas os seus
vassallos, n que as teria conquistado, se as guerras, que
sustentam contra os Mouros, Ihopermittissemy, á-c. As-
sim consta pelos documentos da Chancellaria Romana, ci-
tados pelo Annalista Haynaldo, ao referido anno.
Desla expedição, que el-Hei dizia ter mandado ao des-
cobrimento das Canárias, não lemos achado até o presente
memoria alguma nos nossos escriptores; mas parece não
se poder pruilenlemente duvidar delia, por ser inverosí-
mil, ou antes impossível, que el-Rei adegasse ao Santo
Padre hum facto tão notável, que devia ser publico, e
acontecido naquelle próprio tempo, se não fosse verda-
deiro. Em hum escriptor porém estrangeiro, e moderno
achámos noticia (também pouco conhecida) de huma em-
preza marítima dos Portuguezes no século xiv, que acaso
pôde ter alguma relação com o referido facto; e que ainda
não a tendo, merece mencionar-se neste lugar, em prova
do que vamos tratando.
He Mr. Court de Gébelin, o escriptor, que nos dá esta
noticia (48), citando o Diário dos Eruditos (49) do mez
de Abril de 1758, e copiando delle esta notável anecdota:
« Oito pessoas de Lisboa (dizem os diaristas) com todas
as suas famílias tizerão esquipar hum navio, e lhe mettê-
rão mantimentos para muito tempo. Era o seu desígnio
(48) Monde Primitif analysé, &c., no vo!. de Disserlaíiom mélées.
(49) Jíiiirnal dpn Sçarans.
373
embarcaiem-se, navegarem o Oceano, e não voltarem sem
que tivessem descoberto as terras, que devião terminar
o mar ao occídentc. Navegarão avante onze dias em alto
mar; mas a violência dos ventos os obrigou a tomar o
rumo ao meio dia. Depois de outros doze dias de nave-
gação, abordarão a huma ilha, onde acharão prodigiosa
quantidade de gados, cuja carne lhes pareceo amargosa,
e por isso se contentarão de aproveitar as pelles. Nave-
garão depois outros doze dias ao sul, e chegarão a outra
ilha, que era habitada, e que tinha huma cidade á borda
do mar. Ahi acharão hum interprete Árabe, que os infor-
mou, que o Rei da ilha tendo concebido o mesmo pro-
jecto, enviara alguns dos seus súbditos, os quaes havião
navegado hum mez inteiro sem nada descobrirem». Era
isto (dizem os diarislas) quasi dous séculos antes do des-
cobrimento de Guiné, e da America; e acrescenlão, « que
esta anecdota fora tirada de hum livro manuscripto in-
titulado Ketab Karidat el Adgiaib, que se interpreta o
livro da pérola das maravilhas, composto por Zein-
Eddin-Omar, fdho de Almudasser, por sobre-nome Ben-
el-Oiiardi, que vivia no século xiv».
O leitor fará sobre esta relação o juizo, que bem lhe
parecer: nós porém não teríamos por conjectura arrojada,
ou inverosímil presumir, que os ousados navegantes de
Lisboa sendo lançados ao rumo de sul, fossem parar em
alguma das Canárias (50), que logo começarão a ser tão
requestadas, e das quaes sabemos serem as únicas, que
naquelles mares erão povoadas, quando se descobrirão as
da Madeira, Porto Santo, Açores, á-c.
Ultimamente do tempo do mesmo Rei D. Atfonso IV
nos consla: Que na guerra, que teve com Castella, se pe-
lejou também no mar, repartindo-se as forças Portugue-
zas em duas divisões, huma de 20 galeras, e outros na-
(50) Vej. l\oUi nobre as Canárias, a pa^;. 163 c seg. desle tomo.
374
vios, guarnecidos por 2:000 soldados, e capitaneados por
D. Gonçalo Camelo, a qual andava sobre as costas da An-
daluzia: e a outra commandada pelo Genovez Manoel Pe-
çanha, a qual fazia suas hostilidades sobre as costas da
Galliza: Que pelos annos 1336 corria o mar o Almirante
Estevão Vaz de Barbuda com 3 náos grossas, e 5 outros
baxeis contra os piratas, que infestavão as costas, e lu-
gares marítimos de Portugal: e que quando foi das em-
prezas de Algezira, e Gibraltar, deo el-Rei de Portugal
ao Castelhano o soccorro de algumas galés da sua ar-
mada (51).
Os progressos, que tinha feito, e hia fazendo a Marinha
Portugueza, não sofrerão interrupção no reinado de el-
Rei D. Pedro L antes temos motivo pni-a ajuizar o con-
trario, se reflectirmos nos grandes thesouros, que deixou
este Príncipe (que não he taxado de avaro, ou mesqui-
nho), e na grande extensão, que em seu tempo tinha o
commercio Portuguez, huma das principaes origens de
suas riquezas.
Mariz, descrevendo o estado em que el-Rei D. Fernando
achou o reino, quando subio ao Ihrono, refere estar posto
em memoria, que só na torre do Castello de Lisboa se
acharão por morte de el-Rei D. Pedro « 80:000 peças de
ouro, 400:000 marcos de prata, e grande somma de moe-
das de ouro e prata, e outras muitas cousas ricas, e de
grande ralar » (52) : e logo dando a razão desta tão ex-
traordinária riqueza, acrescenta: «E não pareça novidade
estranha, porqtie havia então em Portugal tão grande con-
tractação de vinho, azeite, sal, e outras cousas, que so-
mente na cidade de Lisboa acontecia acharem-se, algu-
(ol) Faria e Sousa, Epit., part. 3.*, cap. 8." La Clede, liv. 8.°;
na traducção Portugueza. tom. 4.°, pag. 59, 62-67, 91, &c.
(32) Mariz. dial. 'i.", cap. o.° Alguns lêem: «800:000 peças de
ouro». Nós temos a edição de 1749, e seguimos a sua lição, que
também nos parece mais razoável.
375
mas vezes no anno, 400, e 600 navios de carregação
juntos, de que el-Rei tinha grandes direitos, e estas car-
regações se fazião cada anno três e quatro vezesy> (53).
Em confirmação do que, notaremos ainda, que deixan-
do-nos as chronicas em lembrança a horrível tempestade
de chuva e vento, que se experimentou em Lisboa no mez
de Fevereiro de 1370 (terceiro anno de el-Rei D. Fer-
nando), referem, que esta tempestade, durando muitas
horas, fizera gravíssimo destroço em grande numero de
navios, que estavão no Tejo, e que abalroarão huns con-
tra os outros com grande ruina, e perda de navios e fa-
zendas, escapando comtudo a esta desgraça as galeras,
que pouco antes havião sahido ao mar, a cruzar na foz
do Guadalquivir, e a espiar os movimentos da armada
Castelhana.
El-Rei D. Fernando, com quanto teve graves defeitos
no que toca á administração do reino, foi comtudo (se-
gundo a frase de hum escriptor judicioso) bcnemeritis-
simo, no seu governo interno, da policia, agricultura, e
commercio; e não só não desprezou a conservação da Ma-
rinha, mas antes a acrescentou, e augmentou considera-
velmente, como se collige de varias providencias que deo,
e do estado florente em que se achava este ramo da força
publica, logo nos princípios do seguinte reinado de el-Rei
D. João I.
Foi el-Rei D. Fernando grande zelador dos progressos
da agricultura (base fundamental do commercio), e do
aproveitamento das terras, que por incúria de seus donos,
ou por outras cauzas, se acliavão destituídas dos bene-
fícios da arte, e du trabalho humano: e com este presu-
posto não só promulgou leis ulilissimns, (}uo so compi-
(53) lljicleiii, aoiifle diz mais. que pov serem tantos, r tão conli-
mios os navios dos eslranijeiros, ordenou u eiílcidc de IJsboa rertos
homens, que pelas ruas, armados, andassem riijiondn de noite, c
rjuardando a cidade de ahiuma traição.
376
lárão nos Códigos nacionacs; mas também perseguio, e
punio com justa severidade os ociosos, vagabundos, e
mendigos, peste funestíssima dos estados, e inimigos de-
clarados da prosperidade, e riqueza publica (54).
Com igual cuidado zelou, e promoveo o augmento do
material daMarinba, tanto militar, como mercante, quero
dizer, do numero, e multiplicidade dos navios, que em
huma e outra se podessem empregar, concedendo privi-
légios aos seus vassallos, que ou comprassem navios es-
trangeiros, ou os mandassem construir nos estaleiros
Portuguezes (5o), e dando-Ihes elle mesmo exemplo na
construcção, que por conta da sua fazenda mandava fa-
zer de vazos de toda a sorte, com os quaes podesse au-
gmentar as forças marítimas do reino, e fazer-se, quanto
possível fosse, senhor do mar.
Creou também de novo o cargo de Capilão-mór do mar,
que parece devia substituir o Almirante nas suas faltas, ou
ausências, e lhe determinou a jurisdicção, e ospróes com-
petentes á importância, e dignidade da sua occupação (56).
Com estes meios e arbítrios subio a Marinha neste rei-
nado a tal ponto, que Duarte Nunes de Leão nos diz na
sua Chronica, que andando el-Rei de guerra com Castella,
armara 32 gah^s, e 30 nãos, que he forra mui considerá-
vel para aquelles tempos, e ainda para as posses de hum
tão pequeno reino: e com esta armada se poz o Almirante
sobre as costas de Andaluzia, aonde por quasi dous annos
(54) Fez muitas leis excellentes sobre a agricultura; e punindo
os vadios, não faltou quem tralialhasse nas lavouras, e com isso
houve pão no reino de sobejo; fez taínbeni leis sobre os mendigos,
e outras concernentes ao commercio, como se podem ver apontadas
em Duarte Nunes de Leão, no fim da Chronica deste Rei, e regulou
o commercio dos estrangeiros, òíc. (Historia de Portugal citada,
tom. L°, pag. 337. Mariz, dial. 3.°, cap. 6.", &c.
(oõ) Mariz, ibidem.
(o6) Severim de Faria, Notirius de Portugal, disc. 2.", § 14." His-
toria Genealógica, &c.)
377
fez notáveis estragos, e deo grandes perdas aos Caste-
lhanos.
Durando, ou renovando-se a mesma guerra com Cas-
tella em diíTerentes annos, ti verão as armadas Portugue-
zas grandes quebras, que a historia attribue á incúria, ou
imperícia dos chefes (57) ; mas essas mesmas perdas nos
dão prova da grande força marítima, que havia no reino;
porque ajustando-se a paz entre as duas nações no anno
de 1382, se estipulou em hum dos artigos delia a resti-
tuição de não menos, que 22 galeras Portuguezas, que
havião sido tomadas pelos Castelhanos, e estavão em seu
poder.
Do mesmo grande numero de galés, e outros navios de
guerra, que então havia em Portugal, se collige também
a grande pratica, e exercício, que os Portuguezes tinhão
naquelle tempo na arte da pesca, que he outra base es-
sencial da Maiúnha mercante e militar, e outra fonte de
riqueza publica.
A chusma das galés e baxeis de guerra era tirada então
dos homens do mar, pescadores, e barqueiros, os quaes
estavão para esse fim alistados nos livros chamados da
Armação, e linhão obrigação de fornecer de cada vinte ho-
mens hum, tendo o'Anadel-mór o cargo do alistamento,
e a auctoridade de os constranger ao serviço da armada
naval, por meio de oííicíaes seus, que se chamavão Vi?ite'
neiros. Consta-nos esta pratica e uso pelo contracto, que
depois fizerão os pescadores com el-Rei D. João I, pro-
(57) Attribue-se a primeira perda pelos annos de 1373 á incúria,
ou (corno outros dizem) á covardia do Almirante, a quem el-Rei
tinha dado ordem para embaraçar a entrada do Tejo cá armada de
Castclla. O Almirante foi Sííveramcnlc punido. A segunda perda,
pelos annos de 1381, se atlribue á imperícia de D. João AtTonso
Telles, irmão da Hai!ilia D. Leonor, ao (jual, só pi'lo titulo de irmão
da Rainha, se dera o coinmando da armada. Elle foi levado prizio-
neiro a Castella com outros Senhores Portuguezes, e o Almirante
de Castella ficou tamlieni prizioneiro dos Portuguezes vencidos!
378
mettendo-lhe huma segunda dizima do pescado, sobre a
que já pagavão, com a condição, que el-Rei proveria as
galés de remeiros á custa desta contribuição, ficando elies,
pescadores, desonerados de tão pezado encargo (58).
O que porém mais decisivamente prova os grandes pro-
gressos da nossa Marinha neste século xiv, de que vamos
falando, he o brilhante estado em que a achámos logo nos
principios do governo, e reinado de el-Rei D. João I, e
ainda antes que este illustre Príncipe, e seu filho o im-
mortal Infante D. Henrique, a elevassem ao grande des-
envolvimento, em que a vemos por todo o decurso de sé-
culo XV.
Ainda o grande Mestre de Avis era simplesmente de-
fensor do reino (1383 até 1385), quando mandou vir da
cidade do Porto huma divisão de 35 velas, em que en-
travão 18 nãos, e 17 galés, para se unir á divisão do Tejo,
e se opporem ás emprezas marítimas de Castella. E logo
depois de acclamado Rei, tendo pedido ao Duque de Len-
castre auxilio de tropas, vierão estas de Inglaterra em na-
vios Portwjuczeíi, e nelles forão depois restituídas ao seu
paiz (59).
(58) Vej. Severini de Faria, Noticias de Portugal^ disc. 2.", | 14."
Estas dizimas, nora e rellid do pescado de Lisboa forão doadas por
el-Rei D. Manoel ao Duque de Bragança por Carta de lo de Dezem-
bro de 1500, em satisfaçdo do Reguengo de Colares, e da Mouraria
e Judiaria da cidade, extinctas pela expulsão dos Mouros e Judeos.
Depois em 1502 fez o mesmo Rei outra doação ao Duque das dizi-
mas do pescado de Villa do Conde, Fão, Espozende, Darque, e Villa
Nova de Cerveira, por indemnização das Mourarias e Judiarias ex-
tinctas nas terras do Duque. Nas Cortes de Lisboa de 1562, em que
se deo a tutoria de el-Rei ao Cardeal D. Henrique, pedirão os povos,
entre outras cousas, « que a dizivia do pescado se tornasse para as
tjalés, para qnr ox mareantes a derão».
(59) Vej. o Epitáfio de el-Rei, copiado na Historia Genealógica,
e com mais exacção, na Memoria, que escrevemos, sobre as obras
da Batalha, e vem nas collecções da Academia Real das Sciencias
de Lisboa. Faria e Sousa diz, que el-Rei mandara a Plymouth,
379
O commercio com os portos do norte continuava em
grande actividade, tanto, que (|uando el-Kei armava para
a expedição de Ceuta, querendo encobrir o verdadeiro
alvo de seus preparativos, córava-os com dizer, que ar-
mava contra o Conde de Flandres, porque lhe estorvava
o commercio de seus vassallos; e esta ficção politica, que
só ao Conde foi communicada, achou fácil credito em
muitos.
No anno de 1415, hindo el-Rei á dita gloriosa expedi-
ção de Ceuta, armou 220 vasos, em que entravão 33 nãos
grossas, 59 galeras, e muitos galeões, caravelas, e ou-
tros navios de differentes grandezas, sahindo da só barra
do Douro 70 velas, em que entravão 17 galés, poder ma-
rítimo, que obrigou a hum distincto escriptor moderno,
e estrangeiro, a dizer, que naquelle tempo erão os Por-
tuguezes reputados como os primeiros navegadores do seu
século; e que Portugal occupava então o primeiro lugar
entre as potencias maritimas (QO). E outro escriptor, tam-
bém estrangeiro, referindo a expedição de Ceuta, conclue:
« Toda a Europa pasmou de ver, que hum reino tão pe-
queno, como o de Portugal, armasse com tanto poder,
mormente depois de tão longa, e tão damnosa guerra,
como acabava de sustentar ((51).
Pelos fins do anno de 1429, hindo a Infanta D. Isabel,
filha de el-Rei, cazar com Filippe, Duque de Borgonha,
sahio de Lisboa acompanhada de huma armada Portu-
gueza de 39 embarcações, que forão aportar a Esclusa
na costa de Flandres: apparato, que até suppõe (para as-
sim nos explicarmos) algum luxo de foi-ças navaes, aliás
bem empregado nos merecimentos da Infanta, e mui pro-
para a passagem do Duque, e da sua Iropa, láO tidos de ijrandc
porte, e 6 galeras, e que o Duque ajuntííra a esta armada S4 velas
suas.
(60) Malte-Brun, (Irografia.
(61) La Clede, Historia Geral de Portugal, &c.
380
prio da grandeza de el-Rei seu pai, e da alia nobreza do
Duque seu esposo.
Não se pôde duvidar, que para o rápido e progressivo
augmento, que a Marinha Portugueza tinha já adquirido,
e foi adquirindo por todo este século, concorresse mui
poderosamente a Escola de Sagres, fundada pelo Infante
D. Henrique, c a ardente paixão, que este grande Prín-
cipe mostrava, tanto pelo adiantamento das sciencias ma-
thematicas, cosmograticas, e náuticas, como pelos desco-
brimentos marítimos, que começou, e continuou por toda
a sua vida com a perseverança mais heróica, e com os
effeitos,.que todo o mundo sabe, e admira.
Nesta escola se inventavão, fabricavão, e aperfeiçoavão
os instrumentos náuticos necessários á navegação. Ali se
fazião, e ensinavão a fazer observações astronómicas para
regular, e rectificar o curso dos navios, e para verificar
pelo calculo das latitudes e longitudes as paragens, em
que se achavão, e os rumos, que devião seguir. Ali se
projectarão as primeiras cartas hydrograficas, nas quaes
se preferio desenvolver a superficie do globo, estendendo
os meridianos em linhas rectas, parallelas entre si, pelas
razões, que aponta o sábio Montucla (62), D'ali sahírão
os hábeis cosmógrafos, que em tempo de el-Rei D. .Toão II
aperfeiçoarão o astrolábio, e fizerão taboadas paia se na-
vegar pela altura do sol. Ali emfim se trabalhava inces-
santemente nos estudos da arquitectura naval, e em me-
lhorar, e aperfeiçoar a construcção, e a manobra dos
navios, chegando-se a conseguir, que as caravelas de
Portugal fossem naquelle tempo os melhores navios de
vela, que andarão sobre o mar, como se expressou Ga-
damosto (63), Ac.
(62) Histoire des Maíhématiques.
(63) Proemio da Relação das suas navegações: e vej. Barros,
dec. 1." ; Andrés, Historia de Ioda la Litteratura ; Bory de Saint-Viíi-
cent, &c.
381
O grande movimento, extensão, e actividade, qued'aqui
i'esultou ao commei'cio Portuguez; o gosto da navegação,
e das emprezas maritimas, que se foi generalisando, e
diífundindo por todas as classes de cidadãos; os docu-
mentos, methodos, e luzes, que sahião, e se propagavão
da mencionada escola ; os grandes capitães do mar, e os
hábeis pilotos, que depois de adquirirem nella os conhe-
cimentos theoricos, hião logo pratical-os em arriscadas
navegações; emfim, o desejo de agradar, e servir a Prín-
cipes, que erão como pais, e talvez mestres de seus vas-
sallos: tudo isto deo em pouco tempo tal extensão, e des-
envolvimento á Marinha Portugueza, que bem justiflca o
dito dos escriptores, que acima referimos.
Em 14o8 levou el-Rei D. Aííonso V á conquista de Al-
cácer Seguer 220, ou mais, baxeis de todos os portes, e
era 1471 , em que tomou Arzila, e Tanger, constava a sua
armada de 300, ou, como outros dizem, de 308 navios,
em que forão cousa de 30:000 liomens de desembarque:
e fazia-se isto ao mesmo tempo, em que se continuavão
os descobrimentos das ilhas, e das costas Africanas, e se
frequentava avultado commercio para aquellas partes (64).
Seu íilho, e successor el-Rei D. João II aprestou por ve-
zes numerosas armadas para a costa de Africa, fundou o
castello, e cidade de S. Jorge da Mina, cujo commercio
rendia grandes cabedaes, e por elle tomou no seu dictado
o titulo de Senhor de Guiné; descobrio o Congo, e o cabo
da Boa Esperança, e preparou a armada para o grande
descobrimento da Índia, que se realisou no seguinte rei-
nado.
Em tíímpo deste grande Príncipe he que se inventou,
(61) Uuiíiiito o reinado de el-Rei D. Affoiíso V, isto he, desde
1438 até 1'j81, se descobrirão as ilhas dos/lroírs, as de Caho Verde,
as de .S. Thomé, Anuo Bom, Principe, Fernando Pó, &c., e pela costa
se adiantou quasi desde o Senegal afé ao Cabo de Santa Catharina,
a 3" da e(|iiiiinccial para o sid, &('.
382
OU aperfeiçoou o uso do astrolábio, e a sua applicação á
navegação do alto mar, de que já acima fizemos menção:
e elle mesmo, com a grande intelligencia, que tinha em
lodos os ofjkios, e em particular nas artilherias (como
diz Rezende), achou, e inventou o modo de trazer mui
grossas bombardas em pequenas caravelas, cousa até
então desconhecida, com o que conseguio defender as
costas, e a navegação, e fazer respeitar, e temer o seu
poder no mar (6o).
Durante o largo período dos dous reinados, de que va-
mos falando, e ainda depois delles. Unhão as armadas Por-
tuguezas huma decidida superioridade sobre as de todas
as outras nações marítimas da Europa, como se faz ma-
nifesto por muitos factos, que nos refere a Historia, dos
quaes apontaremos aqui summariamente alguns, em prova
do que dizemos, e para que por elles se possa ajuizar a
que elevado ponto tinha chegado o poder naval desta pe-
quena, mas heróica nação, mais de hum século antes, que
a Rainha Isabel lançasse os primeiros fundamentos á Ma-
rinha Ingleza, e que os Hollandezes tivessem algum dis-
tincto nome entre as nações marítimas.
Seja o primeiro fado, que ousando os vassallos do Du-
que de Bretanha incommodar o commercio Portuguez,
forão castigados tão pezadamente, que se virão reduzidos
a não poderem sahir de seus portos, arruinado o seu com-
mercio, até que tomarão o partido de cessar de seus ex-
cessos, e de não tornarem a desafiar as nossas forças.
Outro tanto succedeo aos Inglezes. Pelos annos de
1471, doze navios mercantes Portuguezes, que sahião
dos portos de Flandres, carregados de muitas, e ricas
mercadorias, forão tomados, e roubados por hum navio
de guerra Inglez, cbmmandado pelo bastardo Falcom-
bridge, sobrinho do Conde de Berwik, que então gover-
(65) Garcia de Rezende, Chronkn úp D. .Todo 11, cap. 180."
383
nava o reino de Inglaterra. El-Rei D. Affonso V, que tinha
prompta huma grande armada para descer em Africa,
não quiz distrahil-a para differente operação, e limilou-se
a dar aos armadores Portuguezes cartas de marca contra
os Inglezes; com o que forão tantas as prezas, que todos
os dias lhes fazião, e trazião a Portugal, que el-Rei de In-
glaterra mandou satisfazer plenamente os effeitos rouba-
dos, e renovou a paz, que de tempos antes havia entre as
duas nações (66).
Pelos annos de 1479, antes que se ratificasse a paz, que
já estava ajustada com Castella, os Reis Gatholicos, que
em hum dos artigos do Tratado renunciavão as suas frí-
volas pretenções sobre Guiné, mandarão lá 30 navios;
mas os Portuguezes os aprezárão todos com as grandes
riquezas, que trazião, e os conduzirão a Lisboa: e este
incidente abreviou a ratiflcação do Tratado, que os Cas-
telhanos com artificiosa má fé, mas inutilmente, havião
retardado.
Em 1492, fazendo os Francezes pouco caso das antigas
relações, que havia entre Portugal, e a França, e até do
Tratado de amizade e commercio poucos annos antes ajus-
tado entre ambas as nações (67), tomarão no mar huma
caravela, que vinha da Mina com carregação mui rica, e
muito ouro. El-Rei D. João II, sem se entreter em de-
longas diplomáticas, mandou immediatamente pôr em-
bargo em todos os navios Francezes, que estavão nos seus
portos, e só em Lisboa se acharão 10 náos. Forão embar-
gados os que estavão em Aveiro, e no Douro; e para
Setúbal, e Algarve despachou el-Rei com a mesma in-
cumbência a Vasco da Gama (68). Carlos VIII de França
(66) Vej. Góes, Pina, &.c. Os nossos escriptores varião cm algu-
mas miúdas circumstancias deste facto; mas todos convc^m na sub-
stancia.
(67) Em 1485, segundo a Hialoria Genealógica, &c.
(68) Hezende, Chronica de D. Joúo II.
384
escreveo logo a el-Rei D. João II, dando satisfação do in-
sulto, e fez restituir toda a preza, e todo o ouro, sem fal-
tar hiima dobra (diz Rezende) : e acrescentão alguns es-
criptores nossos, e estrangeiros, que se não levantou o
embargo, até que fosse restituído /mm papagaio, que
ainda faltava; e que admirando-se alguns desta severi-
dade de el-Rei, respondera este grande Príncipe : « Quero
que se entenda, que a bandeira Portugueza defende, e
protege até hum papagaios; mostrando por este modo,
que não era tanto o valor das cousas, quanto a lioiiia da
sua bandeira, que elle defendia, e vindicava (69).
(69) Os Francezes, que (segundo diz Voltaire) somente cuidavão
em justas, torneios, e amores, quando os Portnguezes, a despeito de
opiniões supersticiosamente acreditadas, de tormentas de mar, e de
fjuerras, descobrirão e conquistarão a. nacecjação, e commercio da
Ásia; logo que virão o caminho aberto, e os interesses, que d'ali
vinhão a Portugal, quizerão ter parte nos lucros, o ser nossos ri-
vaes, e então invocarão a liberdade do commercio, que nenhuma na-
ção poderosa deixa de estreitar, e monopolisar. Como pon-m se não
atrevessem então com a Marinha Portugueza, limitárão-se por muitos
annos a huma guerra dolosa, ou antes a huma verdadeira pirataria,
assaltando na paragem dos Açores, e em outros pontos, os navios
Portuguezes, que contiados na segurança da paz, que tínhamos com
todas as nações, vinhão da índia, ou da costa de Africa, quasi sem
defeza alguma. « Huma das primeiras acções de el-fíei D. João 111 (di-
zem os auctores da Historia de Portmjal) foi enviar por Embaixador
a França João da Silveira, paru se queixar das hostilidades, que os
armadores Francezes fazião aos Portuguezes, e para requerer, que
se não mandasse armada Franceza á índia, como em França se pro-
jectava ». El-Rei D. João II fazia estas embaixadas com náos, e bom-
bardas, e era bem succedido, como acabámos de verl As outras na-
ções, que também ao principio tiverão por insanas as navegações
Portuguezas, concorrião agora com os Francezes na mesma emula-
ção, ou inveja, e no commum intento de nos despojarem do bem
merecido fructo dos nossos trabalhos, nos quaes não tiverão parte
alguma. « Os Turcos (dizia hum douto Portuguez em lo62), os Ve-
nezianos, os Francezes, os Inglezes, todos tem contenda comnosco so-
bre a índia, e a Especiaria, o Brazil, Guiné, &c., e com elles temos
sempre guerras, e trabalhos : e se alguma cousa os detém, em seus
385
Pelos annos de líiOO, já em tempo de el-Hei D. Manoel,
corria os mares hum corsário Francez, por nome Mon-
dragon, o qual aprezou hum navio Portuguez, que vinha
da índia com preciosa carregação. El-Rei não quiz seguir
o processo summario do seu antecessor, e mandou quei-
xar-se a el-Rei de França Luiz XII, de quem não recebeo
satisfação alguma : pelo que ordenou a Duarte Pacheco,
que sahisse ao mar em demanda do corsário. O heróico
Pacheco, sem embargo da vigorosa resistência de Mon-
dragon, metteo-lhe no fundo hum dos seus navios, e apre-
zou-lhe os outros três, e com elles o trouxe a elle mesmo
prezo a Lisboa, aonde restituindo a preza, e promettendo
respeitar d'ahi em diante a bandeira Portugueza, teve por
benignidade de el-Rei a liberdade de se retirar, á-c.
De tudo o que até agora temos dito acerca do grande
poder naval do nosso reino no século xv, íacil he de ver,
que também seria proporcionado o adiantamento das duas
propósitos^ a nos não fazerem mal, he ter por sem duvida, que o
nosso Rei he o mais rico, e o mais poderoso, que ha no mundo».
Estes propósitos porém começarão a executar-se sem rebuço, logo
que Portugal passou ao lyrannico poder de Castella, e a sua deca-
dência se fez manifesta a toda Europa por tantas causas, que para
ella concorrerão. As nações, invejosas da nossa gloria, e prosperi-
dade, postergarão então todas as considerações da justiça, romperão
a paz, que, máo grado seu, tinhão conservado; e com o pretexto de
sermos vassallos de Castella, começarão a fazer-nos guerra, isto he,
a arruinar o nosso commercio, e a rouLar-nos as nossas ricas pos-
sessões ultramarinas. Em lo90 navegarão para a hulia alguns navios
Inglezes em frota. Em 1595 saquearão os Francezes o castello de Ar-
guim na costa de Africa. Em 1597 apparccérão os primeiros navios
Hollandezes na índia. Na America, apesar das repetidas tentativas
sempre mallogradas dos Fi'ancezes, ainda no anno de 1003 (diz Pin-
kerton) tudo naquelle rasto continente estaca em poder de Hespa-
nhoes, e Portuguezes. E tudo conservaríamos lá, e em Africa, e na
índia, se os Portuguezes não houvessem degenerado de suas antigas
virtudes, e sobre tudo, se o governo usurpador não favorecesse de
propósito esta degeneração, e não liouvesse couperailo positivamente
para o nosso abatiiiicnlo. e ruína.
TOMO v as
386
artes, que são como criadoras, e ao mesmo tempo subsi-
diarias da Marinha, quero dizer, o commercio externo, e
a pesca.
Emquanto ao commercio: não falando do que de tem-
j)os antigos se continuava com os portos do norte, e do
Mediterrâneo, acresceo o das novas colónias das illias, e
terras descobertas de Africa.
Da ilha da Madeira, aos vinte annos depois de povoada
pelos Portuguezes, dizia Cadamosto em suas Relações,
que além do asucar, que produzia, dos arcos de teixo,
que já se exportavão, e dos excellentes vinhos, que já so-
bejavão para se exportar, ha\ia engenhos de serrar, e se
trabalhavão muitas, e excellentes obras de carpintaria,
e bofetes de muitas invenções, e outras obras de madeira,
de que se provia todo Portugal, e outros paizes (70).
A ilha de S. Thomè, mandada povoar em 1493 por el-
Rei D. João II, começou logo a ser tão copiosa na pro-
ducção, e commercio do asucar, que pelo meio do sé-
culo XVI dava mais de 150:000 arrobas, producto de 60
engenhos, que se havião construído, não estando todavia
roteado senão apenas huma terça parte do terreno da
ilha, na qual se achavão estabelecidos muitos commer-
(70) Cadamosto, Navegação ■primeira, edição da Academia Real
das Seiencias de Lisboa, cap. 4.° Ahi se diz, que no tempo desta
primeira viagem, em 1445, se fabricavão na ilha da Madeira 400
cântaros de asucar, o que (regulando o cântaro Veneziano pelo Flo-
rentino) vem a dar em 468 quintaes, ou 1872 arrobas. Em outra Me-
moria achámos, que o asucar da ilha da Madeira, ainda em tempo
do Infante D. Henrique, lhe dava de quinto 900 arrobas, o que vem
ao total de 4:500 arrobas. Finalmente Barros diz, que humas três
léguas de terreno da ilha davão em seu tempo ao quinto mais de
60:000 arrobas. Sabido he, que a canna, e os mestres de fabricar
asucar forão mandados vir da Sicilia pelo Infante D. Henrique, o
qual também mandou vir de Cândia a excellente malvazia, cujos
vinhos são ainda hoje de tanto interesse para a ilha. e seu com-
mercio.
387
ciantes Portuguezes, Castelhanos, Francezes, e Genove-
zes, sendo o seu ancoradouro frequentado de navios de
varias nações, attrahidos huns e outros das franquezas, e
benefícios, que dos nossos Reis lhes erão concedidos (71).
Para as outras ilhas, portos, e terras descobertas na
costa Occidental de Africa, era frequentissimo o trafico
dos negociantes de Portugal, e da ilha da Madeira, de
sorte, que no anno de 1444 julgou o Infante D. Henrique
conveniente auctorisar a Companhia de Lagos para fazer
o commercio das ilhas de Arguim, aonde mandara levan-
tar fortaleza, e tinha Feitoria sua: e pelos annos de 1447
se acharão juntos naquellas paragens 27 navios Portu-
guezes, que traficavão em differentes pontos da costa.
O qual commercio foi em muito maior augmento, logo
que se descobrio o reino de Beny (d'onde os Portuguezes
começarão a levar a pimenta a Flandres), e a Mina, onde
el-Rei D. João II mandou fundar o castello, e cidade de
S. Jorge, cujos proveitos erão avultadíssimos (72). Pelo
que el-Rei D. Affonso V houve por necessário nomear
hum particular Veedor da Fazenda das cousas, que per-
tendão a todolos feitos do mar Oceano, cargo, em que
achámos provido Pedro Affonso por Carta dada no anno
de 1460 (73). E el-Rei D. João II tinha efectivamente em
Flandres hum Feitor seu, encarregado dos negócios da
(71) Vej. Navegação de Lisboa a S. Tkomé por hum Piloto Por-
tuguez, na collecção da Academia.
(72) Garcia de Rezende, Chronica de D. João U.
(73) Vej. a Historia Genealógica. Por Carta de 20 de Março de
1432 concedeo el-Rei vários privilégios e isenções a Flamengos, Al-
lemães, Francezes, e Bretões, que viessem morar em Portugal. Em
seu tempo actiâmos Gil de Brito, Cavalleiro da Gaza de el-Rei,
Veedor-mòr das artilharias do reino. Em 1487 era Diogo de Azam-
buja Veedor-mór das artilharias, e armazéns do reino. Já em tempo
de el-Rei I). João III adiámos Jorge de Azambuja Veedor das arti-
lharias, armazéns, e lererenas , cargo (juc tinha em 1.^27 Cosme Im-
fetá. &c.
3SS
sua fazenda, e de proteger o conimercio dos seus vas-
sallos.
Este il lustrado, e nunca assas louvado Principe, que
entendia perfeitamente das cousas do commercio, inten-
tando augmentar com elle as riquezas do seu reino, abateo
ametade dos direitos de entrada, que se pagavão na alfan-
dega de Lisboa, com o que attrabio a esta cidade o com-
mercio da Galliza, e da Andaluzia. E favorecia tanto os
estrangeiros, que vinhão negociar ás suas terras, que to-
mando huns piratas Francezes quatro galés Venezianas, e
lançando nús na praia os homens da guarnição, junto á foz
do Tejo. el-Rei não só os mandou vestir, e sustentar, mas
lambem llies olíereceo 40:000 cruzados para resgatarem
as galés ; e como os Francezes pretendessem preços maio-
res, el-Hei emtim comprou os cascos, e os pôz á disposição
da Republica de Veneza: acção tão generosa, que a Repu-
blica se houve por obrigada a lhe enviar huma solemne
embaixada, agradecendo o beneíicio, e sollicitando a sua
amizade. Já acima apontámos o Tratado de amizade, e
commercio ajustado com os Francezes em 148o, e podá-
ramos mencionar muitos outros factos, que provão por
huma parte a extensão do commercio Portuguez naquelles
felices tempos, e mostrão, por outra parte, a grande in-
telligencia, que el-Rei tinha dos verdadeiros princípios da
economia politica, quando esta sciencia estava ainda por
criar. INIas estes objectos não cabem nos limites, que nos
temos prescripto, e demandão escriptura mais extensa.
Emquanto á pesca: postoque sejão mui escassas as no-
ticias, que a este respeito nos deixarão os antigos, nota-
remos comtudo algumas de que achámos feita menção, e
que servirão de estimulo para novas indagações, a quem
for mais feliz, e tiver mais meios para fazel-as do que nós
somos, e temos.
Algarve: os navios, que naquelles tempos sahião de
I\)rlngal com grandcí frequência, e em grande numero,
389
para as ilhas, e costas de Africa novamente descobertas,
ou que se pretendião descobrir, hião quasi sempre bem
providos de peixe salgado, que bastasse para o abundante
mantimento dos navegantes, e gente da marinhagem (74),
e parece verosímil, que estas provisões fossem das pes-
carias, c salgações do reino, e ainda especialmente das
do Algarve, d'onde sahião as expedições, e aonde o In-
fante D. Henrique residia, e tinha suas terecenas, arma-
zéns, de. O Algarve, que por sua posição geográfica he
aptissimo para as pescarias, tem sempre conservado, e
conserva ainda hoje este trafico.
Setiival: foi sempre desde os mais antigos tempos hum
lugar notável pelas suas pescarias, salgações, e grande
commercio de sal: e por este respeito querendo el-Rei
D. João II favorecer, e melhorar a terra, aconselhou aos
moradores a obra do aqueducto, por onde lhes vem a
agua, que d'antes não tinhão; fez-lhes mercê de alguns
dos tributos, que pagavão, para que os applicassem á
mesma obra ; e por ultimo a mandou elle mesmo acabar
á custa da sua fazenda, com o que a villa se augmentou
em trafico, commercio, riqueza, e povoação.
Lisboa: já acima indiccámos a doação, que el-Rei D. Ma-
noel fez no anno de 1500 ao Duque de Bragança das dizi-
mas do pescado de Lisboa, por indemnização do reguengo
de Colares, e dos rendimentos da Mouraria e Judiaria ex-
tinctas. Isto prova a importância daquelles direitos, e con-
sequentemente a grande extensão das pescarias do Tejo,
e dos mares adjacentes (75).
Aveiro: villa (hoje cidade) mui notável, nos tempos de
que tratamos, pelas sims pescarias, e também pelo grande
fabrico de sal. A Princeza Santa Joanna teve o senhorio da
(74) Navegação de Lisboa a S. Thomé por hum Piloto Portiujuez,
&c., cap. 2."
(75) Diz o auctor da Historia Gencaloç^icn . ijuo só o dizitiio do pes-
cado fresco de Lisboa rend(*ra, no anno de 1736, á2:^>60;à<X)0 réis.
390
teria, e recebia entre outras rendas a imposição do sal, e
as dizimas nova e velha do pescado, por mercê de seu ir-
mão el-Rei D. João II, e Carta passada no anno de 1485.
D'aqui sahião, logo que se descobrio a Terra Nova, mui-
tos navios, e homens do mar a fazer naquellas paragens a
pesca do bacalbáo, em que os nossos Porluguezes se con-
servarão, até que em tempos menos felices forão despo-
jados desta liberdade e posse pelos Inglezes. E era tal a
nossa concorrência naquelle traflco, que ainda em 1578
se acharão na Terra Nova 50 navios de pesi-a Portuguezes,
fazendo todos juntos o porte de 3:000 toneladas (76).
Aveiro (diz hum escriptor Portuguez) contava pelos annos
de 1550 mais de 150 embarcações de commercio próprio.
Villa do Conde, Fão, Espozende, Darque, e VillaNova
da Cerveira: já também notámos a doação, que el-Rei
D. Manoel fez ao Duque de Bragança, no anno de 1502,
das dizimas novas e velhas do pescado desles portos, poi'
indemnização dos rendimentos das Mourarias e Judiarias
extinctas nas terras do Duque pela expulsão dos Mouros
e Judeus: e d'aqui se infere a frequência áâ pesca, que
havia em todos estes lugares, e os grandes proveitos, que
se tiravão de seus rendimentos (77).
Vianna da foz do Lima: esta villa, fundada, ou melho-
(76) No mesmo anno concorrénlo áquella pescaria 150 navios
Francezes, 100 Hespanhoes, e 30 Inglezes ! (Aiiderson.)
(77) Não parecerá totalmente alheio do nosso assumpto notar aqui,
que de Villa do Conde era o douto Piloto, que Unido feito cinco via-
gens de Portugal .á ilha de S. Thomé, escreveo pelos annos de 1551
a Navegação de Portugal a S. Thomé. que neste escripto temos ci-
tado algumas vezes, e a mandou ao Conde Rayniundo de la Torre,
Gentil-homem Veronés. João Baptista Ramuzio a publicou traduzida
em Italiano em 1554, e a Academia Real das Sciencias de Lisboa a
mandou imprimir, tirada do Italiano em Portuguez. na sua Collecção
de Memorias para a Historia e Geonrofta das nações tdtramarinas,
tom. 2.°, num. 2. Na introducção do editor académico se pôde ver
oom quanta razão damos a este Piloto a qualificação de dmito.
391
rada em sitio por el-Rei D. Affonso III (como acima to-
cámos), e povoada de gente industriosa, aproveitou a
opportunidade do seu local, e foi crescendo tanto em na-
vegação, e commercio, que mandava seus navios a todas
as provincias do norte, e ás ilhas, e terras novamente
descobertas, especialmente ao Brazil, depois que esta
grande região começou a povoar-se, e a ser dos nossos
mais frequentada. Fr. Luiz de Souza, que imprimia a
Vida do Arcebispo em 1619, diz que nesse tempo trazia
Vianna no mar 70 navios de toda a sorte, sendo a maior
parte dos armadores, e marinhagem tudo da terra (78).
E acrescenta, que cincoenta annos antes, isto he, pelo
meio do século xvi, havia algumas 80 barcas de pesca-
dores, que depois deixarão este trafico para se darem á
navegação do alto, passando os trabalhos da pescaria aos
povos visinhos, que delia se sustentavão, e com ella for-
necião de marinheiros os navios mercantes, á-c. (79).
Caminha: villa fundada sobre a foz do Minho; tinha
provavelmente nos tempos, de que falamos, grande pra-
tica da navegação, commercio, epesca; pois sabemos, que
os seus habitantes, pelos annos de 1459, sendo aquellas
costas do norte de Portugal infestadas de corsários, e pi-
ratas Francezes, e Gallegos, pedirão a el-Rei D. Affonso V
licença para armarem em corso contra os inimigos, e que
(78) Vej. a Vida do Arcebispo, liv. 1.", cap. 24.°, e 26.° No liv. 4.°
cap. i.", diz o escriptor, que a jurisdicção temporal dos Arcebispos
de Braga llies fora dada em troca de rendas próprias, qiie a Igreja
largou á coroa, entre as quaes erão os direitos, e rendiíuenlos da al-
fandega de Vianna, por onde se pôde conjecturar qual seria desde
antigos tempos o commercio da viila.
(79) Desta vilia de Vianna saliio n prinii^iro povoador da (Capi-
tania de Porto Serjaro no lírazii, Pedi o de (Cauipos (ou de Campo)
Tourinlio, liomem nobre, cavalleiro. e muito visto na arte de ma-
rear, a quem el-Rei D. Joílo III deo a mesma capitania com 50 lé-
guas de costa, como em outro lugar dizemos. Ksle foi o fundador
das villas de Porto Seç/uro, Santa Cruz, e SaiHo Amaro, &c.
392
lhes fizesse mercê do quinto das prezas, que pertencia á
real fazenda, a fim de poderem armar maior forças com
menos dispêndio próprio. Ao que el-Rei deferio, remet-
tendo-os ao Fronteiro-mór da província, que era o Duque
de Bragança, para iiies conceder, e regular a licença, e ce-
dendo logo do quinto na forma, que supplicavão, de. (80).
E tal era o estado de nossas cousas marítimas, quando
subio ao throno el-Rei D. Manoel, a quem os Portuguezes
com razão appellidárão o Venturoso, o qual coiheo os
abundantes fructos de gloria, de grandeza, e de poder,
que seus antecessores lhe deixarão grangeados, c prepa-
rados; sustentou, e ampliou o seu senhorio em Africa; fun-
dou o império Portuguez no Oriente; descobrio a grande
região, que se chamou Terra de Santa Cruz, e depois lira-
zil, na America meridional ; descobrio também a Terra
Nova de Corte Real, e muitas ilhas adjacentes na America
septemtrional; fez respeitar, e temer cm toda a parte as
suas armas; e conservou, e engrandeceo a Marinha Por-
tugueza, 6 fez de Lisboa hum dos principaes, e mais ricos
empórios do commercio do mundo.
Faz na verdade admirar, se bem se considera, e quasi
que excede toda a crença o grande poder marítimo ne-
cessário para tantas emprezas, e desenvolvido em Portu-
gal no tempo deste feliz reinado.
Descoberta a índia pelo grande Vasco da Gama, logo no
anno de d 500, subsequente á sua vinda, sahio de Lisboa
(80) O auctor da Historia Genealógica, referindo o que aqui di-
zemos, o aUribue aos moradores de Vianna do Lima : mas na repre-
sentação que se fez a el-Rei, e de que elle mesmo faz o extracto, se
diz, que os representantes, ou a sua terra, distava três léguas da fron-
teira, e doze da cidade do Porto; o que nos parece mais próprio de
Caminha do que de Vianna: porquanto Caminha dista na verdade
três léguas de Valença, fronteira de Tuy, e fica a doze léguas do
Porto : ao mesmo tempo que Vianna dista do Porto nove léguas, e
fica a seis da fronteira, isto he, de Valença.
393
Pedro Alvares Cabral com huma armada de 13 náos, em
que forão 1:200 homens mareantes, e soldados. A esta
seguio em 1501 outra de 4 náos, commandadas por João
da Nova. Em 1502 fez segunda viagem á índia D. Vasco
da Gama, levando 20 velas á sua obediência. Em 1503
sahírão as armadas de Francisco de Albuquerque, de
António de Saldanha, e do grande Affonso de Albuquer-.
que, d-c. E tudo isto se fazia no mesmo tempo, em que
se despachavão outras expedições ao reconhecimento da
Terra de Santa Cruz ; se defendião as costas de Portugal,
e das conquistas de Africa; se conservava, e promovia o
grande commercio do reino ; e el-Rei mandava em soc-
corro dos Venezianos, contra o Turco, o poderoso auxilio
de 30 náos, com 3:500 homens de tropas, commandados
por D. João de Menezes, Conde de Tarouca (81).
Em 1504 passou á índia Lopo Soares de Albergaria
cum 12 náos grossas: e em 1505 foi o Vice-Rei D. Fran-
cisco de Almeida com 22 velas, que erão 16 náos grossas,
e 6 caravelas. Neste amio (diz Faria e Souza) sahírão para
a índia por vezes HO náos, ficando outras para a guerra
da Mauritânia, e guarda das costas do i eino.
Sendo tal o empenho, com que el-Rei entrou nas cousas
do Oriente, e tanta a necessidade de ter lá forças bastantes
a contrastar o poder do Soldão do Egypto, que unido com
os Príncipes mais poderosos da índia, e auxiliado occulta-
mente dos Venezianos, intentavão expulsar-nos daquelles
(81) O continuador Francez da Historia Ecciesiastica de Heury,
fazendo memoria desta expedição, e soccorvo, diz que a armada Por-
tugueza se recolhera a Portugal, sem ter alcançado victoria alguma
contra o inimigo : « Ília tamen nulld adversus hostem victoría insi-
gnis reversa est». Nisto disse o escriptor a verdade; mas não a
disse toda. Devera acrescentar, que os Turcos, sabendo que a ar-
mada Portugueza hia unir-se á Veneziana, se pozerão em retirada,
ou fugida. E parece, que não deve fazer admiração, que se não al-
cance victoria contra hum inimigo, que toma com tempo a precau-
ção de fugir ao combate.
394
mares: assim mesmo mandou el-Rei em 1513 huma nu-
merosíssima armada a Africa, constante (segundo Damião
de Góes) de 400 navios, commandada pelo Duque de Bra-
gança D. Jayme, com a qual tomou Azamor, Tite, e Alme-
dina, na Mauritânia, levando a esta facção 16:000 infantes,
e i2:500 cavallos, além da gente da manobra, e serviço do
mar. E notão os nossos escriptores, que esta grande ar-
mada se aprestara em quatro mezes e meio!
Concluamos com dizer em summa com o mesmo Góes:
que el- Hei D. Manoel trazia commnmmente SOO nãos suas
nas conquistas de Ásia, Africa, e America (82).
E se alguém porventura se admirar, de que tantas, e
tamanhas armadas se esquipassem, e aprestassem tão fre-
quentemente, e ás vezes com tanta celeridade (83), deve
altender:
1." Que el-Rei D. Manoel tinha em vários lugares do
reino Feitorias para a fabricação de amarras, enxárcias,
cordoalhas, d-c, de cânhamo, que então se cultivava, em
grande abundância, em Portugal (84).
2.** Que tinha lambem grande fundição de artilharias,
já estabelecida no tempo de seus antecessores, para a qual
(82) De Reb. et Imper. Lusitan. ad Paul. Jov.
(83) Seveiim de Faria, Noticias de Portugal, disc. 2.", § 15."
(84) He muito verosímil, que esta fabrica trouxesse origem de
tempos mais antigos. O cânhamo era cultivado em differentes partes
do reino. O nome de Canavezes dado a alguns lugares, indica a exis-
tência, e extensão desta cultura. Ella se conservou ainda por longos
tempos. Em 1740 havia na Torre de Moncorvo feitoria, e armazém
de linhos, e canhamos, (pie se criavão nos campos de Villariça, fe-
cundados pelas inundações do iJouro: e he esta (dizia hum escriptor
desse tempo) a cultura de maior importância do reino, para o apresto
das armadas, por ter o uso qualificado a sua bondade, e fortaleza.
Nesses annos se colhião ainda cousa de 160:000 arrates (o:000 ar-
robas) de linho, e se se encanassem as aguas (dizia o mesmo es-
criptor), que muitas vezes alagão, e destroem os linhos semeados,
maior fora o lucro da provinda, e do reino.
395
fundou as terecenas da Porta da Cruz em Lisboa, assim
como mandou fazer a caza da pólvora.
3.° Que ordenou outrosim, que houvesse armeiros pa-
gos à custa de sua fazenda, para o fabrico de armas de
toda a sorte, nas cidades de Coimbra, Évora, e Porto; em
Santarém, Elvas, Beja, Tavira, e Lagos, e nas villas de
Moura, Mourão, Murisarás, Govilhãa, Vianna do Lima,
Castello Branco, e Torre de Moncorvo (8o).
4.° Que inui provavelmente existião já no tempo deste
Príncipe, ou (pode ser) de seus antecessores, os chamados
Fornos de el-Rei, estabelecidos na freguezia de Palhaes,
comarca de Setúbal, e destinados especialmente a for-
necer o pão necessário ás armadas do reino (8(5).
5.° Que os mesmos particulares não desdenhavão na-
quelle tempo o commercio, as artes, e a industria, do que
são bom exemplo os Duques de Bragança, os quaes tinhão
na mesma cidade de Bragança huma fabrica de ferrarias,
e perto de Villa Viçosa hum engenho de armas (87) : de
maneira, que dentro do reino, sem dependência dos es-
trangeiros, se achava tudo o necessário para o apresto das
armadas. . .
Mas tempo he já de darmos fim a este nosso escripto,
(8o) Mariz, dial. 4.°, cap. 20.» Severim de Faria, Noticias de Por-
tugal, disc. 2.°, § H.°
(86) Não temos achado notada a origem, e fundarão deste esta-
belecimento, que ainda existia no século passado ; e presumimos,
que se deve referir aos tempos, em que Portugal despachava suas
armadas para os descobrimentos, e conciuistas ultramarinas. Os for-
iiox erão 30; tinhão lenha, e moinhos em boa distancia. A caza dos
trigos accommodava 1):000 moios: e os fornos todos podiâo fornecer
pão fresco para 30:000 homens, e biscouto para 20:000.
(87) Por Carta de Janeiro de 1453 isentou el-Rei de siza o ferro,
que se vendesse da fabrica de ferraria do Duque de Bragança : e o
Duque D. Theodosio 1 em 1540 unio em morgado com outros bens
seus patriínoniaes o ciKjvntw de armas. (\nv tinha no teniKi de Villa
Viçosa.
396
bem imperfeito na verdade, mas emprendido somente
pelo puro amor da pátria, e só por elle também recom-
pensado :
Que não he premio vil ser conliecido
Por hum pregão do ninho meu paterno.
(Lusiadas, cant. 1.°, est. 10.»)
FIM DO TOMO V
índice
Reflexões geraes acerca do Infante D. Henrique, e dos desco-
brimentos de que elie foi auctor no século xv 1
índice Chronologico das navegações, viagens, descobrimentos,
e conquistas dos Portuguezes nos paizes ultramarinos desde
o principio do século xv 45
Notas acerca de alguns dos descobrimentos apontados no ín-
dice Chronologico :
Sobre as ilhas Canárias 163
Sobre as ilhas dos Açores ou Terceiras 17á
Sobre o descobrimento do Congo 190
Sobre o descobrimento da America, e do Estreito de
Magalhães, attribuidos a Martim Behaim 193
Sobre a terra de Corte Real na America Septemtrional 201
Sobre as ilhas Lequias ou de Lieu-Kieu 206
Sobre a bahia e rio de Lourenço Marques 210
Sobre o Tibet 216
Memoria sobre as viagens dos Portuguezes á índia por terra,
e ao interior da Africa desde os princípios do século xv. . . 221
Nota em que se mostra, que os Portuguezes, ao passo que hião
descobrindo as costas e terras africanas, se não descuidavão
de inspirar aos seus habitantes idéas moraes e princípios
de civilisação 259
Memoria sohrc a expedição de Vasco da Gama ao descobri-
mento da índia em 1497 287
Nota sobre a origem da escravidão e trafico dos negros 323
Memoria em que se colligem algumas noticias sobre os pro-
gressos da Marinha Portugucza alé os princípios do sé-
culo XVI 349
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Saraiva, Francisco de São Luiz
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